The knowledge about the environment and the environment for knowledge: notes about the conjuncture of the debate on vulnerability/O conhecimento do ambiente e o ambiente do conhecimento: anotacoes sobre a conjuntura do debate sobre vulnerabilidade.

AutorAcselrad, Henri
CargoDossie Trabalho, Saude e Ambiente

Introducao

O campo da ciencia define-se por um conjunto de posicoes e relacoes atraves das quais os agentes nele atuantes concorrem pelo poder de estabelecer o que e e o que nao e cientifico, quais os temas relevantes, os objetos e metodos legitimos de pesquisa. Nesse campo defrontam-se construcoes sociais concorrentes, representacoes que se pretendem fundadas numa "realidade" que se supoe capaz de validar os metodos coletivamente acumulados (BOURDIEU, 1975). Os agentes e instituicoes presentes no campo disputam a definicao do tipo de ciencia deve ser feito, o que e atual e o que e ultrapassado. Ao lado, porem, dessa metafora espacial evocada para a construcao da nocao de campo cientifico, pretendemos aduzir aqui que caberia considerar que tais agentes e instituicoes articulam-se igualmente frente a circunstancias temporais--a conjunturas determinadas onde configura-se o que alguns chamam de "clima do debate". Edward Said (2005) destaca o fato de que, ao procurar problematizar o consenso aparente em torno da "objetividade dos fatos", certos pesquisadores procuram buscam adotar o papel de intelectual critico, cuja perspectiva nao e a de mostrar que esta certo, mas de tentar induzir uma mudanca no clima moral do debate. Eis que o conhecimento sobre o meio ambiente, em particular o modo como o debate ambiental tem se configurado desde o inicio dos anos 2000, parece, em grande parte, depender de um ambiente do conhecimento que tem se mostrado--e o que procuraremos mostrar--pouco propicio ao exercicio da reflexao e da capacidade critica. Procuraremos desenvolver, a seguir, tal questao, segundo duas distintas vias de entrada a do ambiente do conhecimento, aplicado ao debate sobre a tematica da vulnerabilidade--e a do conhecimento do ambiente, no que este se articula as dinamicas de vulnerabilizacao de determinados grupos sociais no contexto de um modelo de desenvolvimento baseado na expansao das fronteiras da acumulacao e na expropriacao de recursos comunais, associados a dinamicas especulativas nos campos financeiro e imobiliario.

O ambiente do conhecimento: a "microssociologia" de um debate sobre a vulnerabilizacao ambiental

Em um debate publico organizado por instituicoes academicas sobre o tema da vulnerabilidade e dos riscos ambientais, chamou-se a atencao para o fato seguinte: na busca de indicadores para orientar acoes contra a vulnerabilidade social, costuma-se caracterizar o perfil sociodemografico e locacional de individuos "sob risco"--em face da probabilidade de ocorrencia de agravos-ou vulneraveis-com suscetibilidades a sofrer agravos--, mas tem-se grande dificuldade em considerar os aspectos processuais e relacionais presentes na producao social da vulnerabilidade. A busca de elementos para a caracterizacao objetiva das condicoes de vulnerabilidade dos sujeitos tende a esbarrar em duas dificuldades correntes--a de nao considerar a vulnerabilizacao como um processo e a condicao de vulnerabilidade como uma relacao. Por esta razao, ao lado de outras comunicacoes, na ocasiao daquele evento, apresentadas a respeito dos riscos que a mudanca climatica oferecem a conservacao de monumentos historicos, tema de grande relevancia para a preservacao de obras que testemunham a grandeza da criatividade humana, buscava-se tambem trazer a discussao a questao da vulnerabilidade ambiental historicamente determinada--e desigualmente distribuida na sociedade--como objeto teorico.

Ocorre que este tipo de problematizacao provocou surpreendente reacao entre alguns organizadores do evento (1): a questao foi considerada extemporanea, sob a alegacao de que o pais, entrando na segunda decada do seculo XXI, nao se encontraria mais num estagio de desenvolvimento que justificasse preocupacoes com supostos processos permanentes de producao de vulnerabilidades; ja ter-se-ia avancado para novos patamares--sustentou-se entao--cabendo a pesquisa academica, no presente estagio, tornar-se mais propositiva, colaborando diretamente com governos no aperfeicoamento das condicoes de insercao do pais na economia internacional. Isto posto, pretendo sugerir aqui que, ao lado das dificuldades propriamente metodologicas para a caracterizacao das vulnerabilidades como processo e como relacao, nos defrontamos tambem com elementos conjunturais que concorrem para que se manifeste uma certa resistencia a problematizar e historicizar a producao social das vulnerabilidades. Vou a seguir relatar as ideias basicas que foram entao expostas naquele debate, para procurar depois melhor entender o modo como elas foram recebidas por alguns dos organizadores do debate.

Na ocasiao, atraves de uma curta revisao da literatura corrente, se trouxe a consideracao do publico presente os chamados "fatores" associados a producao da vulnerabilidade--individuais, politico-institucionais e sociais. Abordou-se criticamente a abordagem pelo lado do individuo, aquela que sugere forte interveniencia de escolhas individuais na configuracao da condicao de vulneravel: a) os que vivem em condicao de risco, diz-se, "evocam rituais de busca extrema do limite humano, aproximando-se da morte por meio de condutas arriscadas" ou b) "cometem erros de calculo quando deixam de investir ou fazem mas escolhas na constituicao de sua carteira de ativos", comprometendo, por exemplo, a sua "empregabilidade", ou sua "capacidade de acessar a estrutura de oportunidades sociais". A imprevidencia dos individuos seria a causa de sua vulnerabilidade. Cabe a este proposito lembrar as manchetes correntes do tipo "Ocupacoes irregulares provocam deslizamento" que aparecem quotidianamente na grande imprensa, dissociadas em sua apresentacao de qualquer referencia ao modelo de industrializacao com baixos salarios que pressupos a ocupacao de areas improprias com a tolerancia do Estado, a ausencia ou insuficiencia de politicas habitacionais como elemento capaz de explicar a ocorrencia de ocupacoes irregulares etc. Esses sao exemplos, pois, de abordagens que individualizam a exposicao ao risco.

Mas mesmo entre os que consideram que a vulnerabilidade e socialmente produzida e que praticas politico-institucionais concorrem para vulnerabilizar certos grupos sociais, o locus da observacao tende a ser o individuo --e seu deficit de capacidade de autodefesa--e nao propriamente o processo. O esboco de indices de vulnerabilidade juvenil, por exemplo, pretende fornecer elementos para politicas que impecam ou minimizem "escorregoes para a transgressao". Ou seja, podemos supor tratar-se, para os que o tentaram conceber, de dar elementos para politicas destinadas a reduzir os indices de desestruturacao do tecido social tais como desigualdade social, baixa renda, taxas de homicidio, abandono de escola, gravidez precoce, lares sem pai e com mae trabalhando, habitacoes superlotadas, escolas com exodo de professores etc. Ora, o que deveria estar em causa seriam, portanto, as politicas e instituicoes que favorecem a emergencia de tais males e nao "o risco que os individuos destituidos de direitos oferecem as instituicoes"--os chamados "escorregoes para a transgressao".

Nas definicoes mais correntes, portanto, a condicao apontada esta posta nos sujeitos e nao nos processos que os tornam vulneraveis, o que esvazia a dimensao politica da distribuicao--via de regra desigual--dos riscos. Uma alternativa politizadora seria, por exemplo, a de definir os vulneraveis como vitimas de uma protecao desigual. Essa e a formulacao do Movimento de Justica Ambiental dos EUA: poe-se foco no deficit de responsabilidade do Estado e nao no deficit de capacidade de defesa dos sujeitos (BULLARD, 1993; GOULD, 2004). Nesse caso a observacao dirigese aos mecanismos que tornam os sujeitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT