A política jurisprudencial na União Européia: o princípio do reconhecimento mútuo e a livre circulação de mercadorias

AutorJoana Stelzer/Karine de Souza Silva
CargoDoutora e Mestre em Direito (UFSC)/Doutora e Mestre em Direito (UFSC)
Páginas144-149

Joana Stelzer1

Karine de Souza Silva2

Page 144

1 Introdução

O objetivo deste estudo é refletir sobre o chamado princípio do reconhecimento mútuo, especialmente quanto à importância para a livre circulação de mercadorias no âmbito da União Européia. Para tanto, será feita uma breve avaliação sobre as causas que motivaram o surgimento desse princípio, a importância do ativismo judicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e a consolidação do reconhecimento mútuo, enquanto cláusula de inserção obrigatória nas legislações nacionais.

A livre circulação de mercadorias na União Européia é o resultado de um intrincado processo político-jurídico.3 A base jurídica fundadora a propiciar um irrestrito trânsito de bens concentra-se no texto do Tratado da Comunidade Européia4 , especialmente nos artigos 23 a 31, CE.5 Do ponto de vista político, a delimitação de competências resulta dos artigos e , CE, concernentes aos objetivos e aos meios que o bloco busca almejar. A partir dessas grandes diretrizes, o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias (TJCE) iniciou uma intensa atividade de política jurisprudencial, não somente buscando resolver as lides que lhe eram submetidas, porém, criando um corpo de regras capaz de desmantelar as fronteiras internas e favorecer a conquista de um mercado único.

Nesse ponto, cabe salientar a capacidade criativa da jurisprudência comunitária, na qualidade de fonte direta e imediata de direito6 , uma vez que os acórdãos oriundos do TJCE não se localizam na base do ordenamento jurídico, com mínima força normativa ou restritos a soluções pontuais das lides cotidianas. Desde o início da construção comunitária, à Corte coube um papel singular, responsável pelo "respeito do direito na interpretação e aplicação do presente Tratado"7 .

Relativamente à formação do chamado "Mercado Único para 1993", os acórdãos deveriam possuir função estratégica, vale dizer, capazes de articular os diversos ordenamentos existentes e fazê-los progredir concretamente. Sob tal vertente, o Advogado-Geral, Marco Darmon, no caso The Queen/Royal Pharmaceutical Society of Great Britain, Ex Parte Association of Pharnaceutical Importers destacou que a "jurisprudência do Tribunal relativamente à livre circulação de mercadorias dá testemunho da sua determinação em realizar os objetivos da integração neste domínio".8 Com efeito, o direito comunitário caracteriza-se pela dinamicidade de suas propostas e ações, tendo se afastado da paralisia da codificação. A ação legislativa encetada pela Comissão e pelo Conselho, aliada à produção jurisprudencial do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, demonstrou ser uma valiosa combinação para levar adiante o projeto integracionista.

2 O Princípio do Reconhecimento Mútuo: um princípio fundamental à livre circulação de mercadorias na União Européia

A livre circulação de mercadorias representa a mais importante das quatro liberdades de integração, pois forma o chamado "núcleo duro" de um bloco econômico. A partir da consagração de um irrestrito trânsito de bens, podem erguer-se outras conquistas (liberdades de serviço, pessoas e capitais) com mais facilidade. Desde o surgimento da Comunidade Européia (1957), havia um forte propósito nesse sentido e, mesmo antes, com o Tratado da Comunidade Européia do Carvão do Aço (1951), a liberdade de mercadorias representava um forte anseio.

O almejado mercado único aparece, assim, como um grande espaço econômico integrado, comum aos Estados-membros participantes do processo de integração, no qual as pessoas e os agentes econômicos devem atuar livremente, gozando do direito de compra e venda sem qualquer espécie de restrição. Tradicionalmente, as barreiras levantadas para impedir a entrada de produtos classificam-se em tarifárias e não-tarifárias ou, sob melhor terminologia, aduaneiras e nãoaduaneiras.9

Na Europa comunitária havia sido estabelecido um calendário progressivo de doze anos (divididos em três fases de quatro anos cada uma) para a eliminação interna dos direitos aduaneiros (prazoPage 145 final para 31 de dezembro de 1969). Em 1o de julho de 1968, ou seja, dezoito meses antes do previsto, a pauta comum era aplicada em todas as fronteiras internas da Comunidade. Desde então, os direitos aduaneiros deixaram de representar um obstáculo às trocas intracomunitárias. Na prática, porém, a Europa verificou uma série de imposições lançadas pelos Estados-membros que, de alguma forma, buscavam proteger os mercados nacionais.

Com efeito, o êxito obtido em relação às medidas aduaneiras não representou o imediato afastamento das barreiras não-aduaneiras. Pelo contrário, impedidos de impor objeções de cunho fiscal sobre as mercadorias importadas, os Estados-membros tornaram ainda mais elaborados os obstáculos técnicos. Com isso, restava afastada a concepção calcada na idéia de que o alcance da união aduaneira pudesse desencadear um mecanismo automático rumo a uma etapa mais evoluída de integração. Embora objetivos audaciosos continuassem a ser acalentados, emergia a consciência sobre a necessidade de novas iniciativas que pudessem levar a proposta integracionista adiante. Sob tal ímpeto, nas instituições comunitárias também nascia uma crescente responsabilidade concernente à realização de um mercado único.

Sob tal espírito, envolveu-se o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias. A co-responsabilidade em propiciar o desejado avanço comercial da União Européia mobilizou a Corte em um intenso ativismo. Sob tal diapasão, as lides submetidas à apreciação judicial não eram compreendidas como mero objeto de solução, mas possuíam os contornos de uma lição de direito comunitário. Entre os acórdãos que marcaram o intenso labor do Tribunal e consagraram a livre circulação de mercadorias no interior comunitário, destaca-se a decisão conhecida por Cassis de Dijon.

No período histórico dos anos setenta, a Comissão encontrava dificuldade para harmonizar as múltiplas legislações dos Estados-membros através de Diretivas. Afinal, coexistiam distintas regulamentações sobre o mesmo território comunitário que, não raras vezes, desempenhavam papel protecionista dos mercados nacionais. Havia necessidade, portanto, de erigir uma estratégia político-jurídica que fosse capaz de desfazer as barreiras nacionais.

Nesse ambiente caracterizado pela imposição de obstáculos e pela diversidade normativa dos Estados-membros emergiu o princípio do reconhecimento mútuo. Em decorrência da importância desempenhada na consolidação de um irrestrito trânsito de bens, cumpre relembrar o marco histórico que motivou essa demanda.

Em setembro de 1976, a empresa Rewe solicitou ao monopólio federal do álcool alemão uma autorização para importar da França um lote de um famoso licor, designado Cassis de Dijon. Inicialmente, foi informado à empresa sobre a impossibilidade de realizar a importação, pois na Alemanha restava proibida a venda de licores daquela categoria, ou seja, com teor alcoólico entre 15% e 20%. Nos moldes de uma lei federal germânica, a comercialização dos licores destinados ao consumo humano era autorizado, somente se contivessem um teor não inferior a 32%, pois havia um entendimento de que tal bebida, com baixa graduação alcoólica, poderia causar dependência, resultando prejuízo à saúde. Finalmente, lembrava o governo alemão "que face à inexistência de uma regulamentação comum de produção e comercialização do álcool [...] compete aos Estadosmembros regulamentar, cada um seu território, tudo o que diga respeito à produção e comercialização do álcool e bebidas alcoólicas."10 No modo de ver da empresa Rewe, o posicionamento alemão violava o Tratado da Comunidade Européia, especialmente o artigo 30, TCE (atual artigo 28, CE).11

Em síntese12, de um lado, havia a alegação de incompatibilidade entre a legislação de um Estado-membro e o artigo 30, TCE; e, de outro, a tese que sustentava a competência do governo germânico para estipular limites às bebidas alcoólicas, maxime porque se tratava de uma medida não discriminatória (aplicável também às bebidas alemãs), restando ausente a intenção de dificultar o trânsito de mercancias. No intuito de solucionar o conflito, foi invocado o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias.

A Corte, com seu ativismo, não somente traria a necessária solução ao dilema, como erigiu um princípio basilar ao futuro da liberdade de mercadorias na Europa: o princípio do reconhecimento mútuo. Dito de...

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