The Zapatista struggle for the right to land: Background, strategies and transnational dimensions/A luta zapatista pelo direito a terra: antecedentes, estrategias e dimensoes transnacionais.

AutorSchacherreiter, Judith

Introducao

O direito e terra e essencial para a realizacao dos direitos sociais. Do mesmo modo, sua violacao e fundamental para viabilizar a acumulacao do capital, necessaria para a expansao do capitalismo e o surgimento de novas formacoes capitalistas. (2) Marx demonstrou que, para que dinheiro e mercadoria se convertam em capital, e essencial que o campones seja separado da propriedade dos meios de producao, despojado de suas terras e, com isso, possa vender livremente sua forca de trabalho, gerando o empobrecimento de seu status. (3) Este processo e marcado por expropriacao, roubo de dominios comuns e diferentes tecnicas de colonizacao, o que implica a integracao de areas e atores locais, nacionais ou regionais e estrutura global de dominacao. (4) Tal integracao transforma as condicoes e sentidos da luta pelos direitos e terra: se a resistencia e comoditizacao de um determinado territorio e, ao mesmo tempo, uma oposicao a poderes transfronteiricos, cada movimento campones e parte de uma articulacao politica global. Isso possibilita nao apenas que tais movimentos construam estrategias de acoes coletivas conectadas por redes transnacionais, como tambem que a luta por direitos sociais seja reinterpretada como uma luta por direitos sociais transnacionais. (5) A partir deste recorte, o objetivo do presente artigo e analisar a luta zapatista pelo direito e terra em um contexto de expansao mundial do livre mercado e da financeirizacao.

Diante de tais circunstancias, as tensoes agrarias vem crescendo dramaticamente. A medida que aumentam as populacoes rurais, lotes de terra cultivada diminuem per capita e por domicilio. A diminuicao no tamanho medio de um lote se soma a falta de terras e e agravada pela erosao e pelo empobrecimento do solo. Nos ultimos anos, politicas agricolas voltadas para a exportacao acirraram ainda mais as tensoes agrarias. Em muitas regioes, latifundios vem sendo empregados para a producao de alimentos, energia ou cash crops. A popularidade dos biocombustiveis exacerba tanto a competicao entre as diferentes culturas quanto o risco de que grupos mais pobres percam o acesso ao pedaco de terra do qual dependem. Sob o nome de land grabbing, ou grilagem, aquisicoes de terra em larga escala tornaram-se um assunto controverso. (6)

Essas tendencias estao relacionadas a crises alimentares e ameacam o direito a alimentacao adequada, tal como reconhece o Artigo 25 (1) da Declaracao Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Economicos, Sociais e Culturais de 1966. Alem disso, elas exacerbam conflitos agrarios e levam a criminalizacao de movimentos sociais que defendem reformas agrarias de base. O resultado sao violacoes serias de direitos humanos, incluindo o assassinato de camponeses vinculados a tais movimentos. (7)

Desde os anos noventa, instituicoes financeiras transnacionais vem promovendo a titulacao individual de terras e os direitos comercializaveis a terra como chave para combater a pobreza rural e a inseguranca alimentar. De acordo com esta politica neoliberal, mercados de terra garantem uma alocacao eficiente, razao pela qual qualquer reforma da legislacao agraria deve facilitar as transacoes de mercado relacionadas a terra. (8) Esta politica foi seguida pelo Mexico, cuja reforma da legislacao agraria aboliu os principios de direito agrario introduzidos pela Revolucao Mexicana. Combinada a outras politicas neoliberais, tal reforma foi um dos fatores do surgimento de um dos mais importantes movimentos sociais contemporaneos: o Ejercito Zapatista de Liberacion Nacional (EZLN), cujos membros tambem sao conhecidos como (neo-)zapatistas.

Num panorama de financeirizacao e expansao do livre mercado, o presente artigo analisa a importancia dos direitos e terra para os zapatistas, bem como a inter-relacao entre suas demandas e as reivindicacoes pelo o direito e terra como um direito social transnacional. A Secao II propoe um esquema analitico para entender a historia da luta mexicana pelo direito a terra--especialmente a luta zapatista--como parte essencial da historia da luta pelos direitos sociais transnacionais. A Secao III descreve a rebeliao de 1994 e o movimento neozapatista em si. As Secoes IV e V analisam os principios do direito agrario da Revolucao Mexicana e a ruptura com estes principios, tal como promovida pela reforma neoliberal que modificou a legislacao agraria ate entao vigente. Finalmente, a Secao VI discute a dimensao transnacional da luta zapatista.

  1. Esquema analitico: uma perspectiva transnacional da luta mexicana pelo direito a terra

    Por que a luta dos camponeses e indigenas mexicanos pelo direito e terra nao e incluida na historia da luta por direitos sociais transnacionais? A historia mundial e marcada pela narrativa hegemonica, segundo a qual os eventos desencadeados pela civilizacao europeia sao as unicas fontes de inovacao e conquista evolutiva. A democracia foi inventada em Atenas; a burocracia, em Roma; o Estado-Moderno e a industria, na Europa ocidental. A lista e longa e revela a crenca nos europeus "como os autores da historia". (9) Segundo Blaut, esta crenca e acompanhada por uma "superteoria": o difusionismo eurocentrico. (10) Para a antropologia difusionista, as invencoes sao historicamente produzidas em um numero limitado de comunidades, razao pela qual a maioria dos povos se transforma gracas a difusao de invencoes importadas. Com base neste tratamento cientifico, a crenca na prerrogativa historica europeia adquire status de verdade empirica. Assim, este modelo posiciona a Europa como um centro que irradia transformacoes para o resto do mundo, que por sua vez e uma mera periferia receptora. Nesse contexto, qualquer relato sobre as lutas dos movimentos sociais mexicanos precisa aloca-los em um lugar de subalternidade historica.

    O modelo citado se apoia em uma deformacao dicotomica que, de um lado, constroi a Europa como a sociedade avancada e racional; de outro, atribui as regioes nao-europeias o lugar do atraso e da emocao. Enquanto a primeira e considerada "o interior", a segunda e "o exterior". (11) Esse contexto explica, por exemplo, como a Revolucao Mexicana (1910-1920), um dos principais eventos na historia das lutas sociais, se converte em uma caricatura cujos protagonistas sao representados como bandidos. (12) A partir da critica ao orientalismo, Said mostra que esta deformacao e o artificio europeu para fabricar sua propria identidade que, fundada na ideia de superioridade, se torna um estilo de dominacao. (13) Enquanto elaboracao culturalista disfarcada como universal, o eurocentrismo esta, todavia, ancorado em condicoes objetivas e relacoes sociais de producao: o colonialismo moderno. (14) Como mostra Samir, trata-se de uma ideologia que permite a expansao do capitalismo mundial e a ocupacao de regioes em todo o globo. (15) Nesse sentido, o difusionismo eurocentrico e um modelo do colonizador. (16)

    O paradigma dos direitos humanos e uma versao do difusionismo eurocentrico. Sua narrativa padrao descreve uma linha de acontecimentos em que a Europa figura como o centro mundial de inovacoes juridicas: (17) a Declaracao dos Direitos do Homem e do Cidadao e a Revolucao Francesa; o holocausto e a Declaracao Universal dos Direitos Humanos; a emergencia dos direitos humanos sociais e a Constituicao de Weimar; o multiculturalismo liberal da America do Norte e os direitos culturais. Essa pratica de universalizacao de uma experiencia especifica e possivel por conta do discurso humanista, que proclama os eventos citados enquanto valores inerentes e natureza humana. (18) Apesar da representacao universal, o paradigma dos direitos humanos funciona no marco discursivo do Estado-Nacao, que produz uma interpretacao provinciana e nacionalista da historia juridica global, destinada, conforme Chakrabarty, a projetar uma "Europa hiper-real". (19) Nessa projecao, ainda que as lutas dos camponeses e indigenas mexicanos tornem-se modelo de direitos humanos em diversos espacos, (20) seu potencial e apagado ou exotizado, pois se encontra fora dos limites dos estados-nacoes europeus. Alocado em uma posicao periferica, o nao-europeu e cerrado na zona do nao ser da comunidade juridica global, (21) sendo reduzido a aplicar em seu EstadoNacao os direitos transmitidos pela Europa ou reproduzir uma releitura nacionalista nativista ou tribalista em que a Europa permanece o espaco do desenvolvimento. Como nao-seres, camponeses e indigenas mexicanos nao definem o destino dos direitos cosmopolitas universais.

    Assim, o paradigma de direitos humanos e uma ideologia que oculta o papel protagonista do nao-europeu nas conquistas juridicas modernas, apagando sua agencia na historia legal global. (22) Este paradigma nao apenas anula sua participacao na elaboracao do sistema de direitos humanos como tambem limita o repertorio de tais direitos a experiencia europeia baseada no conflito entre o Estado e a sociedade. (23) Em tal paradigma, lutas como a dos camponeses e indigenas mexicanos contra a expropriacao de suas terras por multinacionais, investidores privados e governos estrangeiros sao completamente negligenciadas. Consequentemente, os direitos humanos parecem surgir apenas da resistencia dos cidadaos (europeus) contra a violencia de seus Estados nacionais. Com isso, o paradigma de direitos humanos invisibiliza quinhentos anos de saberes e praticas juridicas de varias regioes do mundo contra a dominacao colonial, o imperialismo, as etnicidades hegemonicas etc. (24) Dessa perspectiva, torna-se um instrumento do colonialismo moderno: ao criar uma suposta superioridade da Europa na escala juridica civilizatoria e omitir o lugar do nao-europeu no repertorio global de luta por direitos, produz as condicoes ideologicas para a expansao dos interesses politicos e economicos da elite europeia. (25)

    Dentre os instrumentos de resistencia a essa expansao, nao ha duvidas de que tanto os direitos sociais e economicos quanto os direitos culturais e de minorias ocupam...

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