The right of the other, the other of the law: citizenship, asylum and Statelessness/O direito do outro, o outro do direito: cidadania, refugio e apatridia.

Autorde Godoy, Gabriel Gualano
  1. Cosmopolitismo liberal: "direitos dos outros" e pertencimento justo

    A imigracao coloca em evidencia a colisao direta entre o direito dos individuos de atravessar fronteiras, na esteira dos artigos 13 e 14 da Declaracao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e o direito ao autogoverno de uma comunidade politica, nos termos do artigo 21 da mesma Declaracao (2).

    O sistema de protecao internacional (que inclui o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional dos refugiados) favorece esses dois principios, mas nao e capaz de reconcilia-los de maneira adequada na pratica. Em uma epoca na qual a soberania do Estado nos dominios economico, militar e tecnologico parece sofrer erosao e as fronteiras nacionais comecam a ser vistas como mais permeaveis aos estrangeiros, os direitos dos nao-cidadaos seguem em risco e continuam a ser utilizadas normativas, tecnologias de poder e um gerenciamento policial baseado na ideia de seguranca nacional para manter afastados de uma comunidade aqueles que ocupam o lugar do "outro", entre eles solicitantes de asilo, refugiados e apatridas (3). O presente artigo vai problematizar esse tema a partir do discurso paradigmatico que pretende resolve-lo: o do cosmopolitismo liberal. Como representante desta matriz de pensamento sera analisado o livro The rights of others (4), de Seyla Benhabib.

    A autora defendeu o federalismo cosmopolita como solucao teorica exatamente para a dualidade existente entre o liberalismo, entendido como filosofia universalista dos direitos individuais, e a soberania do demos, ou seja, soberania de uma comunidade politica democratica, que, por definicao, requer a sua propria delimitacao. As leis do demos sao feitas por um povo e afetam apenas os membros de uma comunidade politica determinada, ou seja, seus cidadaos; sendo assim, o paradigma do demos estaria vinculado com os direitos de cidadania, mas nao necessariamente com os direitos universais.

    A reflexao da Professora da Universidade de Yale merece particular atencao por ser um esforco filosofico de fundamentacao da protecao dos direitos de estrangeiros como os "outros" de um certo Estado. Em um dialogo com teorias contemporaneas da democracia, Benhabib propoe um debate sobre a ideia de pertencimento justo a uma comunidade politica (just political membership). A partir de uma perspectiva normativa, Benhabib problematiza a definicao de quem seriam os membros de uma comunidade politica e quais seriam os criterios de julgamento moral que as chamadas democracias liberais tem utilizado para definir quem sao os seus cidadaos. Trata-se de uma releitura de Immanuel Kant e Hannah Arendt para ampliar o campo de investigacao proposto desde John Rawls. O resultado do trabalho de Benhabib parece relevante por oferecer base teorica para a acolhida de solicitantes de asilo, refugiados e apatridas, ao mesmo tempo em que serve de sintese de um modelo de pensamento a ser posteriormente discutido criticamente. A seguir, serao retomados os argumentos centrais de Benhabib, para, em um segundo movimento, problematiza-los. O presente texto vai, ao final, retomar tanto Kant quanto Arendt para recolocar o mesmo tema enfrentado por Benhabib.

    Ao recuperar a abordagem de Hannah Arendt sobre o direito a ter direitos, Benhabib investiga o paradoxo dos direitos humanos serem reconhecidos e protegidos apenas em virtude de serem direitos do cidadao. Individuos que nao tem acesso a cidadania seriam excluidos do demos e terminariam em uma situacao de absoluta vulnerabilidade. Arendt percebe que a figura do Estadonacao e as definicoes essencialistas de comunidade politica seriam responsaveis por esse drama, mas uma solucao definitiva nao chegou a ser oferecida pela filosofa alema.

    Na tentativa de construir uma alternativa, Benhabib sustenta que o direito a ter direitos, entendido como direito de cidadania, nao deve ser deixado ao arbitrio dos Estados. Vale dizer: o direito a ter direitos nao deve excluir uma reflexao moral. Entretanto, Benhabib nao se posiciona em defesa da cidadania global, mas em defesa de uma perspectiva cosmopolita de cidadania.

    Benhabib assume um dialogo com a obra de Rawls e com as correntes neokantianas de pensamento sobre justica global. No entanto, ela percebe certo deficit democratico dessas propostas. De acordo com Benhabib, as teorias neokantianas evitam o problema da reivindicacao por estrangeiros de pertencimento a uma comunidade politica diferente.

    Ao se deparar com as mudancas no campo da cidadania experimentadas pela Uniao Europeia e pelos Estados Unidos da America, Benhabib afirma que a "desagregacao da cidadania" ainda esta longe de ser considerada como uma verdadeira expressao do cosmopolitismo, mas espera que essa seja a janela para um futuro proximo. Ao analisar os contextos europeu e estadunidense, a solucao a ser esbocada ilustra a necessidade de dialogo constante, de iteracoes democraticas (no sentido de repeticao democratica), ou, em sua expressao original, democratic iterations. Isso a permite reelaborar o proprio conceito de cidadania: reapropriar-se da origem de um conceito significa que a cada repeticao democratica pode ser rearticulada a ideia anterior de cidadania ao ponto em que uma forma de variacao emerge.

    Trata-se de uma aposta na perspectiva cosmopolita de cidadania. A nocao de iteracoes democraticas e um conceito chave de Benhabib, que segue de perto a teoria do agir comunicativo de Jurgen Habermas, para quem os direitos humanos sao definidos a partir da dinamica de comunicacao entre os seres implicados no discurso. Seguindo tal pensamento, as pessoas devem justificar e discutir, assim como ouvir os "outros" no momento de definir seus direitos. A cidadania, nessa perspectiva, deve construir-se e reconstruir-se a si propria por meio da pratica comunicativa (5).

    Para Benhabib, o federalismo cosmopolita seria a chave teorica que permitiria escapar as dificuldades de ordem democratica ainda presentes na proposta de um "governo mundial". O federalismo cosmopolita mantem tanto a diversidade de comunidades politicas democraticas como seu nexo com o respeito devido aos direitos humanos (e, assim, o devido respeito ao direito de cidadania). Nesse sentido, a definicao de si apresentada por uma comunidade politica nao deve fugir a responsabilidade moral para com as pessoas em geral, quer sejam ou nao consideradas como cidadas. Tampouco pode ser evitado o dialogo aberto com aqueles "outros" que buscam ingressar em uma comunidade politica. Por fim, Benhabib defende que as fronteiras dos Estados resultem de fato mais porosas.

    Por esta razao, a comunidade politica para Seyla Benhabib nao deve confundir ethnos com demos, ou seja, a comunidade nao deve permitir que sua definicao de si mesma seja essencialista, criticando dessa forma a estatica do nacionalismo cultural.

    Em certa medida, o pensamento de Benhabib parece em sintonia com a defesa habermasiana de um patriotismo constitucional, resultando em um esforco importante para uma concepcao nao-homogenea de demos e para a fundamentacao da protecao devida pelos Estados aos estrangeiros, entre eles solicitantes de asilo, refugiados e apatridas.

    Condicoes da hospitalidade

    Immanuel Kant situou as condicoes da hospitalidade universal no ambito do Direito Cosmopolita, aquele cujas relacoes sao estabelecidas entre individuos e Estados estrangeiros (6). Inaugura-se, com isso, um novo campo do direito, diferente do direito publico e do direito internacional.

    No texto politico de Kant "Para a paz perpetua: um esboco filosofico", ressaltam-se tres condicoes definitivas para haver paz entre os Estados. A primeira condicao e que a constituicao civil de cada Estado deve ser republicana. A segunda e que o Direito das Gentes (ou das Nacoes) deve ser fundado em um federalismo de Estados livres. Por ultimo, o Direito Cosmopolita deve restringir-se as condicoes da hospitalidade universal (7).

    De acordo com Kant, a hospitalidade deve ser encarada como um direito, nao como filantropia. No sentido kantiano, hospitalidade e o direito de um estrangeiro nao ser tratado como inimigo. Logo, em Kant existe uma defesa de um direito de visita, de um direito do estrangeiro a residencia temporaria num Estado. Essa observacao acompanha uma reflexao de Kant sobre a expansao ultramarina e a busca de novos mercados por diferentes paises da Europa, pois o ius cosmopoliticum "tem a ver com a possivel uniao de todas as nacoes com vistas a certas leis universais para o possivel comercio entre elas" (9).

    Seyla Benhabib retorna ao ius visitationis formulado por Kant para argumentar que os estrangeiros devem ter nao apenas o direito de estabelecer contato com a populacao de um outro Estado, mas tambem o direito de reivindicar sua permanencia, dadas certas condicoes. Logo, fica claro desde o inicio que Benhabib se situa dentro de uma perspectiva condicionada do direito de hospitalidade. O direito de um visitante nao ser tratado de forma hostil e retomado por Benhabib, que demonstra como o status de visitante permanente e um privilegio especial que a soberania republicana pode consagrar a certos estrangeiros que habitam seu territorio, realizam determinadas funcoes, representam suas entidades politicas, e se comprometem a um acordo de longo prazo. Para Benhabib, nao fica claro no discurso de Kant se as relacoes entre pessoas e nacoes envolvem atos excessivos, que vao alem do dever moral, ou se implicam um certo tipo de reivindicacao moral sobre o reconhecimento dos direitos da humanidade na pessoa do outro.

    O argumento utilizado pelo filosofo alemao para justificar o direito de todo homem de se apresentar perante uma outra sociedade estaria baseado em um direito de propriedade comum da Terra. Como a superficie da Terra nao e ilimitada, os conceitos do Direito de um Estado e do Direito das Nacoes levam Kant ao conceito de um Direito Cosmopolita. Dessa maneira, seria injusto negar o direito de hospitalidade, desde que fosse possivel concede-lo de forma pacifica e...

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