The young Hegel, a Machiavelli reader/ O jovem Hegel leitor de Maquiavel.

Autorde Oliveira, Ana Guerra Ribeiro
CargoResena de libro

Introducao

"Espelho da natureza"--o epiteto, que Shakespeare utilizou para se referir ao teatro e do qual a posteridade se valeu para definir o proprio Shakespeare, poderia, igualmente, ser empregado para descrever Maquiavel. Ao se debrucarem sobre seus escritos, no afa de devassarem suas conviccoes politico-ideologicas, os leitores, nao raro, encontram apenas a si mesmos. Refratario a rotulacoes e enquadramentos, Maquiavel se oferece a usura do tempo, sendo apropriado pelos mais diversos partidos no correr da historia.

Nao e de se estranhar que, comentando o espelho do principe (1) composto por Maquiavel, o jovem Hegel diga menos sobre o pensador renascentista que sobre seus proprios posicionamentos filosoficos e doutrinais. Dai que, para uma melhor compreensao da leitura hegeliana de Maquiavel, seja necessaria a rememoracao da conjuntura politica europeia contra a qual o filosofo se batia, a epoca da elaboracao d'A Constituicao Alema (1798-1802)--texto que permaneceu inedito ate o inicio do seculo XX, e que tomaremos como referencia em nossa analise. (2) Embora, noutros escritos--como as Licoes de Filosofia da Historia--Hegel faca remissao a Maquiavel, A Constituicao Alema e o trabalho no qual, de forma mais detida, o pensador alemao posiciona-se face a obra do mestre florentino. Hoje, em retrospecto, e facil identificar, na doutrina politica do Hegel maduro, reverberacoes desse inacabado ensaio da juventude.

"Nem uma satira, nem um manual de moral, nem um intermediario entre os dois; [O principe] e um trabalho de politica, escrito para os principes italianos de sua epoca, de acordo com seus gostos, de acordo com seus principios, e com a meta que Maquiavel indica no ultimo capitulo, libertar a Italia dos barbaros". A conhecida observacao de Herder poe em questao a rejeicao de alguns autores seus contemporaneos--como Frederico II--a obra de Maquiavel, e procura reinscreve-la em sua propria era. O texto de Herder em defesa do pensador florentino dara a tonica dos escritos posteriores que, na Alemanha, se voltarao a uma revalorizacao de Maquiavel e do maquiavelismo. Herder, a partir de uma chave historicizante, desembaraca Maquiavel do emaranhado de condenacoes morais que, desde Innocent Gentillet--autor do primeiro Anti-Maquiavel de que se tem noticia--, o italiano havia sido atado. "Libertar a Alemanha dos barbaros"--paralelos entre a condicao da Italia a epoca de Maquiavel e a situacao da Alemanha no periodo de Herder impulsionarao o resgate do corpus maquiaveliano.

Herder, Hegel e Fichte sao os principais responsaveis pela recepcao, no seio da filosofia alema moderna, do pensamento de Maquiavel. (3) A representacao hodierna de Maquiavel muito deve ao trabalho desses autores, que acabaram por determinar as leituras subsequentes do pensador florentino, dentro e fora dos circulos germanofonos. E importante notar que a apropriacao feita por eles foi seletiva, marcada por exclusoes e revisoes--uma desleitura condicionada pelas pretensoes imediatas de referidos filosofos, interessados em contribuir para o debate politico travado na Europa Continental de fins do seculo XVIII e inicio do seculo XIX. Como veremos, e notadamente a ideia de Staatraison (razao de Estado) que interessara a filosofia politica alema contemporanea da Revolucao Francesa. (4) Como Andrew Fiala propoe, e Maquiavel que os artifices do Idealismo Alemao tomam como modelo no que concerne a discussao sobre o papel politico do filosofo, seu dever de tomar partido nos embates ideologicos de seu proprio tempo. (5)

"Maquiavelismo absoluto"--assim o neotomista Jacques Maritain descrevera as doutrinas de Fichte e Hegel. A expressao de Maritain sinaliza como, na consciencia de muitos, o chamado Idealismo Alemao encontrar-se-ia indelevelmente conectado a filosofia de Maquiavel. Alguns autores--como Friedrich Meinecke, brilhante historiador das ideias politicas (6)--acreditam que, entre Maquiavel e Hegel, haveria uma linha evolutiva (o fio vermelho do destino). Se Maquiavel e (como pensa Meinecke) o primeiro teorico a formular a doutrina da razao de Estado, os sucessivos desenvolvimentos do conceito atingiriam seu momento de cumeada no pensamento hegeliano. Para Fichte e Hegel, com efeito, o valor maior da obra de Maquiavel se encontra na defesa da realpolitik--a crenca de que o Estado tem razoes que a propria razao desconhece, e que, na preservacao da comunidade politica, qualquer acao, por menos etica que pareca, e legitima. Tais filosofos irao consolidar--e celebrar--a leitura segundo a qual Maquiavel seria o responsavel por separar moral e politica. Ainda hoje, os estudos maquiavelianos nao conseguiram erradicar de todo essa proposta de interpretacao--malgrado esforcos no sentido de resgatar ideias morais no pensador florentino, (7) ou de acentuar a natureza republicana de seus escritos. (8) Se, hoje, sao notorias as tentativas de dissociar Maquiavel do maquiavelismo (quer dizer, do dogma segundo o qual "os fins justificam os meios"), para o Idealismo Alemao era necessario aproximar um e outro--o que talvez explique o fato de Fichte e Hegel priorizarem a leitura d'O Principe, mantendo-se silentes quanto a outros trabalhos de Maquiavel (como os Discursos sobre a primeira decada de Tito Livio).

"Prefiro a injustica a desordem"--a frase de Goethe poderia servir, perfeitamente, para ilustrar a filosofia politica de Fichte e Hegel. A salvaguarda da unidade do povo, contra amecas de desagregacao externas e internas: este o elemento central que tais autores acreditam herdar de Maquiavel. Em uma Alemanha continuamente ameacada pela ascensao de potencias vizinhas--que ganham forca, precisamente, em virtude da unificacao nacional--, e natural que o Idealismo Alemao procure superar concepcoes moralizantes e juridicizantes do politico, e que associe razao de Estado e pangermanismo. Na admiracao de Maquiavel por Cesar Borgia (que buscou, desafiando a fragmentacao politica da peninsula, criar um Estado independente na Italia central), Fichte e Hegel veem ecos de seu proprio anseio, no que tange ao surgimento de um principe capaz de (alcando-se, por seu genio, acima dos padroes eticos correntes) impor uma identidade politica a Alemanha recalcitrante, educando-a para a obediencia. (9)

Nessa grelha analitica, Hegel estaria, para Otto von Bismarck, como Joao Batista estava para Jesus Cristo: seria seu profeta, o anunciador de seu advento. Essa leitura nao e muito diversa da proposta pelo discipulo de Meinecke, Franz Rosenzweig, no classico Hegel e o Estado. (10) "So em sua propria terra, entre seus parentes e em sua propria casa, e que um profeta nao tem honra" [Marcos 6:4]--Hegel e mais do que consciente do fato de que a voz de Maquiavel morreu sem efeito, e de que, apesar de seus apelos, a Italia acabou por converter-se em celeiro de forcas estrangeiras. Tal como Ninive, a Alemanha deveria, inspirando-se no exemplo historico italiano (um povo que, por nao ouvir seu profeta, sucumbiu), arrepender-se de seus erros e constituirse como Estado soberano. Hegel teria, em sua sanha para modernizar a comunidade alema e liberta-la da anarquia e da dissolucao, conferido dimensoes metafisicas--e, mesmo, religiosas--a doutrina maquiaveliana da razao de Estado. Erigiria, a partir de Maquiavel, uma mistica da politica. (11)

O jovem Hegel interpreta o pensamento de Nicolau Maquiavel no topico 8--"A Formacao dos Estados Nacionais"--do capitulo II--"Historia e Critica da Constituicao do Imperio Germanico"--da obra A Constituicao Alema. Neste trabalho, sera feita uma analise da leitura de Hegel acerca d'O Principe de Maquiavel, ja que, substancialmente, e essa a unica obra do autor citada n'A Constituicao Alema. Por questao de metodo, nao serao consideradas as possiveis influencias das reflexoes maquiavelianas sobre o Hegel maduro reduzindo-se este trabalho ao periodo de formacao do filosofo alemao, momento em que a obra que se pretende examinar foi elaborada. (12)

  1. O caminhar da filosofia de Hegel

    Como Joaquim Carlos Salgado ensina: "A filosofia de Hegel e esse gigantesco esforco unificador da razao: pensar o absoluto (seu aspecto 'idealista') imanente (seu aspecto 'realista'), pensar a liberdade na historia". (13) Embora tenha em vista o sistema desenvolvido pelo filosofo alemao em sua maturidade, a observacao de Salgado ajuda-nos a compreender o direcionamento que, desde os primordios, Hegel deu a seus estudos. E com o fito de resgatar a unidade cindida da cultura que Hegel, influenciado pelo movimento do Sturm und Drang, (14) se lancara a tarefa de filosofar.

    Bernard Bourgeois (15) ajuda-nos a apreender, de forma sintetica, o itinerario intelectual do jovem Hegel, do termino da epoca de ginasio a partida para Nuremberg, apontando as preocupacoes centrais que, em diferentes momentos de sua trajetoria, marcarao as pesquisas do filosofo. Bourgeois mostra que, desde sua estadia em Tubingen (entre 1788 e 1793), Hegel assumiu como ideal a recuperacao da cidade antiga, da unidade vivida pelos gregos na polis. A Revolucao Francesa, que eclodiu a epoca, parecia a Hegel constituir o verdadeiro esforco para reviver a polis antiga, local onde o sujeito se reconhece totalmente na patria. (16) Somente no periodo em que residiu em Frankfurt (entre 1797 e 1800) e que Hegel reformara semelhante projeto, ao dar-se conta da irredutibilidade do mundo moderno ao mundo antigo. A identidade imediata entre o individuo e o Todo, caracteristica da cidade antiga, nao e mais possivel, devendo ser substituida por uma identidade mediatizada, que assuma por polos o cidadao e o Estado. E em Frankfurt que Hegel, insuflado por tal espirito, comeca a escrever A Constituicao Alema, em um contexto de enorme desequilibrio civil e politico na Europa, devido a decadencia do Sacro Imperio Romano-Germanico e em face do ataque ao territorio alemao realizado pelas tropas do exercito republicano frances. (17)

    Quando em Frankfurt, Hegel trabalhou como preceptor de uma familia nobre. Apenas ao mudar-se para...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT