The legal-urban order in the judicial trenches/ A ordem juridico-urbanistica nas trincheiras do Poder Judiciario.

AutorAlfonsin, Betania de Moraes
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

A producao de cidades na America Latina, marcada pela convivencia de processos legais e ilegais de acesso a terra, embora tenha sido regida pelo Direito Civil ao longo de quase todo o seculo XX, experimentou uma mudanca no padrao de regulacao, especialmente na ultima decada do seculo passado e na primeira decada do seculo XXI. (1)

No Brasil, a construcao de uma nova ordem juridico-urbanistica comeca em 1988, com a promulgacao da Constituicao Federal (2), e tem seu marco legal detalhado em 2001, com o Estatuto da Cidade (3). O caso brasileiro e merecedor de pesquisa. O pais conquistou um marco legal avancado, que previu efeitos juridicos concretos para o desatendimento do principio da funcao social da propriedade e introduziu o direito a cidade no ordenamento juridico patrio. No entanto, a nova ordem juridico-urbanistica parece conviver, ainda hoje, com a antiga ordem civilista, aqui denominada de "modelo proprietario", paradigma comprometido com uma concepcao de direito de propriedade de carater absoluto, exclusivo, individual e perpetuo.

O presente artigo procura enfrentar o problema da efetividade dessa nova ordem juridico-urbanistica no Brasil, notadamente no que diz respeito ao ambito do Poder Judiciario. Tal agenda de pesquisa emerge de duas constatacoes aparentemente contraditorias: (i) sendo a politica urbana de competencia municipal (art. 30, VIII e art. 182 da Constituicao Federal), os poderes Executivo e Legislativo dos municipios tem tratado de incorporar, ao menos minimamente, as diretrizes e instrumentos do Estatuto da Cidade em seus planos diretores e na legislacao urbanistica decorrente (4); (ii) apesar da massiva incorporacao de novos instrumentos a legislacao urbanistica municipal, os conflitos territoriais envolvendo posse e propriedade, muitas vezes com ordens judiciais de despejo cumpridas de maneira bastante violenta, sao frequentes em todo o pais (5).

Considerando tal paradoxo eo papel preponderante do Poder Judiciario nas situacoes de despejos forcados, esta pesquisa, realizada ao longo de 2015, tomou por objeto de analise o acervo jurisprudencial do Tribunal de Justica do Rio Grande do Sul(TJRS), a fim de verificar em que medida o Estatuto da Cidade foi aplicado em casos concretos, considerando temas-chave do novo paradigma, como o direito a cidade e o direito a moradia. Trabalhou-se com a hipotese de que, apesar dos avancos legislativos representados pelo Estatuto da Cidade, a jurisprudencia do tribunal selecionado revelaria a existencia de uma disputa de fundo em torno da politica urbana, na qual o paradigma civilista teria hegemonia, em desfavor da nova ordem juridico-urbanistica brasileira.

A investigacao demonstrou que tal disputa paradigmatica efetivamente existe, mas que a forma como o Estatuto da Cidade e aplicado (ou nao) pelo TJRS esta longe de ser uniforme e depende de varios outros fatores envolvidos nos casos concretos. Em muitos casos analisados identificou-se uma especie de ativismo judicial bastante singular, adicionando complexidades as conclusoes da pesquisa. Embora a analise confirme que ha uma transicao paradigmatica ainda em curso na regulacao da politica urbana no Brasil, percebe-se que o avanco jurisprudencial e lento, assistematico e evolui de forma distinta conforme a presenca de atores publicos ou privados nos casos concretos.

No decorrer deste trabalho serao discutidos os tracos caracteristicos do paradigma civilista, bem como aqueles proprios da nova ordem juridico urbanistica (secoes 1 e 2); a questao do ativismo judicial no contexto do Brasil (secao 3); a metodologia da pesquisa empirica (secao 4); e o conteudo dos acordaos selecionados a partir das palavras-chave utilizadas (secoes 5 a 9). Ao final, sao apresentadas as conclusoes da pesquisa.

  1. O paradigma civilista ou "modelo proprietario" no direito brasileiro

    No dominio da regulacao dos usos da terra, a historia brasileira e marcada por certo descompasso entre as grandes inovacoes legislativas e o conjunto de praticas sociais subjacentes. Tal desarmonia entre textos e contextos, ainda que carregue multiplas e distintas explicacoes ao longo dos diferentes capitulos historicos nacionais, persiste ate os dias de hoje, tendo no instituto da propriedade um exemplo privilegiado.

    Uma dessas grandes inovacoes deu-se com a promulgacao da Constituicao Federal, responsavel por inaugurar um novo paradigma na forma de se compreender juridicamente os contornos do direito de propriedade e, por consequencia, os direitos a cidade e a moradia. Visando destacar o significado dessa mudanca paradigmatica, cabe dedicar algumas linhas a descricao sumaria das genealogias das formas de regulacao dos usos da terra no Brasil, anotando seus tracos mais marcantes. Ainda que nao se trate de incursao historica de maior folego, este olhar para tras contribui para a adequada compreensao dos desafios contemporaneos colocados ao Direito Urbanistico brasileiro.

    Com efeito, pode-se dizer que vingou no Brasil, ate meados do seculo XIX, a velha tradicao do direito comum europeu, com emanacoes legislativas quase integralmente provindas do alem-mar, ainda que sempre adaptadas e ressignificadas a partir das particularidades locais. No ambito do direito de propriedade as coisas nao foram diferentes. Ainda que cercada de particularidades locais e diferencas decisivas em relacao a realidade europeia medieval (6), a existencia de caracteristicas pre-modernas na regulacao dos usos da terra tambem se verificou no Brasil. Ao longo da empresa colonial e de parte importante do periodo imperial, a politica de terras no pais incorporou um misto de institutos feudais e mercantis carregados de flexibilidade, precariedade e informalidade, cujos contornos iam se adaptando as transformacoes demograficas e socioeconomicas pelas quais passava o Brasil.

    Tal processo de modernizacao vinha acompanhado de mudancas profundas nos fundamentos da gestao da vida publica, incidindo na forma com que se concebia e praticava o direito. Esse ethos permeado pelo racionalismo iluminista caracteristico do ideario liberal-republicano que marcava o novo desenho politico do pais encontrou desdobramento na conformacao do direito de propriedade. A propriedade passa a ser concebida como um direito absoluto, pleno, tendencialmente perpetuo e essencialmente privado, nao se sujeitando a limitacoes externas, conferindo a seu titular uma posicao juridica praticamente imune a limitacoes ou interferencias externas (7). Tal ideario reconfigura o direito de propriedade, "[...] a tal ponto que um dos principais elementos constitutivos das nascentes entidades politicas burguesas e a mais rigida protecao a eventuais ataques ao 'sagrado' e 'absoluto' direito de propriedade--e isso tanto da parte do Estado quanto de outros particulares" (8). E a essa doutrina que se designa por "modelo proprietario" (9).

    Se essas concepcoes de propriedade ja ecoavam na producao dos juristas brasileiros do seculo XIX, o reflexo no direito positivo so se fez sentir com o advento da Lei de Terras (10), um marco juridico de insercao do pais no circulo capitalista moderno. O diploma legal transparece ao menos tres objetivos: a contencao de ocupacoes informais de terras devolutas, a formalizacao das propriedades por meio de titulacoes e o fomento da mao de obra imigrante nas lavouras. E bem verdade, porem, que a Lei de Terras pouco alterou as relacoes de dominacao ha muito estabelecidas, ainda que tenha servido para legitima-las a partir de novas bases juridicas. Do ponto de vista juridico, tais relacoes, ate entao marcadas pelos lacos de cunho pessoal e a merce dos designios da coroa, passam a assumir ao longo deste processo de modernizacao formas ditadas pelos proprietarios e dependentes do mercado (11). Os ecos desse liberalismo patrio relativo a propriedade, ainda se fazem sentir com indesejavel constancia na praxis juridico-politica referente aos conflitos urbanos, constituindo o denominado paradigma civilista, plasmado nas disposicoes do Codigo Civil (12).

  2. O paradigma da nova ordem juridico-urbanistica brasileira

    A Constituicao Federal de 1988 e apontada por muitos estudiosos como o marco fundador do Direito Urbanistico brasileiro, ja que pela primeira vez na historia constitucional da Republica se deu visibilidade a questao urbana. (13) O capitulo da Politica Urbana foi resultado da Emenda Popular da Reforma Urbana, fruto de um amplo processo de mobilizacao de diversas entidades e movimentos sociais a epoca da Assembleia Nacional Constituinte. Mais de 130 mil assinaturas foram coletadas em todo o pais visando incluir vinte e tres artigos sobre politica de desenvolvimento urbano na Constituicao. Em funcao do conteudo inovador da proposta, a emenda foi mutilada nos debates constituintes hegemonizados pelo bloco de centro-direita conhecido como "Centrao", restando na Constituicao apenas os arts. 182 e 183.14

    O teor progressista do capitulo da Politica Urbana, no entanto, foi preservado. Segundo as disposicoes constitucionais, o tratamento do direito de propriedade, quando o mesmo recair sobre um imovel urbano, fica submetido a disciplina do Plano Diretor do municipio e deve ser exercido objetivando o pleno cumprimento das funcoes sociais da cidade e da propriedade. Alem disto, foram incluidos instrumentos capazes de conferir efeitos juridicos ao principio da funcao social da propriedade, como o parcelamento e edificacao compulsorios, o Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo e a desapropriacao com pagamento em titulos da divida publica dos terrenos nao edificados, nao utilizados ou subutilizados. Por fim, uma nova modalidade de usucapiao foi introduzida no ordenamento juridico, baseando-se na utilizacao familiar do terreno para fins de moradia e reduzindo para cinco anos o prazo prescricional para aquisicao do dominio. Todavia, muitas das disposicoes contidas no capitulo da Politica Urbana nao eram autoaplicaveis e demandavam a aprovacao de uma lei federal...

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