The National Truth Comission Report: the discourse of the judiciary/ Relatorio da Comissao Nacional da Verdade: o discurso sobre o judiciario.

AutorSchinke, Vanessa Dorneles
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

Momentos de rupturas institucionais afastam-se das caracteristicas do constitucionalismo, notadamente por embaracar a separacao dos poderes e o respeito aos direitos fundamentais. Estudos comparados nos mostram que, nao raro, esses momentos de excecao valem-se de uma legalidade forjada pelo proprio governo autoritario que mantem um poder judiciario, cujo grau de autonomia--durante o periodo de excecao--varia conforme cada contexto social. Estados de excecao como a Espanha, de Franco (AGUILAR, 2013; LANERO, 1996), o Chile, de Pinochet (MATUS, 2000), a Alemanha, de Hitler (STEINWEIS e RACHLIN, 2013) e a Russia, de Stalin (SOLOMON, 1996) mantiveram seus respectivos poderes judiciarios em funcionamento sem que, necessariamente, isso representasse um empecilho a consecucao dos objetivos de quem estivesse no poder. As funcoes desempenhadas por esses espacos tem sido objeto de reflexao, especialmente pela ciencia politica, cuja identificacao dos papeis exercidos vao desde a marginalizacao dos opositores ate a preservacao politica do governo, quando da implementacao de programas impopulares (MOUSTAFA, 2004). Embora a manutencao do judiciario comporte intrinsecamente, e em tese, um risco aos governos autoritarios, pois a qualquer tempo os magistrados podem exercer, de fato, a autonomia a eles reservada pela legislacao autoritaria, a corriqueira presenca dos judiciarios em contextos de excecao comporta muitas indagacoes. (1)

Dentro da relevancia dessa reflexao teorica, este texto tem por objetivo evidenciar a natureza de sistematizacao do Relatorio da Comissao Nacional da Verdade (RCNV), especificamente no que tange aos trabalhos sobre a atuacao do judiciario durante a ditadura, concretizando, sob um enfoque critico, a indicacao constante nos seus trechos iniciais, em que a Comissao Nacional da Verdade afirma "ter conviccao de que seu legado sera analisado, compreendido e utilizado para alem do encerramento de seu trabalho" (BRASIL, 2014, p. 23). Para tanto, este texto analisara as mencoes realizadas pelo RCNV a dois processos ajuizados na justica comum (federal e estadual) no Estado do Rio Grande do Sul durante a ditadura civil-militar, a fim de tornar claro os recortes feitos pela CNV sobre essas demandas. A contrario sensu, o texto busca demonstrar que as informacoes omitidas pelo Relatorio acerca desses casos evidenciam a necessidade de continuidade e de aprofundamento de pesquisas sobre a atuacao do judiciario durante e apos a ditadura brasileira, a fim de refletir sobre as funcoes desempenhadas por esse espaco e de identificar se eventuais abusos e/ou omissoes cometidos durante a ditadura perduram no regime democratico. (2)

Nesse particular, imperioso destacar o carater prospectivo da justica de transicao. E facil perceber que, com alguma frequencia, as discussoes envolvendo a justica transicional sao obstaculizadas por uma imprecisao terminologica fundamental que inviabiliza a compreensao a respeito da essencialidade que os mecanismos transicionais assumem na construcao de um Estado Democratico de Direito--e nesse sentido, a distincao entre "transicao politica" e "justica de transicao" se revela imprescindivel. A transicao politica nao possui o vinculo indissociavel com um estado substancialmente democratico tal como a justica de transicao. Assim, enquanto o primeiro termo designa o fenomeno de alteracao do controle politico de um setor social para outro em um determinado Estado (independentemente da natureza do sistema de governo que venha prosperar), o segundo esta relacionado a soma de acoes que devem ser adotadas por um Estado que pretende superar o legado autoritario de periodos ditatoriais e criar condicoes para a instauracao de um regime democratico. Nesse passo, a titulo de ilustracao, quando agentes politicos deflagram um golpe de estado para implantar um regime de excecao--com a eliminacao dos direitos politicos e a restricao de liberdades fundamentais dos seus opositores--, embora se reconheca a ocorrencia do fenomeno da "transicao politica", nao existiriam condicoes para a aplicacao dos postulados da justica de transicao.

A pretensao apresentada pelos mecanismos da justica transicional de criar condicoes para a instauracao de um regime substancialmente democratico e capaz de demonstrar que "democracia substancial", "Constituicao" e "imperio do direito" estao intimamente conectados. Nao e por outra razao que o presente trabalho propoe uma analise a luz dos principios e dos valores politicos elencados na Constituicao Federal de 1988, marco fundacional do Estado Democratico de Direito. Ao propor a busca pela verdade (e pela memoria), a construcao de politicas publicas de reparacao das vitimas do estado ditatorial em superacao, a reforma das instituicoes e a responsabilizacao dos agentes do estado envolvidos na repressao politica promovida pelo estado de excecao, a justica de transicao projeta no futuro um espectro de democracia substancial, onde alem da garantia de direitos politicos (que garantam aos cidadaos a participacao politica no sistema de governo), haja protecao de direitos humanos fundamentais (que impecam a estrutura estatal de violar impunemente os direitos fundamentais). Portanto, se e verdade que os mecanismos transicionais se propoem a realizar um reexame do passado no presente, e preciso reconhecer que tal postura e adotada mediante a fixacao de um compromisso inarredavel com o futuro: a implementacao e o aprofundamento do regime democratico.

A decisao da Comissao Nacional da Verdade de dedicar um capitulo especifico no seu relatorio final para a analise da atuacao do poder judiciario durante o regime civil-militar brasileiro (1964-1985) se justifica pelo "alto grau de integracao organizacional entre as forcas armadas e as elites judiciarias" (PEREIRA, 2010:287) no Brasil, de modo que a redemocratizacao nao poderia ser completa diante da eventual ausencia desse enfoque. Como destacado anteriormente, a presente investigacao busca averiguar o conteudo do relatorio nesse trecho especifico da atuacao do poder judiciario durante o estado de excecao e em outros dois casos que mereceram atencao da Comissao Nacional da Verdade, envolvendo diretamente a cooperacao entre poder judiciario e forcas armadas.

Um dos casos tratados pelo Relatorio da Comissao Nacional da Verdade e conhecido como o "caso das maos amarradas". O Relatorio o inseriu dentre os casos emblematicos da ditadura civil-militar brasileira. Conforme o RCNV, o registro deve-se pela forma como a violencia estatal de materializou, notadamente por se tratar de uma perseguicao politica perpetrada contra um sargento do exercito que desertou e passou a integrar o Movimento Nacional Revolucionario, ilustrando que a repressao atingiu militares (BRASIL, 2014, p. 601-607). O segundo caso mencionado pelo RCNV, a ser trabalhado neste texto, e conhecido como "o sequestro dos uruguaios", e aparece no Relatorio no item dedicado as vitimas da Operacao Condor, dentro do capitulo "Conexoes Internacionais: a alianca repressiva no Cone Sul e a Operacao Condor" (BRASIL, 2014:265-268). Conforme o Relatorio, este caso foi selecionado para ilustrar as formas de materializacao da Operacao Condor nome que se deu a um sistema secreto de informacoes e acoes criado na decada de 1970, por meio do qual Estados militarizados do continente americano (Argentina, Bolivia, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) compartilharam dados de inteligencia e realizaram operacoes extraterritoriais de sequestro, tortura, execucao e desaparecimento forcado de opositores politicos exilados. Sob a inspiracao da doutrina de seguranca nacional (DSN), as ditaduras aliadas na Operacao Condor elegeram, de forma seletiva, inimigos ideologicos, denominados "subversivos", como os alvos por excelencia de suas praticas de terrorismo de Estado (BRASIL, 2014:220).

As informacoes presentes no RCNV sobre a atuacao do judiciario brasileiro nesses casos serao cotejadas com dados constantes nos processos judiciais originais, cujas fontes primarias foram acessadas e registradas no Arquivo Judicial Centralizado do Estado do Rio Grande do Sul.

Explicitada a metodologia utilizada, quando dialogadas as informacoes que nao constam no RCNV sobre a atuacao do judiciario brasileiro durante a ditadura com o capitulo 17 (O judiciario na ditadura) do mesmo Relatorio, este artigo pretende deixar latente que o Relatorio da Comissao Nacional da Verdade, no que tange a atuacao do judiciario, nao apresentou analises sobre relevantes praticas adotadas pelos membros daquele poder nem teceu consideracoes sobre o papel exercido pelo judiciario no periodo ditatorial, adotando uma clara funcao indicativa para futuras pesquisas.

  1. O Relatorio da Comissao Nacional da Verdade: sistematizando a violencia praticada pelo estado de excecao

Os debates que sucederam a aprovacao da Lei no 12.528/11 pelo Congresso Nacional em 2011 sobre o papel da Comissao Nacional da Verdade revelam que desde o principio essa questao se demonstrou controvertida. O referido ato normativo, que criou a comissao no ambito da Casa Civil da Presidencia da Republica, traz em seu primeiro artigo a referencia de que a finalidade da Comissao Nacional da Verdade seria "examinar e esclarecer as graves violacoes de direitos humanos praticadas no periodo fixado no art. 8 do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias, a fim de efetivar o direito a memoria e a verdade historica e promover a reconciliacao nacional".

Para alcancar seus objetivos, e a fim de organizar a forma de abordagem, a Comissao Nacional da Verdade criou treze grupos de trabalho coordenados pelos membros do colegiado, representando as principais frentes de estudo e sistematizacao da comissao. Os grupos de trabalho atuaram de forma descentralizada e autonomamente, confluindo de maneira decisiva para a sistematizacao final publicada no dia 10 de dezembro de 2014.

Para o presente estudo, importa destacar a criacao do grupo de trabalho "Ditadura e Sistema de Justica"...

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