Ética e a cidadania como contribuições protestantes para a história da educação

AutorAlvori Ahlert
CargoUniversidade Estadual do Oeste do Paraná
Páginas362-384

Alvori Ahlert1

    Ethics and the citizenship as protestant contributions for the history of education

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Introdução

O Renascimento e a Reforma Luterana impactaram os séculos XV e XVI e marcaram o nascimento da Modernidade. A Renascença, como movimento intelectual, estético e social, e a Reforma, conhecida como um movimento religioso que teve como objetivo inicial a reforma da Igreja Católica Romana e que resultou na divisão da igreja cristã ocidental em "católicos romanos", de um lado, e cristãos "reformados" ou "protestantes", de outro, provocaram profundas modificações na vida religiosa, social e política ocidental.

Com relação à Reforma, Eby (1976, p. 1) afirma que "Nenhum aspecto da vida humana ficou intato, pois abrangeu transformações políticas, econômicas, religiosas, morais, filosóficas, literárias e nas instituições, de caráter definitivo; foi, de fato, uma revolta e uma reconstrução do Norte". Importante contribuição nesse movimento teve Martin Lutero, que nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na Alemanha. Foi educado de modo severo. Em 1501, entrou na Universidade de Erfurt para estudar na faculdade de artes, que concluiu com o título de mestrado em janeiro de 1505. Lá estudou a filosofia aristotélica, na tradição nominalista. Já começava ali sua oposição ao tomismo. Enquanto lecionava na faculdade de artes, começou a estudar Direito, mas ainda, no mesmo ano, decidiu tornar-se monge, e entrou para o mosteiro agostiniano de Erfurt. Ali aprendeu as posições dogmáticas do occamismo. Formou-se monge em 1507 e, dois anos depois, começou a lecionar sobre a ética de Aristóteles na universidade. Em 1510, iniciou seu confronto com o poder papal. Foi para Roma para resolver discussões internas dos agostinianos. Lá ficou escandalizado com o luxo da igreja e com sua degeneração. Depois se instalou em Wittenberg, para lecionar teologia na universidade, onde passou a maior parte de sua vida intelectual.

Nesse período, cresceu o confronto com a igreja romana até que, em 31 de outubro de 1517, publicou 95 teses, as quais atacavam a venda de indulgências e expunham seu posicionamento teológico. Suas teses foram amplamente divulgadas. Ferrenho opositor do tomismo, nesse período, Lutero também rompeu com a teologia occamista. Em 1517, num debate sobre a escolástica, condenou a doutrina da graça occamista e a fusão entre teologia e filosofia. No ano de 1520, Lutero realizou uma intensa produção intelectual. Em À nobreza cristã da nação alemã acerca do melhoramento do estado cristão, dirige-se aos leigos que comandavam o "Estado cristão",

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senhores, príncipes e imperador. Nesse escrito, sustenta o sacerdócio geral de todos os crentes, pois acredita que todos são sacerdotes e ministros perante Deus, apenas com funções diferentes. Separa as funções do clero, ordenado para anunciar o evangelho e distribuir os sacramentos, das do poder temporal ou secular, que tem a tarefa de administrar a sociedade e manter a ordem. Na primeira parte desse escrito, ataca severamente o Papa e seu colegiado, não a igreja como tal, e condena suas doutrinas eclesiais e sociais. Na segunda parte, expõe suas propostas sobre as reformas necessárias na igreja, na educação e na sociedade. Esse escrito teve sua primeira edição de 4000 exemplares esgotada em uma semana. Sua polêmica com o papado aparece forte num escrito do mesmo ano, Do cativeiro babilônico da igreja. Nesse ano, também redigiu seu livro Da liberdade cristã. Nele, sustenta que o cristão é livre de todas as coisas, mas servidor a todos por meio do amor.

Tais posições levaram o monge agostiniano para uma dieta (assembléia imperial) na cidade de Worms, convocada pelo Imperador Carlos V. A igreja exigiu retratação sobre seus escritos, porém, Lutero não pode realizá-la, conforme ele mesmo argumenta: "Não posso e nem quero revogar o que eu disse, a menos que seja convencido de erro por meio da Palavra da Bíblia e por outros argumentos claros, porque não é aconselhável agir contra a consciência. Aqui estou; de outra maneira não posso. Que Deus me ajude. Amém". Por causa disso, o imperador julgou Lutero um fora-da-lei. Foi proscrito e, a partir daí, corria risco de vida. Foi acolhido pelo Duque Eleitor da Saxônia, que o manteve sob sua custódia no Wartburgo. Ali permaneceu escondido. Nessa reclusão forçada, pôs-se a traduzir o Novo Testamento do grego para o alemão. Também prefaciou vários livros da Bíblia, na busca por ajudar em sua interpretação. À medida que o movimento reformista se espalhava, Lutero voltou para a Universidade de Wittenberg para influenciar o rumo dos acontecimentos. Foi pregador, influenciou enormemente a consciência do povo alemão. Ajudou a promover uma ampla reforma educacional, criando escolas para meninos e meninas, ginásios e universidades.

Entretanto, não se deve desconsiderar que Thomas Nipperdey alerta para o grande número de armadilhas que, ao longo da história, tentaram seqüestrar ou enquadrar em sua linha de pensamento o reformador Martin Lutero. A armadilha liberal do século XIX tentou transformá-lo num grande libertador, num grande lutador contra as hierarquias. A armadilha conservadora transformou-o num fato histórico quase banido da ordem do dia.

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A armadilha nacional-protestante afirmava para si que Lutero, antes de qualquer outra coisa, era um alemão. Em meio a isso, Nipperdey lembra que Lutero era um homem de seu tempo medieval. Sua preocupação era uma preocupação arcaica: Como posso encontrar o Deus da misericórdia? (NIPPERDEY, 1983). Ainda, ele estava profundamente influenciado pelo pensamento agostiniano. Apesar disso, seu pensamento e suas ações influenciaram pensadores modernos e contribuíram, assim, para a construção da cidadania moderna.

Educação e ética em Lutero

Seus escritos mais pragmáticos sobre a educação foram: Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha, para que criem e mantenham escolas cristãs, publicado em 1524, e Uma prédica para que mandem os filhos para a escola, de 1530.2 Neles, estão afirmações sobre a necessidade urgente de uma ampla ação em favor da educação do povo.

Em Aos conselhos de todas as cidades da Alemanha..., Lutero objetiva estimular e desafiar a sociedade para a responsabilidade com a educação e a formação da juventude. O desenvolvimento de um indivíduo temente a Deus, responsável e ético, com capacidade de vivenciar sua liberdade, requer pessoas bem instruídas. Lutero percebe um abandono desses compromissos. A transição de um mundo medieval, onde tudo é abarcado pelo contexto religioso, para um mundo laico deixou as pessoas sem perspectivas, porque o velho modelo de vida estava desaparecendo e o novo ainda estava indefinido. Com isso, houve desinteresse pela educação.

Em primeiro lugar, constatamos hoje em todas as partes da Alemanha que as escolas estão abandonadas. As universidades são pouco freqüentadas e os conventos estão em decadência. [...] Sim, porque o povo carnal se dá conta de que não pode mais colocar os filhos, as filhas e os parentes em

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conventos e instituições. Já não pode mais expulsálos de casa e deixar que vivam às custas de estranhos. Por isso ninguém mais quer proporcionar ensino e estudo aos filhos. Dizem: Pois é, o que vão estudar se não podem tornar-se padres, monges e freira? Tem que aprender alguma profissão com que possam sustentar-se (LUTERO, 2000a, p. 8-9).

Lutero não especificou uma concepção de educação em seus textos. Ele estava preocupado, em primeiro lugar, com a formação de pessoas para a vida eclesiástica, mas sua visão comunitária levou-o a posicionar-se também sobre a formação geral. Nesse sentido, é possível detectar uma concepção de educação que visa à formação de um ser humano integral. Dá para afirmar, guardadas as devidas distâncias no tempo e no espaço, que essa concepção já apontava para algumas similaridades com a concepção freireana, que vê na educação um processo de humanização do ser humano, uma forma de o ser humano tornar-se mais ser humano (FREIRE, 1987). Lutero, ao fazer distinção entre a pregação da palavra de Deus e a tarefa do governo secular de manter a paz, a justiça e a vida temporal e governar para elas, afirma que o governo secular:

[...] é uma maravilhosa ordem divina e uma excelente dádiva de Deus. Ele criou esse governo e quer vêlo preservado, já que não pode abrir mão dele. Se não existisse, ninguém poderia sobreviver ao outro. As pessoas se devorariam entre si como fazem os animais irracionais. É função e honra do ministério da pregação transformar pecadores em verdadeiros santos, mortos em vivos, condenados em bem-aventurados, servidores do diabo em filhos de Deus. Da mesma maneira, é obra e honra do governo secular transformar animais selvagens em seres humanos e preservá-los como tais, para que não se tornem animais selvagens (LUTERO, 2000a, p. 88).

Fundamentado em textos bíblicos, Lutero preconiza uma educação que desenvolva um ser humano capaz de se relacionar mutuamente por meio da razão, e não da força.

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Toda a experiência na História prova: nunca a força, privada da razão ou da sabedoria, teve sucesso. [...] não é o direito dos punhos, mas o direito da cabeça, não a força, mas a sabedoria ou a razão que deve reinar tanto entre os maus quanto entre os bons (LUTERO, 2000a, p. 90).

Para ele, a educação deve receber todos os investimentos possíveis, pois a educação é a forma de elevar as conquistas humanas, e não a guerra.

No entanto, se alguém der um ducado [moeda de ouro] para a guerra contra os turcos (mesmo que não atacassem), seria justo que doasse cem ducados para educação. Mas com estes ducados se poderia educar apenas um jovem, para tornar-se um adulto verdadeiramente cristão. Um verdadeiro cristão é melhor e mais útil que todos os seres humanos na terra (LUTERO, 2000a, p. 11).

No entanto, talvez o mais...

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