Políticas públicas e tratamento da criminalidade numa sociedade democrática

AutorAndré Leonardo Copetti Santos
CargoMestre e Doutor em Direito Público pela UNISINOS
Páginas330-346

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1. Notas iniciais

O estabelecimento de alguns fundamentos políticos para a articulação de políticas públicas de combate à criminalidade, a partir do binômio constituído pela realidade concreta do fenômeno criminal no Brasil e pelas indicações formais constitucionais da atuação do Estado, compõe o principal desiderato do presente trabalho.

Inexiste aqui qualquer pretensão de exaurimento do tema ou de apresentação de fórmulas dogmáticas penais prontas e acabadas que venham a conduzir, inexoravelmente, os processos hermenêuticos de penalistas e criminólogos dedicados à política criminal ou à renovação dogmática do direito penal, face às demandas substanciais dadas pela realidade e pelo novo sistema normativo-axiológico constitucional. O que se busca é a fixação de uma direção política democrática a ser efetivamente assumida pelo Estado em seus objetivos de enfrentamento da criminalidade.

Os caminhos do texto são mais zetéticos do que propriamente dogmáticos, o que não significa que não se esteja empenhado na busca do estabelecimento de algumas definições de natureza prescritiva para o direcionamento do sistema normativo sancionatório e de natureza política para a atuação estatal no tratamento do problema da criminalidade.

2. A complexidade constitucional e os estímulos democráticos da atuação político-criminal

Com o deslocamento do centro de gravidade dos princípios orientadores do Estado de Direito, desde uma configuração formal - individualista, típica do Estado liberal, até uma perspectiva material-coletivista, característica do Estado social e, posteriormente, com a fusão dessas duas lógicas no modelo constitucional de Estado Democrático de Direito, que as supera, na medida em que sua funcionalidade não se restringe à agregação das duas anteriores, de forma fragmentada e estanque, mas a elas adiciona objetivos transformadores, algumas novas situações problemáticas se colocaram em relação à definição, extensão e funcionalidade do direito penal e, por consequência, sobre as diretrizes político-criminais que devem ser adotadas para o enfrentamento do problema da criminalidade.

Na medida em que foram redefinidos constitucionalmente, sem maior precisão, os espaços individuais e não-individuais e, também, em função disso, as possibilidades de intervenção do Estado, passou a haver a necessidade de rediscussão acerca das medidas político-criminais que melhor se ajustem a um modelo de Estado Democrático de Direito que deve ser aplicado a um país periférico como o Brasil.

Nessa busca, é preciso levar em conta um quadro sócio-histórico extremamente complexo. Por um lado, as liberdades individuais foram fustigadas em um período autoritário recente e, portanto, não é recomendável, para qualquer projeto democrático, o afrouxamento destas tutelas fundamentais. Pelo contrário, precisam ser amplamente

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garantidas. Por outro, há de se considerar que no Brasil há, ainda, uma imensa massa de miseráveis, locus principal de proliferação de novos criminosos, razão pela qual persistem as demandas de concretização de políticas sociais, o que constitui caminho inexorável de qualquer percurso histórico de evolução civilizatória de um país rumo a uma democracia substancialmente considerada. Se tais situações não fossem já suficientes para complexificar a reflexão sobre políticas criminais adequadas a uma sociedade democrática, ainda não se pode olvidar que a criminalidade no Brasil tem se reproduzido significativamente, e isto tem gerado um grande apelo social a um direito penal cada vez mais repressor. A tudo isto ainda é preciso agregar que qualitativamente o fenômeno criminal no Brasil assume características muito particulares, onde a criminalidade tradicional não recua um só milímetro, pelo contrário, avança, convivendo, lado a lado, com uma criminalidade organizada cujos interesses estão voltados não aos tráficos em geral, mas também lança seus soldados em direção ao patrimônio público.

O ponto de partida de qualquer redefinição político-criminal deve considerar, num Estado Democrático de Direito, dentre outros elementos, a estrutura axiológico-normativa que dá base a toda concretude operacional do Direito. Nesse aspecto, a Constituição Federal de 1988 representou uma guinada em relação à toda histórica constitucional no Brasil. Essa transição paradigmática axiológica-normativa implica, por um lado, em um projeto de liberdade e de segurança individual do cidadão, e, por outro, de garantia de seus espaços materiais individuais e de realização de uma democracia social que pressupõe a aproximação de um ideal de igualdade substancial dentro de uma perspectiva de pertencimento a uma comunidade que aspira ao bem comum e que, por isso, não deve ocorrer somente através da abstenção do Estado, mas com a garantia positiva, a cargo deste, de uma existência digna do ser humano. Esta perspectiva na pode ser desdenhada quando se fala em políticas criminais em um Estado Democrático e Social de Direito, no qual não há uma liberdade de conformação do legislador, mas uma vinculação ao projeto constitucional, cuja complexidade contempla tutela ao indivíduo e guarida ao âmbito de direitos e interesses não individuais, além de prodigamente prever proteções a especificidades culturais.

Nesse sentido que Canotilho fala da "força dirigente dos direitos fundamentais" e as implicações dessa concepção nas funções estatais, reforçando que a força dirigente e determinante dos direitos a prestações (económicos, sociais e culturais) inverte, desde logo, o objeto clássico da pretensão jurídica fundada num direito subjetivo: de uma pretensão de omissão dos poderes públicos (direito a exigir que o Estado se abstenha de interferir nos direitos, liberdades e garantias) transita-se para uma proibição de omissão (direito a exigir que o Estado intervenha ativamente no sentido de assegurar prestações aos cidadãos). A "polemização" dos fundamentos do Estado é também patente: os direitos a prestações suscitam a discussão do tipo de Estado (capitalista, socialista) que melhor os pode assegurar; pressupõem uma tarefa de conformação social activa por parte dos poderes públicos, sobretudo do

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legislador; reclamam nova distribuição de bens e rendimentos, e, até, uma transformação social de estruturas económicas3.

Com isso, quer-se aqui dizer que a ideia de uma proposta de política criminal adequada a país como Brasil, que hoje já deixou de ser internacionalmente qualificado como subdesenvolvido, em desenvolvimento, de terceiro mundo ou periférico, para ser adjetivado de emergente, pressupõe uma vinculação do legislador ao binômio sistema normativo constitucional abstrato/problemas concretos da realidade social. Não há de se falar aqui de liberdade de conformação do legislador penal. Este sofre as imposições e exigências decorrentes do binômio antes referido, devendo sua atuação estar voltada à realização do projeto contido na Carta Constitucional, pois nele está encerrado uma concepção de bem, de justiça social e, em última análise, de felicidade. Nesse sentido, lapidares são as palavras de Streck, que entende, na esteira da proporcionalidade, que não há liberdade (absoluta) de conformação legislativa nem mesmo em matéria penal, ainda que a lei venha a descriminalizar condutas consideradas ofensivas a bens fundamentais. Nesse sentido, se de um lado há a proibição de excesso (Ubermassverbot), de outro há a proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). Ou seja, o direito penal não pode ser tratado como se existisse apenas uma espécie de garantismo negativo, a partir da garantia de proibição de excesso. Com efeito, a partir do papel assumido pelo Estado e pelo Direito no Estado Democrático de Direito, o direito penal deve ser (sempre) examinado também a partir de um garantismo positivo, isto é, devemos nos indagar acerca do dever de proteção de determinados bens fundamentais através do direito penal4 .

Algumas questões prévias são inevitáveis considerar. Em primeiro lugar, é preciso tomar em conta o fracasso histórico do modelo repressivo clássico da modernidade, consistente no inflição de castigos à alma mediante as penas privativas de liberdade. A comunidade científica não possui mais qualquer dúvida sobre a escassa efetividade e sobre os elevados custos sociais deste modelo, com irrisórios e desproporcionais benefícios em relação aos males causados aos indivíduos. Esse modelo tem chegado sempre mal e sempre tarde para o tratamento do fenômeno criminal, pois ao confundir política penal com política criminal e ao tratar do efeito e não da causa, firma definitivamente sua incapacidade e inefetividade para tal tarefa social. Há uma incapacidade congênita da prisão em exercer efeito positivo qualquer sobre a criminalidade.

Em segundo lugar, como observa Pablos de Molina, se o crime não é um fenômeno causal, fortuito ou aleatório, produto do azar ou da fatalidade, mas um acontecimento altamente seletivo, a existência de informações empíricas confiáveis

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sobre as principais variáveis desse fenômeno abre imensas possibilidades de adoção de políticas criminais eficazes5.

Não há dúvidas que na evolução secularizada do Estado de Direito, do paradigma liberal ao Democrático de Direito, houve uma paulatina redução das liberdades individuais em decorrência da ampliação dos espaços de intervenção estatal, situação que confirma a anotação de Benda ao referir que é consecuencia ineludible del...

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