"The mere life of obscures": about women's victimization and criminalization/"A vida mera das obscuras": sobre a vitimizacao e a criminalizacao da mulher.

AutorCassol, Paula Durks

Consideracoes iniciais (1)

A criminologia, ao longo dos ultimos seculos, de diversas maneiras buscou reificar o papel da mulher na sociedade, para justificar sua necessidade de ser custodiada, ora pelo pai ou marido, ora pelo Estado. Somente a partir da criminologia critica, e com o surgimento da criminologia feminista, vem se buscando compreender o papel social a ela imputado pela sociedade androcentrista e misogina, tentando assimilar questoes de genero.

E a partir do surgimento do paradigma do genero (2) que se consegue perceber o local designado as mulheres na sociedade, e tambem no direito, compreendendo que vivemos numa sociedade patriarcal, estruturada sob conceitos masculinos, o que se reflete nas suas instituicoes. Assim, sendo a mulher vitima ou autora de delitos, passa-se a analisa-la numa perspectiva criminologica, contextualizando no paradigma do genero e, mais atualmente, numa perspectiva feminista de empoderamento.

O presente trabalho objetiva, partindo deste olhar, verificar o lugar da mulher na criminologia e seus processos de vitimizacao (3) e criminalizacao, pretendendo demonstrar o local da mulher no palmilhar da criminologia, bem como a ausencia da mulher no direito, principalmente, ressaltando o desenvolvimento da criminologia (critica) feminista quanto a vitimas e autoras de delitos.

Destaca-se que enquanto vitima, principalmente de violencia domestica, ha uma dupla violencia sofrida por ela. Primeiro pelo agressor, que ocupando o papel de provedor e chefe do lar, responde atraves da agressao a insubordinacao da companheira, pois a sociedade assim lhe permite; e depois, pelo sistema de justica criminal, que, fazendo parte das estruturas do direito, reproduz a misoginia presente nesse.

Com relacao a mulher autora de delitos, pode ser realizada uma analise por dois vieses. Questiona-se se ela nao estaria mais uma vez sofrendo a influencia da estrutura patriarcal de sociedade e da divisao sexual do trabalho, servindo ao companheiro, pai ou irmao, o que revelaria mais um aspecto de sua vulnerabilidade. E, de maneira diversa, ao envolver-se com a criminalidade, em delitos tidos como nao tipicamente femininos, a mulher comete uma dupla transgressao, pois deixa de seguir o papel social que lhe e imposto (misogino e hegemonico), como mae, dona de casa, custodiada pelo pai ou companheiro--sendo este seu primeiro desvio--, e tambem age conforme uma conduta tipificada como crime--segundo desvio.

Indispensavel, pois, a concepcao de uma criminologia critica feminista, que compreenda, a partir de um olhar macrossociologico, o local de genero onde a mulher e situada e desconstrua-o a partir do empoderamento dela. Para compreender esse contexto, este trabalho foi dividido em tres partes. Em um primeiro momento, ao qual se intitula "Mulheres em conflito com a lei ou a lei em conflito com as mulheres?", busca-se apresentar os sistemas de controle formal e informal que existem e sao exercidos sobre a mulher e como essas duas formas de controle sao permeadas por concepcoes misoginas. Na segunda parte, de titulo "Entre mulheres vitimas", procura-se demonstrar de que forma as instituicoes de controle formal respondem as demandas de violencia contra a mulher e apresentar algumas estrategias informais adotadas pelas mulheres nesses casos. Por fim, em "Entre mulheres autoras", apresenta-se de que como o sistema trata e compreende a mulher que comete um crime, entendendo a formulacao da existencia de uma pressuposta dupla desvianca nesses casos.

Mulheres em conflito com a lei ou a lei em conflito com as mulheres?

O direito foi construido com base em conceitos masculinos, reproduzindo na sua estrutura a ordem patriarcal do genero, subjugando a mulher. A criminologia, dentre as varias ciencias, talvez tenha sido a que mais se aprisionou a esse androcentrismo, "com seu universo ate entao inteiramente centrado no masculino, seja pelo objeto do saber (o crime e os criminosos), seja pelos sujeitos produtores do saber (os criminologos), seja pelo proprio saber" (ANDRADE, 2012: 129). A criminologia tradicional buscou justificar a vitimizacao e criminalizacao das mulheres atraves de estigmas biologicos e psicologicos, etiquetando-a como um ser volatil, facilmente influenciavel, fraco de carater e de fisico, por isso tambem, a necessidade de sua custodia, sua protecao, pelo pai, pelo marido e pelo Estado.

A partir da teoria critica, contudo, entende-se que e o proprio sistema que constroi a criminalidade, ao editar as leis e definir o que e crime (criminalizacao primaria), seleciona quem sera etiquetado, atraves da Policia e de toda a mecanica do Poder Judiciario (criminalizacao secundaria), e estigmatiza como criminosos aqueles que passam pelo sistema (criminalizacao terciaria) (ANDRADE, 2012: 136), possibilitando, por esse processo, a compreensao do lugar da mulher na sociedade como um lugar de genero. Logo, e somente com a criminologia critica que se compreende que os processos de criminalizacao, e tambem, vitimizacao, sao orientados por estereotipos, preconceitos e discriminacoes, presentes no senso comum e nos operadores do controle penal na desigual selecao de pessoas (ANDRADE, 2012: 138).

A partir da criminologia critica, cria-se um cenario mais "favoravel as incursoes feministas da criminologia" (MATOS; MACHADO, 2012), primeiramente, com relacao a vitimizacao da mulher, principalmente sexual, e apos com os processos de criminalizacao da mulher e as reacoes do sistema juridico penal a esses. A criminologia (critica) feminista se opoe as que a antecederam, que justificavam a criminalidade feminina pela natureza biologica da mulher, ou entao pela coacao de figuras masculinas que exerciam o poder sobre elas (MATOS; MACHADO, 2012), propondo a analise dos processos de vitimizacao e criminalizacao da mulher na conjuntura do paradigma do genero e, atualmente, tambem a partir dos outros processos de estigmatizacao da mulher (etnia/raca, sexualidade, capacidade, classe economica).

Procura-se, entao, desconstruir os discursos da irracionalidade feminina atraves da analise de fatores sociais, como "a marginalizacao social e economica das mulheres, o poder patriarcal e os dispositivos informais de controle do comportamento feminino" (MATOS; MACHADO, 2012). Percebe-se que "toda mecanica do controle (enraizada nas estruturas sociais) e constitutiva, reprodutora das profundas assimetrias de que se engendram e se alimentam, afinal, os estereotipos, os preconceitos e as discriminacoes, sacralizando hierarquias" (ANDRADE, 2012: 137). Esses estereotipos, com relacao a mulher, vem sendo construidos desde a Idade Media, se nao antes, atraves da idealizacao da mulher na sociedade patriarcal, isto e, mae, esposa, cuidadora e submissa, manifestando-se restritamente no ambiente domestico. Nesse sentido, "costuma-se comparar a casa--onde a mulher foi por seculos regalada--a uma especie de gueto, que marcou fisica e espacialmente a marginalizacao social da mulher" (BOBBIO, 2011:117).

As mulheres, entao, e determinado esse padrao comportamental, que vem se perpetuado como hegemonico, buscando-se impedir o desvio dele tanto atraves do controle social formal, quanto informal. Destaca-se que controle social, num sentido lato, sao as formas com que a sociedade responde, informal ou formalmente, difusa ou institucionalmente, a comportamentos e a pessoas que contempla como desviantes, problematicos, ameacantes ou indesejaveis, e nessa reacao seleciona, classifica, estigmatiza o proprio desvio e a criminalidade como uma forma especifica dele (ANDRADE, 2012: 133). O controle social formal e aquele exercido pelas instituicoes, como o Judiciario, Policia, Ministerio Publico, integrando a ele os processos de criminalizacao primaria, secundaria e terciaria; ja o controle social informal da-se por meios difusos, como a familia, a igreja, a escola. No entanto, no que concerne a mulher, o controle informal e muito mais presente e atuante. Destaca-se que:

O sistema de controle dirigido exclusivamente a mulher (no seu papel de genero) e o informal, aquele que se realiza na familia. Esse mesmo sistema vem exercitado atraves do dominio patriarcal na esfera privada e ve a sua ultima garantia na violencia fisica contra as mulheres (BARATTA, 1999: 46).

Nessa linha, o controle informal infligido a mulher materializa-se na familia, atraves da figura do pai, padrasto ou marido, bem como na escola, na religiao e na moral (ANDRADE, 2012: 145). Percebe-se mais claramente esse controle na infancia, quando se designa as meninas os brinquedos "rosa" e ligados a casa e a maternidade, quando se diz que "isso nao e coisa de menina", ou "sente como menina", perpetuandoo durante toda a vida da mulher, no ambiente de trabalho, no casamento (na familia), e ate mesmo na rua.

Subsidiariamente, ha o controle formal, realizado pelas estruturas do sistema penal, que age tanto de modo integrativo ao controle informal de trabalho, reforcando o controle capitalista de classe (ANDRADE, 2012: 144), quanto de modo residual, pois e dirigido primordialmente aos homens, constituindo um mecanismo masculino de controle para a repressao de condutas masculinas, regra geral, praticadas pelos homens, e so secundariamente pelas mulheres (ANDRADE, 2012: 145). Isto e, nao ha relevancia para o sistema penal das condutas femininas, so a criminalizando residualmente, de modo que o sistema penal tambem resta masculinizado.

Isso se reflete claramente nas estruturas do sistema de justica criminal, nas mas condicoes em que se encarceram mulheres gravidas, na ausencia de material de higiene basico e imprescindiveis as detentas, na propria estrutura pessoal da justica que e machista e, por vezes, ridiculariza mulheres vitimas de violencia. Em outras palavras, o sistema penal funciona de forma integrada ao controle informal feminino, o que reforca o controle patriarcal sobre a mulher, criminalizando-a em algumas situacoes e reconduzindo-a ao 'seu' lugar de vitima (ANDRADE, 2012: 146).

O sistema...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT