The opening: human, animal and animality on Hans Jonas/ A abertura: humano, animal e animalidade na filosofia de Hans Jonas.

Autorde Oliveira, Jelson R.

Introducao

Ao descrever a estampa das ultimas paginas de uma Biblia hebraica que se encontra na biblioteca Ambrosiana de Milao, Giorgio Agamben (2002, p. 10) destaca o fato de que o desenho ali contido expressa uma especie de reconciliacao final do homem com a sua natureza animal: a imagem representa a visao do profeta Ezequiel, na qual no banquete escatologico final, a humanidade aparece com rostos de animais, transfigurada (reconciliada) em sua animalidade. E como se o desenho biblico do seculo XIII retivesse o ideal contido em outro texto biblico, o livro de Isaias (11, 6), segundo o qual tambem os animais serao incluidos na harmonia definitiva representada pela redencao: segundo esse profeta, no dia final, lobos comerao com cordeiros, panteras com cabritos e novillhos com leopardos, todos guiados por uma crianca, ela mesma simbolo da animalidade primitiva e inocente de toda a humanidade orientada pelo redentor. O que Agamben pretende destacar com essas imagens e a ideia de um acordo final da humanidade com a natureza em geral e, especialmente, com os animais, algo que faz parte (embora muitas vezes despercebida ou evitada) dos ideais maximos da nossa cultura. Por elas se ve que onde termina o humano comeca o animal.

A teromorfia descrita por Agamben destaca assim, a tensao que atravessa a historia da humanidade e, consequentemente, da filosofia e que opoe de forma desarmonica a humanitas e a animalitas, seja em sentido ontologico (a diferenca entre animais humanos e nao humanos), seja em sentido etico (a necessidade de que o homem adestre e anule a sua animalidade). Por via da pergunta sobre o animal, portanto, a filosofia chega aquelas que sao as suas questoes principais: o que e o ser humano, o que e o mundo, qual e o destino da humanidade e como ela deve se comportar, questoes que, alias, sao proprias do modo de ser do homem, como o unico animal que pode formular tais interrogacoes sobre si e sobre os demais seres vivos. Assim, sem duvida, o animal e o primeiro enigma da filosofia. Diante dele, o homem se fez tal como e, um ser interrogante e, por isso, simbolico, na medida em que se colocou diante da imagem do animal que ele desenhou no fundo de uma caverna como quem refletia, na imagem, a si mesmo. No desenho, cuja tinta era o proprio sangue do bicho cacado, a humanidade iniciou seus processos culturais caracteristicos.

Tal perspectiva aparece no conceito de aberto com que Agamben, recuperando Heidegger (quase as avessas da interpretacao corrente) utiliza-se para analisar a proposicao segundo a qual o animal seria pobre de mundo1. Agamben tenta mostrar precisamente que o animal e o aberto, ou seja, por ele se estabelece o encontro do Dasein com o Ser, precisamente por meio da negacao da centralidade racional impeditiva que marcou a nossa historia de compreensao metafisica do Ser. Na linguagem heideggeriana o animal e um aberto, embora nao abrivel. Isso significa que ele e o acesso ao Ser apenas tornando-se acessivel, mas isso sem que se tenha acesso a ele por meio das velhas formulas sempre de novo obscurecedoras, tipicas, por exemplo, da ciencia animal ou da metafisica racionalista. O aberto esta ai, aberto, mas nao acessivel, "aberto em uma inacessibilidade e em uma opacidade" (AGAMBEN, 2002, p. 58) que garante o caminho, embora nao o trajeto. A ideia Agamben desenvolve precisamente no capitulo 13 de seu livro homonimo, no qual ele faz referencia a oitava das Elegias de Duino, de Holderling. A referencia explicita o fato de que, enquanto o homem esta sempre diante (Gegenuber) do mundo, o animal esta no aberto, move-se no aberto, ou seja, no centro da Aletheia, no centro da verdade e, portanto, dentro do Ser. Ali ele esta, inacessivel, mas pleno de mundo. Nesse sentido, ao contrario de ser pobre de mundo, o animal vive a riqueza do riquissimo. Ele so e pobre, se analisado com o criterio das projecoes humanas. E, e assim, dentro da verdade que e sua, que o proprio animal, em sua presenca, torna-se abertura para que o homem pergunte sobre sua essencia. E diante do animal, portanto, de sua exposicao radical ao mundo, que o homem observa a si mesmo e restitui-se a animalidade esquecida, abrindo-se para a pergunta sobre o Ser que nele reside. Como animal, o homem habita o mundo e, diante da abertura trazida pelo animal nao humano, ele se reencontra com sua propria essencia. O animal, como aberto, e abertura de possibilidades para que toda a humanidade enxergue nele, a si mesma, ou seja, algo de seu proprio Ser.

O animal como abertura

A seu modo, Hans Jonas, um dos conhecidos discipulos de Heidegger, levou adiante essa interrogacao precisamente perguntando-se sobre o fenomeno da vida como um todo e tentando reinterpreta-lo para alem do dualismo e dos dois movimentos pos-dualistas (monismo materialista e monismo idealista) que teriam fracassado na sua descricao. Na sua obra de 1966, The phenomenon of life, a questao do animal ocupa lugar central, seja na perspectiva da nova ontologia proposta por ele cujo fio condutor e o conceito de liberdade, seja na formulacao da diferenca nao exclusiva ou nao privativa entre animais humanos e nao humanos. No primeiro caso, trata-se de analisar a historia evolutiva da interioridade da vida desde sua constituicao mais elementar como ja portadora daquilo que o autor chama de "premeditacao espiritual"; no segundo caso, o objetivo e mostrar como, diante do animal nao humano, o homem se reconhece como membro da comunidade geral da vida, parte do processo que vai do menos evoluido ao mais rico espiritualmente, algo que que torna o homem um "transanimal", ou seja, um ser que partilha com o animal nao humano parte de sua condicao, precisamente a sua animalidade. Voltaremos a isso mais adiante.

A proposta de Jonas parte da constatacao de que a interpretacao moderna da vida (aquela esbocada por ciencias como biologia e mesmo zoologia) tem dado preferencia as explicacoes materialistas, empurrando assim o tema do espirito (ou da interioridade) para o ambito dos idealismos, muitos dos quais resvalam para o campo das religioes. Trata-se daquilo que ele chamara de "ontologia da morte" (PV (2), 30), um resultado da descoberta da materia pura por parte da ciencia moderna, algo que transformou o morto no unico conhecivel e, sendo assim, o cadaver como meio de acesso ao corpo vivo. Ocorre que, para Jonas, tal metodologia nao foi capaz de desvendar o enigma da vida no sentido de que, mesmo em suas formas mais primitivas, ela ja aparece como portadora de algum tipo de atividade interior, que Jonas descreve com o conceito de "liberdade necessaria", ou seja, um tipo de marca propria do organismo vivo em sua relacao com o meio, que e a sua resposta a precariedade e a ameaca trazida pelo nao-ser. A liberdade e, nesse caso, uma necessidade porque trata se de uma capacidade (uma especie de "decisao") dos organismos em se abrirem para o mundo, algo que passara a marcar os graus de sua propria interioridade, na medida em que individuos menos capazes de encontrar as condicoes de sua propria vida no ambiente imediato, deverao se abrir em maior grau para o mundo, arriscando-se mais na busca e, inversamente, enriquecendo-se mais na procura. Isso significa que as plantas, na medida em que encontram no proprio terreno as condicoes de sua sobrevivencia, sao mais perfeitas do ponto de vista da necessidade, mas mais pobres do ponto de vista da liberdade, ja que as condicoes de vida nao exigiram nenhuma saida mais arriscada, fazendo com que elas obtivessem menos riqueza interior. Os animais, ao contrario, marcados pela carencia maior, sao obrigados a sairem em direcao ao meio, motivados por dois sentimentos: o medo do predador e o desejo do alimento ou reproducao. Na busca, os animais se arriscam mais e, por isso, desenvolvem-se mais interiormente.

A analise dessa questao e o objetivo da filosofia da vida proposta por Hans Jonas, uma filosofia que se apresenta como uma "biologica filosofica", na medida em que e uma ontologia e que se utiliza da descricao fenomenologica: "Esse tema, comum a toda a vida, buscaremos acompanha-lo atraves do crescente desenvolvimento das capacidades e funcoes organicas: metabolismo, movimento e apetite, sensacao e percepcao, imaginacao, arte e conceito--uma escala ascendente de liberdade e risco que culmina no ser humano" (PV, 8).

A liberdade como principio ontologico da vida

A liberdade, assim, e o principio ontologico central do projeto jonasiano e ja pode ser compreendido a partir da "irrupcao do ser no espaco ilimitado das possibilidades" (PD, 17), ou seja, como liberdade do ser em sua saida do nao-ser, como desprendimento do vivente da materia fisica geral. Dessa forma, a liberdade esta ja na raiz da separacao da vida da totalidade da natureza que, em sua maioria, esta marcada pela regra da morte que levou aquela ontologia que se tornou incapaz de conhecer a vida em sua integridade psicofisica. Na medida em que "o inerte passou a ser o conhecivel por excelencia" (PV, 20), Jonas reconhece que essa limitacao foi imposta a capacidade do conhecimento humano e que uma interpretacao mais adequada do fenomeno vital exigira uma ampliacao da possibilidade de acesso a vida em geral e, mais especificamente, a vida animal. Assim e que Jonas afirma que a liberdade "pode servir de fio condutor para a interpretacao do que chamamos 'vida'" (PD, 17) e, com ela, o reconhecimento de que "a vida so pode ser conhecida pela vida" (PV, 115), ou seja, so de dentro ja...

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