The role of Public Ministry against Slavery in Amazon region: The case of Rondonia/O papel do Ministerio Publico frente ao escravismo na Amazonia: o caso de Rondonia.

AutorFernandes, Estevao Rafael

1 Introducao

Recentemente as discussoes em torno do tema da escravidao contemporanea se aprofundaram, a luz da discussao que se seguiu a edicao da Portaria n. 1.129, de 13 de outubro de 2017 pelo Ministerio do Trabalho, orgao do Poder Executivo responsavel por fiscalizar o cumprimento das normas trabalhistas (1).

Por meio dessa Portaria, restringiu-se o conceito de trabalho escravo, que ja se encontrava consolidado na ordem juridica interna, conforme descrito no artigo 149 do Codigo Penal e, ainda, a luz do direito internacional dos direitos humanos e da Constituicao Federal. Nela, a definicao dos elementos que integram o tipo penal de reduzir alguem a condicao analoga a de escravo e limitada ao ponto de o Estado brasileiro exigir praticamente a efetiva existencia de senzala e correntes para sua configuracao.

Em face de tamanho retrocesso social, muitas tem sido as mobilizacoes nacionais e internacionais contrarias a nova posicao do Estado, na contramao das diretrizes da Organizacao das Nacoes Unidas (ONU), da Organizacao Internacional do Trabalho (OIT) e da Organizacao dos Estados Americanos (OEA). Tudo o que ocorre, inclusive, logo apos o Estado brasileiro sofrer sua primeira condenacao numa Corte Internacional por omissao no combate ao trabalho escravo. Trata-se do caso da "Fazenda Brasil Verde", julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 20 de outubro de 2016.

Com a imagem abalada perante a sociedade brasileira e a internacional, o Estado sucumbe as manifestacoes de referidas organizacoes e a pressao da midia nacional e internacional (2), bem como a Notificacao Recomendatoria expedida pelo Ministerio Publico Federal (MPF) e pelo Ministerio Publico do Trabalho (MPT), instituicoes que tem por vocacao o combate ao trabalho escravo--a primeira, com a persecucao penal; a segunda, com a responsabilizacao trabalhista. Assim, retoma a definicao anterior, com a revogacao da norma citada e a publicacao da Portaria n. 1.293, de 28 de dezembro de 2017, a qual, como apontam seus fundamentos, de fato, consolida as normas internacionais dispostas nas Convencoes n. 29 e 105 da OIT, na Convencao sobre a Escravatura de Genebra, na Convencao Americana de Direitos Humanos, nas Leis n. 7.998, de 1990, e 10.608, de 2002, bem como no artigo 149 do Codigo Penal.

Diante da retomada do conceito adequado desse ilicito, destaca-se a realidade cruel da escravidao hodierna, especialmente no contexto da regiao amazonica, marcada pela dificuldade de acesso do poder publico a inumeros povoados e distritos, dada a densidade da floresta e a abundancia de seus rios. Tal situacao e encontrada no Estado de Rondonia, localizado na Amazonia ocidental, sobre a qual trata, especificamente, este texto. O objetivo deste artigo, assim, nao e esgotar as reflexoes sobre a complexa realidade desse Estado, tampouco restringir nosso escopo de analise a ele. Ao contrario, buscar-se-a aqui oferecer elementos que permitam generalizar as ponderacoes oferecidas a titulo de estudo de caso, buscando problematizar nao apenas os eventuais efeitos desse retrocesso, mas, de modo mais objetivo, um contexto de desafios aos quais esse novo paradigma nao faz frente.

Nao obstante as sucessivas operacoes e acoes realizadas em Rondonia, a partir da cooperacao entre distintas instituicoes--Ministerio Publico do Trabalho, Ministerio do Trabalho, Ministerio Publico Federal, Defensoria Publica da Uniao, Policia Rodoviaria Federal e Policia Federal--, permanece a incidencia e a denuncia de casos de trabalho escravo.

A persistencia dessa chaga se relaciona diretamente com a reincidencia dos trabalhadores resgatados, os quais, oriundos de familias pobres, com baixo nivel de escolaridade e, muitas vezes, migrantes internos, acabam por retornar a situacao de sujeicao a condicoes tao degradantes de trabalho.

Ante essa constatacao, emerge a percepcao de que e preciso ter uma diretriz diferente na atuacao das instituicoes, as quais nao podem mais apenas reprimir a ocorrencia desse crime, mas precisam prevenir sua configuracao. No ambito do MPT, exsurge sua atuacao como articulador social, de modo que, a proposicao de acoes civis publicas ou de termos de ajuste de conduta, se soma a aproximacao com a sociedade civil, com os movimentos sociais e outras instituicoes, com vistas a desenvolver projetos que permitam a reinsercao dos trabalhadores resgatados na sociedade, com a prestacao de assistencia imediata e a habilitacao para o desenvolvimento de uma profissao.

Neste artigo, abordam-se as controversias acerca do trabalho escravo contemporaneo, em confronto com a realidade verificada na Amazonia ocidental, mais especificamente com a demonstracao de dados estatisticos referentes ao Estado de Rondonia. Defende-se que a efetiva erradicacao do escravismo contemporaneo na regiao somente ocorrera com uma guinada na atuacao das distintas instituicoes que compoem o aparato estatal de combate, com a emergencia do MPT como articulador social em todo esse processo.

Para tanto, adota-se o metodo de pesquisa qualitativo, com analise de doutrina e normas internas e internacionais de direitos humanos, com a finalidade de consolidar a concepcao de trabalho escravo contemporaneo, que norteia as acoes do Estado brasileiro. Por sua vez, utiliza-se de tecnicas quantitativas, com descricao dos dados estatisticos inerentes ao Estado de Rondonia.

2 O que e trabalho escravo contemporaneo?

O escravismo aparece remodelado na atualidade, uma vez que nao implica per se a propriedade reconhecida pelo direito do homem sobre o homem e se aproxima mais da exploracao economica desmedida do capital sobre o ser humano. Pode-se dizer que o escravismo atual se caracteriza pela versatilidade, na medida em que se apresenta por distintas formas.

Para Nina (2010, p. 96), o trabalho escravo contemporaneo vincula-se diretamente ao fenomeno das migracoes e nao se ampara na legalidade, mas se aproveita da lentidao do Estado, que nao acompanha o ritmo da globalizacao, sendo incapaz de conter o delito que se poe como transnacional.

Assim, hoje, a escravidao apresenta caracteres diversos daquela, que vigorou nos seculos passados, na medida em que nao e garantida pelo Direito, mas rechacada por ele--no Brasil, desde 1888, com a promulgacao da Lei Aurea. Ainda hoje, contudo, projeta-se como mecanismo de grande lucratividade, que advem da exploracao dessa mao de obra descartavel, com uso de violencia fisica e/ou psicologica.

Prevalece o paradigma em consonancia com ordem juridica internacional e com o parametro normativo estabelecido pela Constituicao Republicana. Todavia, o proprio conceito de trabalho escravo volta a discussao, ante a publicacao da Portaria 1.129/2017 do Ministerio do Trabalho, que restringiu as hipoteses do escravismo contemporaneo a concepcao que remonta a 1888.

Por essa Portaria (BRASIL, 2017a, artigo 1[degrees]), define-se trabalho forcado como o "exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade". Enquanto jornada exaustiva, consigna-se "a submissao do trabalhador, contra a sua vontade e com privacao do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicavel a sua categoria". Ja a hipotese de condicao degradante, passa a ser aquela "caracterizada por atos comissivos de violacao dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou fisicos, e que impliquem na privacao da sua dignidade".

Ainda, para ser caracterizada a condicao analoga a de escravo, arrolam-se quatro situacoes: submissao a trabalho sob ameaca de punicao e com uso de coacao; cerceamento de qualquer meio de transporte do trabalhador, com o objetivo de rete-lo no local de trabalho e com isolamento geografico; manutencao de seguranca armada para manter o trabalhador no local em razao de divida contraida; a retencao de documentacao com o fim de rete-lo no local de trabalho (BRASIL, 2017a, artigo 1[degrees], IV).

Em que pese se afirmar que a Portaria se destinaria a delimitar as situacoes de recebimento de seguro-desemprego, fica claro que sua aplicabilidade vai alem, uma vez que norteia as acoes fiscais dos auditores do Ministerio do Trabalho, inclusive para fins de inclusao do empregador na lista suja do trabalho escravo (BRASIL, 2017a, artigo 2[degrees]).

A esse quadro, soma-se a previsao de que a inclusao do nome do explorador no cadastro de empregadores flagrados na pratica desse ilicito fica condicionado a determinacao do Ministro do Trabalho, que exerce cargo de natureza politica e nem sempre atende a interesses republicanos (BRASIL, 2017a, artigo 2[degrees]). Ademais, burocratizam-se as inspecoes, que, apesar de em regra ocorrerem nos rincoes do Pais, com completa dificuldade de acesso pelas autoridades publicas, passam a ter de cumprir uma serie de requisitos dispostos no artigo 3[degrees], sob pena de devolucao dos autos do processo administrativo ao auditor-fiscal, para que complemente a descricao dos ilicitos praticados, com apresentacao de provas aditivas (BRASIL, 2017a, artigo 4[degrees], [section] 4[degrees]).

O esvaziamento do conceito de trabalho escravo foi tao significativo que a sociedade internacional reagiu e pautou as discussoes. A ONU divulgou nota por meio da qual expressou a profunda preocupacao do sistema das Nacoes Unidas com a Portaria 1.129/2017 do Ministerio do Trabalho, oportunidade em que sinalizou que o conceito de trabalho escravo previsto no artigo 149 do Codigo Penal esta alinhado as normas internacionais de protecao dos direitos humanos e assinalou que uma alteracao tao profunda tem de ser precedida de amplos debates democraticos com todos os interessados. Destacou ainda:

No Brasil, muitos casos ocorrem de forma velada, como o trabalho escravo em fazendas, fabricas e domicilios. Somente com uma legislacao precisa e fiscalizacao eficaz e possivel enfrentar com determinacao esta ameaca. Nas ultimas decadas, o Brasil construiu essa...

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