The soviet family legislation and the feminist utopias/ Legislacao familiar sovietica e utopias feministas.

AutorSeveri, Fabiana Cristina

A legislacao familial revolucionaria

A questao feminina inscreveu-se, desde o inicio, no projeto revolucionario sovietico. Alem da extincao da propriedade privada dos meios de producao, era preciso abolir a familia patriarcal, principal responsavel pela opressao das mulheres. Nao e a toa, entao, que os primeiros decretos aprovados pelos bolcheviques, em 1917, foram relativos a legislacao sobre familia e casamento.

No campo, as mulheres estavam submetidas a relacoes familiares que guardavam profundos tracos patriarcais herdados das chamadas sociedades pre-capitalistas. Nas cidades, elas ingressavam massivamente nas fabricas como operarias, mantendo ainda toda a responsabilidade pelas tarefas domesticas.

A emancipacao feminina nao viria apenas com a garantia do direito de participacao politica. Varios teoricos e teoricas bolcheviques acreditavam que, apenas quando todo o trabalho domestico fosse transferido para a esfera publica, as mulheres estariam realmente liberadas da esfera domestica para participar na vida politica do pais e poderiam, entao, se unir a alguem, exclusivamente, em razao do afeto. De acordo com Goldman (2015, p. 31), a visao bolchevique baseava-se em quatro preceitos que, cada um com sua historia, aparecem de modo entrelacados: "uniao livre, emancipacao das mulheres atraves do trabalho assalariado, socializacao do trabalho domestico e definhamento da familia".

Na tradicao do pensamento socialista, alem da literatura sobre a Revolucao Francesa e os socialistas utopicos, algumas obras como O Manifesto do Partido Comunista (1848) e A Ideologia Alema (1845), ambos de Karl Marx e Friedrich Engels; A Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado (1884), de Friedrich Engels; Mulheres e socialismo (1879), de August Bebel, foram importantes fontes usadas por teoricas e militantes feministas (1) para a elaboracao de uma compreensao marxista sobre a familia e a mulher nas sociedades de classes. Elas apontavam para o papel fundamental da familia como unidade economica no capitalismo (MORAES; 2017; GOLDMAN, 2015; NAVAILH, 1991).

A emancipacao da mulher dependia da abolicao da propriedade privada, da construcao de um novo tipo de organizacao familiar e da criacao de uma economia domestica comunal. Por isso a importancia de se propor, no contexto revolucionario de 1917, alteracoes legislativas que visassem, por exemplo, facilitar ao maximo o casamento e o divorcio, garantir a igualdade entre homens e mulheres na vida politica (2) e criar uma serie de equipamentos voltados a socializacao das tarefas domesticas e de cuidado, como creches e escolas em periodo integral, refeitorios coletivos, lavanderias publicas e atelies de costura. De acordo com Goldman:

Os bolcheviques argumentavam que somente o socialismo poderia resolver a contradicao entre trabalho e familia. Sob o socialismo, o trabalho domestico seria transferido para a esfera publica: as tarefas realizadas individualmente por milhoes de mulheres nao pagas em suas casas seriam assumidas por trabalhadores assalariados em refeitorios, lavanderias e creches comunitarias. So assim as mulheres se veriam livres para ingressar na esfera publica em condicoes de igualdade com os homens, desvencilhadas das tarefas de casa. As mulheres seriam educadas e pagas igualitariamente, e seriam capazes de buscar o seu proprio desenvolvimento e os seus objetivos pessoais. Sob tais circunstancias, o casamento se tornaria superfluo. Homens e mulheres se uniriam e se separariam como quisessem, desassociados das pressoes deformadoras da dependencia economica e da necessidade. A uniao livre substituiria gradualmente o casamento a medida que o Estado deixasse de interferir na uniao entre os sexos. Os pais, independentemente de seu estado civil, tomariam conta de seus filhos com a ajuda do Estado; o proprio conceito de ilegitimidade se tornaria obsoleto. A familia, arrancada de suas funcoes sociais previas, definharia gradualmente, deixando em seu lugar individuos completamente autonomos e iguais, livres para escolher seus parceiros com base no amor e no respeito mutuos (2015, p. 21).

No final de 1917, foram promulgados dois decretos, um sobre o divorcio e outro sobre o casamento civil e os filhos. Eles revogavam todos os dispositivos anteriores relativos a tais temas. Com eles, o divorcio foi facilitado, podendo ser feito tanto pelos tribunais, quanto pelos servicos de registro civil, mesmo de modo unilateral e sem que fosse necessario fundamentar o motivo. O casamento civil tambem foi simplificado ao maximo e equiparando-o as unioes nao formalizadas quanto as obrigacoes reciprocas dos dois parceiros. Os filhos, obtidos ou nao em situacao de casamento, passaram a ter os mesmos direitos.

As medidas adotadas por esses dois decretos foram confirmadas e ampliadas pelo Codigo das Leis sobre Casamento, Familia e Tutela, promulgado no final de 1918. Por meio do Codigo de 1918, o casamento religioso perdeu validade juridica, embora pudesse ainda ser realizado, caso as pessoas desejassem. O poder marital e completamente suprimido, sendo reconhecido o direito da mulher a autodeterminacao economica, social e sexual. As pessoas podem escolher, no registro de casamento, um nome comum de familia, podendo ser o do marido ou o da esposa, ou conservar cada qual o seu nome. O registro do casamento tambem nao traz mudancas na nacionalidade de nenhum dos conjuges. Ambos tambem tem liberdade para a escolha de suas atividades profissionais, devendo manter o mutuo consentimento sobre a economia domestica. A mudanca de residencia por parte de um dos conjuges nao obriga o outro a segui-lo. O casamento nao mais estabelece a comunidade entre as propriedades dos contraentes.

Com relacao as regras sobre filiacao, preve o Codigo de 1918 que a autoridade dos pais sobre os filhos deve ser exercida conjuntamente; em caso de divergencias entre eles, os tribunais devem resolver o litigio. A heranca e proibida. A adocao tambem foi proibida (3). Os direitos dos pais sobre os filhos devem ser exercidos exclusivamente em beneficio destes ultimos; em caso de abusos, os pais poderiam perder os direitos sobre os filhos. Os pais sao obrigados a garantir o cuidado dos filhos menores sua educacao e preparo profissional, sendo essa obrigacao suspensa quando as criancas sao mantidas por servicos publicos ou governamentais. Pais tem o dever de garantir sustento aos seus filhos, assim como os filhos maiores tambem o devem aos pais necessitados ou incapazes de trabalhar.

Diferentemente das formulas juridico-legislativas comuns aos codigos ocidentais, o Codigo de 1918 foi escrito em linguagem popular, abolindo o linguajar juridico, pois seria aplicado por juizes eleitos pelo povo. Alem disso, de acordo com as caracteristicas iniciais do sistema judiciario comunista, a interpretacao de seus dispositivos nao poderia ser feita com base em leis dos governos depostos ou na pratica dos tribunais anteriores a Revolucao, exceto se fossem mais favoraveis aos valores do proletariado. Os advogados ou jurisconsultos tambem foram suprimidos, podendo cada pessoa ser defensor ou acusador.

Em 1917 houve a descriminalizacao da homossexualidade e em novembro de 1919, o aborto foi legalizado, estabelecendo como crime a sua pratica feita clandestinamente por trazer mais riscos a saude da mulher.

Ha conflitos e confrontacoes entre marxistas e feministas russos registrados em diversos trabalhos teoricos, historicos e biograficos. Sem subestimar esses conflitos, e possivel dizer que as aliancas entre essas duas vertentes, materializadas por tais mudancas na legislacao sobre familia e casamento, compreendem a tentativa mais seria dos bolcheviques em articular a questao da mulher com a questao operaria. Segundo Goldman, o Codigo de 1918 "captou em lei uma visao revolucionaria...

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