The right to health of indigenous peoples and the paradigm of recognition/O direito a saude dos povos indigenas e o paradigma do reconhecimento.

AutorSartori, Dailor, Jr.
  1. Introducao

    Politicas e acoes que afetam diretamente os povos indigenas do Brasil tem sido divulgadas pela midia nacional e internacional e tem gerado intenso debate juridico-politico. Porem, essa exposicao atual nao e reflexo de maior garantia de direitos e de reconhecimento das diferencas, mas de possiveis retrocessos, como propostas legislativas que pretendem modificar a forma de demarcacao de terras indigenas (1); o recrudescimento da violencia gerada pelos conflitos possessorios com latifundiarios (2); a atuacao do Poder Judiciario--sobretudo pela revogacao de demarcacoes que a aplicacao da tese do marco temporal, construida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento celebre da Terra Indigena Raposa Serra do Sol (3), tem possibilitado; e a execucao de grandes obras desenvolvimentistas do Governo Federal, como a usina de Belo Monte, cujos impactos etnicos e ambientais ja estao amplamente documentados (4).

    Paralelamente a estas politicas, encontra-se o exercicio cotidiano de direitos fundamentais sociais dos povos indigenas a partir de orgaos e normas especificas, cuja fundamentacao teorica e experiencia empirica precisam ser avaliadas e discutidas. Evidente que as politicas lesivas em curso possuem drastica influencia sobre tais direitos, mas pensa-los em face da sua propria configuracao e tarefa relevante. A prestacao do direito a saude dos povos indigenas assume esta importancia, sobretudo porque conta, atualmente, com estrutura institucional especifica de atendimento e porque precisa lidar com indicadores sociais preocupantes dentro de um contexto intercultural.

    Portanto, este artigo busca examinar a saude indigena no contexto da constitucionalizacao do direito a diferenca, da formacao de um subsistema especifico de atencao inserido na mudanca de paradigma juridico da relacao entre povos indigenas, Estado e sociedade, e na interacao deste subsistema com o Sistema Unico de Saude (SUS).

    A concepcao indigena de saude-doenca e baseada em fenomenos e relacoes distintas dos conceitos biomedicos ocidentais, o que demanda, alem da sensibilidade dos profissionais de saude, uma atuacao capacitada para traduzir, em um dialogo de sentidos e sob determinadas limitacoes, essas complexas diferencas. Portanto, este artigo recorre a etnografias cujas narrativas dao conta de explicitar tensoes que as normas e a configuracao institucional da saude indigena nao alcancam.

    Alem dessas necessidades faticas que justificam a prestacao diferenciada do direito fundamental dos povos indigenas a saude, ha bases normativas solidas apontando para o paradigma juridico do reconhecimento, a partir da ideia de uma politica multicultural contra-hegemonica, e suas implicacoes decorrentes ao respeito as diferencas.

    Por fim, por inserir-se formalmente na estrutura normativa e administrativa do SUS, a atencao a saude indigena deve ser constituida em harmonia com os principios e diretrizes deste sistema, fato do qual decorrem articulacoes e tensoes entre a saude publica e a atencao diferenciada.

  2. Aportes para a execucao das politicas de saude dos povos indigenas

    2.1. Paradigmas juridicos da relacao entre Estado, sociedade e povos indigenas: da assimilacao ao reconhecimento

    O caminho percorrido ate o atual paradigma do reconhecimento, que irradia deveres de respeito e promocao das diferencas, foi tortuoso na historia juridico-politica brasileira: desde a colonizacao ate a promulgacao da Constituicao Federal de 1988, e possivel afirmar que a politica oficial do Estado brasileiro destinada aos povos indigenas foi a da aculturacao, tanto na sua dimensao mais perversa da assimilacao cultural, quanto na versao mais branda da integracao a sociedade nao-indigena (SILVA, 2015, p. 34).

    A assimilacao, enquanto processo imposto de desaparecimento forcado da cultura minoritaria em favor da cultura dominante colonizadora, perdurou como paradigma durante todo o periodo colonial. Esta postura estatal visava a uma verdadeira aniquilacao da alteridade, cuja relacao era pautada pela exploracao da mao-de-obra atraves da escravidao, pela catequese agressiva e pela guerra contra os povos hostis (KAYSER, 2009, p. 144).

    Durante o periodo monarquista e sobretudo a partir do inicio do seculo XX, acompanhando as ideias positivistas e evolucionistas de desenvolvimento linear da humanidade, os povos indigenas eram vistos como representantes de um estagio anterior e primitivo, sem direito a propria historia e, portanto, "em um estagio de transicao que desapareceria na medida em que as comunidades indigenas fossem incorporadas de maneira gradual e harmonica a sociedade nacional" (KAYSER, 2009, p. 161).

    O integracionismo da Republica fixava os povos indigenas em uma "infancia social" e, por isso, dava-lhes minimas condicoes de desenvolvimento, atraves da atracao, vigilancia e pacificacao exercidas pelo Servico de Protecao ao Indio (SPI), orgao estatal criado em 1910 (KAYSER, 2009, p. 163). Durante o seculo XX, o projeto de nacao mestica e de tentativa de "reconciliacao" do Brasil com sua propria formacao colonial, posteriormente o mito da "democracia racial", passou a inclusive exaltar a figura indigena como parte deste mito pacifico e tipicamente brasileiro, mas sem que houvesse, ainda, o reconhecimento concreto.

    A politica integracionista somente foi superada, ao menos formalmente, atraves da mobilizacao "Povos Indigenas na Constituinte" e pela promulgacao da Constituicao Federal de 1988, que passou a reconhecer no art. 231 o direito a diferenca e a titularidade permanente de direitos coletivos dos povos indigenas, e no art. 232 a superacao da tutela, ao reconhecer-lhes a legitimidade para ingressar em juizo na defesa de seus direitos e interesses (SOUZA FILHO, 2002, P. 49-50).

    Esta transicao e tambem observada no sistema universal dos direitos humanos, sobretudo pela substituicao da Convencao no 107 da Organizacao Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, pela Convencao no 169 Sobre Povos Indigenas e Tribais em Paises Independentes, de 1989. A Convencao 107 estava marcada por um duplo enfoque: culturalista, ao hierarquizar culturas visando a integracao, e estruturalista, considerando o "problema indigena" como solucionavel pela via economica, atraves de obras de desenvolvimento para a integracao a sociedade nao indigena (IKAWA, 2008, p. 497).

    2.2. Reconhecimento, interculturalidade e multiculturalismo contrahegemonico

    As bases epistemologicas que levaram a mudanca de paradigma no tratamento do direito e dos Estados aos povos tradicionais passam pelas transformacoes do direito internacional dos direitos humanos--que incorporou o direito a diferenca em suas normas--e pelo desenvolvimento teorico dos campos da interculturalidade, do reconhecimento e do multiculturalismo, alem, e claro, do protagonismo politico dos proprios povos indigenas e comunidades tradicionais do continente ao demandarem as reformas constitucionais do final do seculo XX.

    Porem, as demandas por reconhecimento--entendidas por Nancy Fraser (2008) como aquelas centradas na identidade, em contraposicao as demandas classicas de redistribuicao de recursos economicos--nao afastam por completo a necessidade de observar as necessidades materiais dos grupos vulneraveis. Existiriam, portanto, "coletividades bivalentes", que "sofrem tanto com a ma distribuicao quanto com o nao-reconhecimento, de tal forma que nenhuma dessas injusticas e um efeito indireto da outra, mas sao ambas primarias e co-originarias" (FRASER, 2008, p. 174).

    Os discursos estao muitas vezes dissociados, ou seja, alguns defensores da redistribuicao consideram as politicas de reconhecimento das diferencas um obstaculo a justica social, ao passo que alguns proponentes do reconhecimento rejeitam as politicas de redistribuicao, pois estas seriam demasiado materialistas e ocultariam as relacoes que verdadeiramente produzem as injusticas sociais--relacoes simbolicas de dominacao cultural (FRASER, 2008, p. 168).

    Mas a superacao destas falsas antiteses requer que as demandas sejam analisadas conjuntamente. Configuram, em contrapartida a um monismo, um "dualismo substantivo e de perspectiva". Por tal abordagem dualista pode-se usar o reconhecimento para identificar as dimensoes culturais das politicas economicas que normalmente sao entendidas como meramente distributivas, da mesma forma que se pode utilizar o ponto de vista da redistribuicao para apreender aspectos economicos de questoes identitarias (FRASER, 2008, p. 186).

    E neste contexto que Antonio Albuquerque (2008) afirma que os povos indigenas fazem parte da classificacao de "coletividades bivalentes", pois demandam politicas de redistribuicao e de reconhecimento simultaneamente. Para o autor, os povos indigenas sao coletividades "oprimidas pelo aparato estatal e subordinadas a hegemonia cultural nao-india" (ALBUQUERQUE, 2008, p. 131).

    A formulacao de politicas publicas para os povos indigenas requer que se determine qual tipo de reconhecimento e desejado em vez da simples diferenciacao entre estas politicas e as de redistribuicao. Como afirma Antonio Albuquerque, o "[r]econhecimento apenas em seu aspecto legal e formal nao acarreta consequencias praticas para o desenvolvimento dos povos amerindios" (ALBUQUERQUE, 2008, p. 74).

    Neste sentido, ha estudos atuais que focam em tal discussao. Garavito e Diaz (2015), analisando as politicas de reconhecimento na America Latina, concluem que:

    (...) la modalidad dominante de conciliacion entre los dos tipos de reclamos consiste en proteger juridicamente la diversidad etnicoracial siempre y cuando no implique redistribucion economica a favor de indigenas y afrolatinoamericanos. (GARAVITO; DIAZ, 2015, p. 21).

    Afirmam, tambem, que as experiencias de reconhecimento latinoamericanas, em geral, tem representando lutas insuficientes, pois as demandas substantivas indigenas por territorios, autonomia e cultura tem se materializado em politicas meramente procedimentais e simbolicas, que acabam deixando intactas as estruturas economicas ainda muito...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT