Constituição, poder judiciário e estado democrático de direito: Anecessidade do debate “procedimentalismo versus substancialismo”

AutorAdalberto Narciso Hommerding
CargoMagistrado no Estado do Rio Grande do Sul. Professor de graduação e pós-graduação (URI, IESA, UNIJUÍ e Escolas Superiores da AJURIS e do Ministério Público). Mestre em Direito pela UFSC. Doutor em Direito pela UNISINOS.
Páginas11-29

Page 11

1. Considerações preliminares: acerca da modernidade tardia no Brasil

A discussão1 acerca do suposto fim da modernidade ainda não chegou a um consenso. É possível dizer que a modernidade terminou, sendo cabível, portanto, a utilização do termo “pós-modernidade”3 ou “transmodernidade”4 . Também se pode considerar a modernidade como um projeto que se desloca5 , inacabado6, ou que,Page 12tal vez, ainda nem tenha sido formulado7 . Até mesmo é possível falar-se em uma modernidade tardia de “ambigüidades análogas”8 . No caso do Brasil, a modernidade ainda não começou, já que tem sido considerado um país de “modernidade tardia”, em que o welfare state não passou de um simulacro9 . Dito de outro modo, o país vive uma espécie de “pré-modernidade”, situação da maioria dos brasileiros explorados e excluídos socialmente10 . A experiência do Estado do Bem-estar Social, pois, ficou longe de ser concluída no Terceiro Mundo, em que se contam grande parte dos países da Ásia, África, América Central e do Sul, onde há uma nítida contradição entre o quadro social real e os textos das leis e da Constituição11 .

Inseridas nesse contexto, as instituições fundamentais do Estado brasileiro continuam sendo as mesmas de há dois séculos. Nesse sentido, instituições como o Poder Judiciário vão perdendo sua legitimidade12 , pois estão se tornando cada vez mais inócuas diante das transformações que se operaram na técnica, na ciência e na economia mundial. Essas transformações acabaram por construir um mundo cujas bases materiais se voltam tanto contra os valores da modernidade, representada por suas instituições, como contra a realização dos direitos fundamentais, que ficam cada vez mais distantes da quotidianeidade do homem comum. Nessa senda, não há mais crença na vida democrática e no sentido do público; as antigas fontes de regulação, identificadas anteriormente com o próprio Estado, alienaram-se da vida prática e passaram a ser pautadas não mais pela produção de legalidade por meio de instituições visíveis, mas pela “mão invisível do mercado”, subordinada ao capital financeiro volatilizado, pautando um “novo colonialismo” que legisla “de fora”, exigindo, por meio de sucessivas imposições econômicas, o ajustamento do direito interno às necessidades do capital financeiro transnacional, sob pena de asfixia política e econômica do “país alvo”13 . O liberalismo, assim, tem conduzido a população dos países pobres à miserabilidade, minimizando a ação estatal e bloqueando a solidariedade humana pela lógica do mercado14 .

Isso tudo se reflete numa crise do Estado e numa crise jurídica. Essa crise jurídica é uma crise da cultura jurídica, que está imersa numa crise de autoridade, de valores éticos, políticos e culturais15 . Nesse sentido, a crise do Judiciário, que integra, por conseqüência, a crise jurídica, não é independente de uma crise do Estado, que se apresenta nas suas mais diversas formas, notadamente em seu aspecto institucional. Em decorrência da globalização e da quebra da idéia de unidade,Page 13orientada pela idéia de Constituição, a “crise institucional” tem-se caracterizado por uma “fragilização” da Constituição como elemento constitutivo do Estado16 . Em razão disso, a partir dessa crise institucional, surge uma necessidade de questionamento do caráter da Constituição como pacto fundante do Estado, ou seja, se ela ainda pode ser considerada um “contrato social”. Em face da crise do Estado-nação, pois, questiona-se: “como compatibilizar o assim denominado constitucionalismo do Estado Democrático de Direito com esse processo de desnacionalização, desinstitucionalização e desconstitucionalização?”17 . Este é o debate a que se propõe o presente estudo, ainda que sinteticamente.

2. A Constituição na visão procedimentalista

As posturas procedimentalistas (Habermas18 , Luhmann19 , Ely20 e Garapon21 ) têm visto a Constituição como uma “garantia para que o jogo político ocorra dentro da lei”22 . Nessa linha de pensamento, o papel dirigente da Constituição e a sua “força normativa” têm perdido força diante dos imperativos da globalização econômica. Segundo HABERMAS, os sistemas jurídicos surgidos no final do século XX, nas democracias de massas dos Estados sociais, denotam uma compreensão procedimentalista do Direito23 . Nesse sentido, a Constituição não pode mais ser entendida como uma “ordem” que regula primariamente a relação entre o Estado e os cidadãos. O poder social, econômico e administrativo necessita de disciplinamento por parte do Estado de Direito. De outro lado, porém, a Constituição também não pode ser entendida como uma ordem jurídica global e concreta, destinada a impor a priori uma determinada forma de vida sobre a sociedade. A Constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida. Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do Direito24 . Habermas defende os procedimentos de criação democrática do Direito, protegendo o direito de todos participarem de forma igualitária da “discursividade produtora dos sentidos jurídicos”. Assim, é indispensável a institucionalização de espaços imparciais, que viabilizem a “conversação das pluralidades” e a “produção de consensos”, a partir de umPage 14procedimento que permita a inclusão de todos os cidadãos nos ambientes discursivos. Desse modo, numa sociedade pluralista, a fundamentação das normas jurídicas é resultado de um procedimento democrático que garanta a participação de todos na formulação do Direito. A democracia procedimental apresenta uma função normativa, pois elabora um modelo de Direito que “pode se desenvolver de forma a cumprir sua tarefa de permitir a coexistência de diferentes projetos de vida sem ferir as exigências de justiça e de segurança, necessárias à integração social”25 . Serão legítimas e válidas as leis que receberem a aprovação de todos os cidadãos em um procedimento legislativo constituído legalmente26 .

O princípio democrático procedimentalista “revela que as normas jurídicas não se fundamentam apenas moralmente, mas também através de acordos negociados, ou barganhas, que se tornam ‘permitidas e necessárias quando apenas interesses particulares e não generalizáveis estão em jogo’”27 . A “auto-identificação de um povo também resulta de negociações pragmáticas e políticas”28 , e não somente de argumentos morais. Assim, é importante garantir os procedimentos democráticos para que as diferenças, a pluralidade de interesses, as posições divergentes, consigam participar do diálogo e da tomada de decisões. A legitimidade do Direito moderno somente pode ser compreendida a partir da própria racionalidade democrática moderna, pois o sentido do ordenamento não advém de sua forma ou dos conteúdos morais estabelecidos de forma antecipada. Decorre dos procedimentos legislativos viabilizados pela própria estrutura da democracia. Nesse modelo procedimentalista, a participação cidadã e o diálogo são fundamentais para a formação e justificação do Direito, sendo intolerável um protagonismo judicial que interfira na livre construção da discursividade e que evoque para si a tarefa de legislador político, limitando, desse modo, as potencialidades da sociedade civil de fazer chegar as suas demandas ao sistema político29 . Não se trata de submissão do Judiciário, mas de reconhecer que os discursos de justificação do Direito não se confundem e não podem ser usurpados pelos discursos de aplicação; razão pela qual a atividade jurisdicional deve manterse imparcial para não perturbar os espaços de formação do Direito30 . Os tribunais constitucionais não podem substituir os discursos políticos, engendrando uma rejustificação do Direito por meio de decisões que disponham dos argumentos legitimadores do Direito como se fossem legisladores indiretos. O tribunal constitucional, na perspectiva procedimentalista de Habermas, “deve ficar limitadoPage 15à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. O Tribunal não deve ser o guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais. Deve, sim, zelar pela garantia de que a cidadania disponha de meios para estabelecer um entendimento sobre a natureza de seus problemas e a forma de sua solução”31 . Não interessa uma pauta de valores previamente estabelecidos, mas a existência de um conjunto de procedimentos democráticos que organize o debate e estimule a participação das pluralidades instituidoras da legitimação da política e do Direito, papel que jamais poderá ser exercitado pelo Poder Judiciário32 .

As teorias sistêmicas, ao conferirem à Constituição um cunho meramente procedimental, têm resgatado e, de certa forma, sustentado essa idéia, pois pouco valor têm dado a ela como condição de possibilidade para a transformação social. Nessa perspectiva procedimentalista, pois, não se consegue ver o Direito, e por conseqüência, a Constituição como suporte para uma transformação da realidade. Nega-se ao Direito a possibilidade de produzir mudanças sociais, pois desinteressam em sua análise eventuais condicionamentos políticos, morais ou econômicos33 . A teoria de Niklas Luhmann é um exemplo da independência entre a política e o Direito: o Direito, nessa linha, é um sistema que tem sua própria linguagem e que se auto- reproduz, independentemente do que se passa no sistema político ou nos demais sistemas34 . Nessa...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT