Tibieza governamental

AutorWladimir Novaes Martinez
Ocupação do AutorAdvogado especialista em Direito Previdenciário
Páginas47-53

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"Os homens confessam de bom grado a crueldade, a cólera e até a avareza, mas nunca a covardia, porque essa conissão os poria en-tre os selvagens e mesmo numa sociedade civilizada, num perigo mortal" - Anatole France.

Admitam-se dois dogmas: um líder tem de liderar e o liderado carece de liderança. Aqui, a covardia não signiica apenas medo, receio ou temor diante de um perigo avassalador. Mais que isso, quer dizer leniência, complacência ou uma acomodação diante de medidas que têm de ser tomadas, e não se tomam.

Transformação do cidadão

O Estado é tíbio; quando ele tenta governar, o governante se encolhe em posição fetal. Pensa, primeiro, ele, em si próprio. Depois: em benefício dos apaniguados próximos, usufruam migalhas da inapetência. Por último, todo o tempo discursa em favor de um povo invisível. Com o qual não tem o contato exigido e sem o qual suas palavras não são ouvidas.

Uma vez constituído um poder, quando da troca de gestores, quem assume acomoda-se a tal postura, anuindo com sinecuras institucionais assentadas (que julga serem naturais, como lhes dizem, sempre foi assim).

Alguém imbuído de disposição contrária é logo absorvido pelo sistema, não tem escapatória.

Uma respeitável causa dessa levedura reside no interesse dos que, sem pertencer efetivamente ao governo, dele se locupletam. Partem de certo pressuposto sorrateiro de não se apropriarem de nada, de ninguém, a coisa pública é res nullius, uma entidade material abstrata sem pertencer a ninguém.

O acuado administrador defende o juízo erosivo de que as coisas são dessa maneira e nada poderá ser modiicado ou seria muito perigoso mudar. De vez em quando apanha boi de piranha e o sacriica com aguda severidade para icar claro que está atento. Essa vítima consciente do sistema não reclama, mantém a boca fechada, sob acordo de cavalheiros, que lembra o jogo do bicho.

O ilósofo Platão (428-347 a.C.) airmou: "O preço a pagar, pela tua não participação política, é seres governados por quem é inferior".

Se for assim, esse azar é nosso. Pena que não nos ensinou como é participar.

Temor de punir

Num passado remoto, alguém concluiu que se ameaçasse, inibisse ou punisse certas pessoas, elas não mais arrostariam a ordem estabelecida. Emergiu uma força constrangedora: a da sanção. Mais tarde, o fulcro cientíico de uma parte teórica da criminalística.

Teoricamente, seria solução bem plausível: afastar do meio social ou desapropriar quem não se conduz como desejado. Um domínio policial que deveria ser monitorado pela sociedade e esta poderia ser uma boa ocupação proissional. Então surgiram as primícias do Direito Penal.

Infelizmente, os mandamentos do Código de Hamurábi foram abandonados.

De um lado, vislumbra-se governo pessoal, não diretamente atingido pela rara reação popular e baixíssimo estímulo institucional. Do outro lado, uma entidade que projeta o indivíduo, estrutura a organização judiciária, faculta ordenamento que, em vez de ser uma atividade-meio, se torna uma atividade-im em si mesma.

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Cada um dos componentes, desconiado e ajuizando todo o tempo que poderá ser punido um dia.

Portanto, cuidar de si mesmo é sempre bom.

Como o poder é benfazejo para o mandante, contagiante para os circundantes, meio magníico de realização humana, os seus inindos tentáculos crescem naturalmente.

Com a Revolução Francesa embriagada pelo sucesso, surgiu o direito do devedor, do suspeito, do indiciado, do que foi condenado. Com alguns exageros supervenientes jamais controlados por uma simples paúra dos homens que receiam vir a ocupar esse cenário. O Direito Penal não foi capaz de obstaculizar os excessos humanos, julgou ser melhor permitir que o culpado ique solto, com receio de prender o inocente. Criou-se a teoria de que, sem provas, o direito inibidor não é nada.

Ah! A prova. Além da declaração "não temos ciência da acusação", essa é a palavra mais ouvida. E o que dizer da ilicitamente obtida?

Quantos criminosos foram acobertados em nome da falta de convencimento? Quantas ações morreram no berço, se seus elementos não eram convincentes? Sem falar naqueles arquivados em razão da obtenção imoral da persuasão.

Os delitos não provados continuam sendo delitos. Ignorá-los é raciocínio jurídico. Claro que não se pode censurar a prova como instituto, mas o mesmo não se pode falar de uma concepção que elege a forma jurídica sobre o conteúdo material do fato.

Um dogma assente assevera que, no caso de dúvida, é preferível não inibir qualquer suspeito, admitindo sua inocência, até prova em contrário ou chegar o trânsito em julgado, o que equivale a permissividade sem quaisquer limites.

Em todo o caso, cinicamente, diz-se que a vítima morreu mesmo, nada vai ressuscitá-la. Aos parentes dos ofendidos, resta ir à televisão em prantos e pedir justiça, quando o que querem é a justa vingança. Quase toda estuprada é culpada da agressão...

Nietzsche disse que: "Sacralizar a vingança em nome da justiça - como se no fundo a justiça fosse apenas uma evolução do sentimento de estar ferido".

Luiz Fernando Vianna garante: "A justiça está para a vingança como a civilização está para a barbárie" ("Justiça ou Vingança", in Folha de São Paulo de 23.1.15, p. A-2).

O Estado é conivente; não tem disposição de coagir, foi constrangido pela instituição punitiva, confundindo o inalienável e o indiscutível direito das pessoas com a possibilidade real de o suspeito fugir à pena.

Age assim porque não entendeu o papel da disciplina necessária, principalmente quando a pena não recupera o criminoso.

Os magistrados têm medo dos criminosos e deveria ser o contrário. Acossados pelo pavor, eles se tornaram servidores, não se sabe de quem.

Preferem declarar suspeição, impedimento, a elisão da responsabilidade, a prescrição penal, julgando sempre estar lutando em benefício dos direitos humanos. Locução com caráter mágico que o inebria, aquece o seu coração e sustenta a validade de...

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