Política de saúde para a epidemia da aids do Brasil e México no contexto do acordo trips

AutorJulio Cesar Acosta-Navarro - Maria Cristina Cacciamali - Amaury P. Gremaud - José R. Carvalheiro - Moacyr C. Nobre - Silvia Cárdenas-Prado
Páginas92-103

Page 93

Introdução

Durante as últimas duas décadas, a sociedade testemenhou dois fenômenos sociais que deixaram uma profunda refiexão para esta e as próximas gerações. Em primeiro lugar, a epidemia de HIV/AIDS (Vírus da Imunodeficiência Humana/Síndrome de Imunodeficiência Adquirida), com suas caraterísticas históricas pouco usuais e alta letalidade; em segundo lugar, a intrusão de leis de propriedade intelectual na vida cotidiana, como o Acordo TRIPS - (Trade Related Intellectual Property Subjects), com amplas repercusões sobre a saúde pública.

Segundo vários analistas, a epidemia de HIV/AIDS foi de tal magnitude que somente pode ser comparada a dois eventos trágicos na história da humanidade. Primeiro, a epidemia da peste negra, no século XIV (que causou, aproximadamente entre 20 e 30 milhões de mortes, quase 2/3 da população europeia da época) (MAYER, 2006), e depois, a epidemia da infiuenza (gripe) espanhola, no início do século XX (estimada em 50 milhões de mortes) (MORENS, 2008). Em países desenvolvidos, a introdução de tratamento antirretroviral (ARV) altamente ativo e a disponibilidade de drogas para as infeções oportunistas levaram a uma redução substancial na mortalidade pela AIDS. Diversos fatores inter-relacionados determinam o acesso às drogas essenciais, incluindo aquelas para tratar o HIV e as infecções oportunistas. Entre eles, estão: uso apropriado, aspectos econômicos, seleção da droga, legislação e regulação, fabricação, pesquisa e decisões de desenvolvimento (COHEN-KHOLER, 2008). Como a epidemia de HIV/AIDS é bem recente na história médica, a maioria das drogas criadas especialmente para tratar a infecção pelo HIV e mudar o curso evolutivo fatal da AIDS já está sob patentes. Isto torna o tratamento contra a AIDS menos acessível em comparação àqueles para os quais existem alternativas de medicamentos genéricos. A proteção de patentes, neste caso, garante direitos exclusivos para uma invenção e evita a concorrência de genéricos. Esta certamente é uma das razões possíveis para a limitada disponibilidade de medicamentos e a dificuldade no cumprimento do tratamento. Neste contexto, muitos estudiosos, consideram que o Acordo TRIPS seja responsável pela crise global atual de medicamentos para o HIV/AIDS (SATYANARAYANA, 2005).

Page 94

O objetivo deste trabalho foi analisar retrospectivamente o significado da interseção destes dois fenômenos nos últimos anos nos casos do Brasil e do México. Pretendemos responder à seguinte questão: Como foi a política de saúde de combate à epidemia do HIV do Brasil e do México - em termos do modelo do sistema de saúde, atendimento aos portadores de HIV, acesso a medicamentos e resultados-no contexto do Acordo TRIPS? Os procedimentos metodológicos foram baseados na análise de fontes primárias de relatos e opiniões de profissionais de diversas instituições envolvidas na problemática em ambos os países e no exame de fontes secundárias (documentos oficiais, livros, jornais, publicações especializadas e sites oficiais de diversas instituições).

Resultados e discussão

PANORAMA HISTÓRICO DO TRATAMENTO DA EPIDEMIA DO HIV/AIDS

Sem tratamento com medicação ARV, o curso fatal da AIDS leva aproximadamente um ano (KALLINGS, 2008). No início da epidemia, o tratamento era focado sobre as infecções oportunistas. Levou algum tempo para se achar um tratamento melhor. O tratamento com medicamentos ARV se iniciou em 1987 com zidovudina (AZT). Curiosamente, AZT é um produto resultante da colaboração sistemática entre uma empresa privada (British WelcomeTrust) e outra pública (National Cancer Institute- NCI, dos Estados Unidos). Ambas as instituições tinham o AZT na suas reservas de componentes com possível atividade citotóxica para tratamento do câncer, e acreditou-se que o AZT, sendo um análogo de nucleósido (timidina), poderia inibir a síntese de HIV. Houve remarcável sucesso inicial, mas o tratamento com AZT como monoterapia não teve sucesso em razão do desenvolvimento de resistência viral e um número elevado de efeitos colaterais. Nos anos 90, outros análogos de nucleósidos foram desenvolvidos, também como os inibidores de transcriptasa reversa não nucleósidos. Drogas com outros modos de ação foram introduzidas, incluindo inibidores da protease e inibidores da entrada, e hoje já há mais de vinte diferentes drogas no mercado. Porém, a verdadeira revolução veio com o tratamento que combinava três diferentes drogas, introduzido em 1996, desse modo, reduzindo o risco de resistência e incrementando a eficácia no longo prazo. Em 6 de fevererio de 2001, a companhia indiana Cipla ofereceu terapia tripla para tratamento de AIDS por 350 dólares por paciente/ano à ONG Médicos sem Fronteiras (MSF) e a 600 dólares por paciente/ano para governos de países em desenvolvimento. Naquela época, o preço do mesmo "coquetel" de laboratórios transnacionais estava entre 10 e 15 mil dólares por paciente/ano. A dramática redução de preços da Cipla, que recebeu destaque na mídia, deixou claro o fato de que as companhais multinacionais estavam abusando de sua posição monopolista em meio a um desatre humano catastrófico (HOEN, 2009).

O IMPACTO DA EPIDEMIA DE HIV NO BRASIL E NO MÉXICO

A América Latina é a terceira região, depois da África e da Ásia, em comprometimento de pessoas infectadas pelo HIV. Na América Latina, o total estimado de novas infecções

Page 95

pelo HIV em 2008 foi de 170 mil e, em consequência, o número de pessoas que vivem com o vírus ascende a 2 milhões. Os dados mais recentes sugerem que a epidemia se mantém estável na América Latina. A prevalência regional do HIV é de 0,6%, caracterizando a epidemia na região como de baixo nível e concentrada (UNAIDS/WHO, 2009). O Brasil e o México são os maiores países da América Latina em área territorial, os mais populosos e as maiores economias da região. Os dados epidemiológicos sobre HIV/AIDS no Brasil e no México são apresentados na Tabela 1. No Brasil, a AIDS tem se configurado como epidemia concentrada. No início da década de 1980, ela atingiu principalmente os usuários de drogas injectáveis (UDI), homossexuais e bissexuais masculinos (HSH), assim como os indivíduos que receberam transfusão de sangue e hemoderivados. O primeiro caso de AIDS foi notificado retrospectivamente na cidade de São Paulo em 1980. A este caso inicial seguiram-se outros, basicamente restritos às denominadas metrópoles nacionais, tendo como categorias de exposição preponderantes os HSH, os hemofílicos e as demais pessoas que receberam sangue e hemoderivados. Em razão de os hemofílicos receberem habitualmente componentes sanguíneos de um conjunto (pool) de doadores - até então, habitualmente pagos pelas doações -, este segmento populacional foi rápida e profundamente atingido no início da epidemia no Brasil. Entretanto, à extensa disseminação inicial seguiu-se certa estabilização em anos posteriores, em especial entre...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT