The interface between the cultural subsystem and human trafficking/ A interface entre o subsistema cultural e o trafico de pessoas.

AutorGebrim, Luciana Maibashi

Introducao

Segundo Lemaitre (1984 apud GOMES, 2000: 113), dentre as funcoes da cultura estao: fornecer uma interpretacao da realidade, proporcionando o quadro de referencia a partir do qual os sujeitos e os grupos atribuem sentido as suas atividades e acontecimentos; colocar os atores em posicao de agir, com a reducao das incertezas; assegurar a manutencao e a reproducao da ordem social, por meio de um "codigo cultural", que assegure a integridade e a identidade do sistema social; e funcionar como fator de identificacao.

Para cumprimento de suas funcoes, o subsistema cultural opera por meio de estruturas proprias, como as sagas, as lendas, as historias, os mitos, os ritos, os simbolos e a linguagem, que nada mais sao do que manifestacoes culturais. As sagas e as lendas ajudam a criar lideres carismaticos, exaltados por experiencias, protagonismos, que acabam por fazer parte da heranca cultural e simbolica da sociedade.

As historias manifestam-se como sequencia de acontecimentos cobertos de sentido simbolico, de forma a possibilitar a tomada de opcao, o apaziguamento de ambiguidades e incertezas e novas formas de resolucao de problemas. Os mitos, dotados de grande carga de emotividade, auxiliam na fixacao de valores, de modo a determinar o que sera aceitavel ou nao em sociedade. Os ritos sao celebracoes publicas, de comportamentos e valores considerados insubstituiveis em uma determinada cultura.

Os simbolos proporcionam um sentido comum a organizacao, na medida em que os valores e as ideias passam a ser compartilhadas por todos, enquanto a linguagem viabiliza o sentido e a construcao da realidade.

A partir de pesquisa bibliografica e documental, o presente artigo pretende demonstrar que o trafico internacional de pessoas, no subsistema cultural, esta saturado de sagas, lendas, historias, mitos, ritos, simbolos e linguagem, manifestados na forma de moralismos, do patriarcalismo, da discriminacao de genero e da violencia domestica, que, por meio de codigos binarios como pureza/impureza, mulher honesta/desonesta, masculinidade/feminilidade e superioridade/inferioridade, acabam por reproduzir a ordem vigente, gerando disfuncoes no ambiente dos demais subsistemas sociais, especialmente no subsistema juridico-penal.

  1. O trafico de pessoas sob a perspectiva da moral

    A origem historica do debate sobre trafico de mulheres encontra-se nas politicas publicas de regulacao da prostituicao vigentes na Inglaterra na segunda metade do seculo XIX. A revolucao industrial trouxe consigo o deslocamento de um grande numero de pessoas para os grandes centros de producao industrial, gerando o crescimento populacional urbano. Paralelamente, houve um incremento dos fluxos migratorios, especialmente em direcao aos Estados Unidos. Objetivando preservar a ordem moral e social ameacada pelo crescimento da pobreza nas cidades, varias leis de carater penal foram promulgadas na Gra-Bretanha, incluindo legislacao sobre a prostituicao (BORDONARO, 2008: 4).

    As prostitutas, alem de taxadas como fracassadas e responsaveis pela degradacao da moral e pelo aumento da criminalidade, eram tidas como uma ameaca potencial a saude publica, haja vista o perigo de transmissao de doencas venereas, como a sifilis e a gonorreia. Como forma de regulacao estatal da prostituicao, entre 1864 e 1885, a Gra-Bretanha editou os chamados Contagious Deseases Acts, obrigando as prostitutas a se submeterem a exames ginecologicos, sob pena de prisao. Aquelas acometidas por alguma doenca sexualmente transmissivel eram internadas em hospitais ate que fossem curadas (BORDONARO, 2008: 4).

    Nas decadas finais do seculo XIX, em meio as criticas ao sistema regulamentador da prostituicao, emergiu na Europa uma campanha abolicionista de combate a prostituicao, capitaneada por ativistas feministas, como Josephine Butler. De acordo com os adeptos do abolicionismo, a prostituta e uma vitima e so exerce a atividade por coacao de um terceiro, o explorador ou agenciador (KEMPADOO, 2005: 58).

    A prostituicao, para os abolicionistas, e uma forma de violencia de genero, na qual a identidade e a subjetividade das mulheres se encontram comprometidas, sofrendo danos fisicos e psiquicos e, portanto, carecendo de qualquer tipo de reconhecimento no mundo juridico, devendo ser erradicada (DAICH, 2012: 74).

    O termo white slavery aparece pela primeira vez em uma carta de apoio escrita por Victor Hugo, em 1870, a feminista Josephine Butler, em alusao a situacao de subordinacao das mulheres que exerciam a prostituicao em relacao aos homens. Porem, a ligacao do termo white slavery com a prostituicao forcada e involuntaria veio a ser realizada por Alfred Dyer, no livro The European Slave Trade in English Girls, publicado em 1880 em Londres. No referido livro, o autor afirmava que meninas inglesas eram detidas como prisioneiras em bordeis na Belgica (GRITTNER, 1990: 41).

    Em um contexto no qual o governo britanico ameacava ignorar a aprovacao do Criminal Law Amendment Bill, uma lei que estendia os poderes de policia em relacao a prostituicao, uma serie de materias jornalisticas sobre o tema da prostituicao infantil em Londres, intituladas The Maiden Tribute of Modern Babylon, foi publicada em um dos principais jornais diarios ingleses, repercutindo instantaneamente em toda a Europa e nos Estados Unidos. A repercussao publica teve como efeito imediato a revogacao dos Contagious Deseases Acts e a aprovacao do Criminal Law Amendment Bill (BORDONARO, 2008: 5).

    A partir dai, o tema das escravas brancas e da prostituicao infantil incorporou-se definitivamente na agenda internacional, passando o trafico de brancas a ser utilizado como sinonimo de comercio transfronteirico de mulheres e meninas. Com esse significado, iniciou-se o processo de reconhecimento internacional do trafico de pessoas, primeiro na GraBretanha, no ano de 1881, e posteriormente na Conferencia Internacional celebrada em Paris em 1902.

    No ano de 1904, foi celebrado o primeiro acordo internacional para a supressao do trafico de mulheres brancas. Doze chefes de Estados europeus, preocupados com a seguranca de mulheres e meninas, acordaram em Paris medidas para o intercambio de informacoes entre os Estados signatarios, colocando suas estacoes ferroviarias, portos de embarque e estradas em vigilancia, a fim de providenciar o repatriamento de prostitutas de nacionalidade estrangeira, mas sem qualquer alusao a punicao das pessoas responsaveis por seus transportes.

    Os Estados Unidos logo foram contagiados pela onda de panico do comercio de escravas brancas, com a publicacao, em 1907, do artigo The City of Chicago: a Study of the Great Immoralities, na revista McClure's, pelo jornalista George Turner, relatando a "[...] chegada aos Estados Unidos de empresarios do vicio que tiravam proveitos do rapto e da venda de meninas brancas autoctones ou estrangeiras para o trafico de escravas sexuais." (BORDONARO, 2008: 5).

    Em 1910, foi editado nos Estados Unidos o Act Mann, impondo a responsabilidade criminal pelo transporte interestadual ou transfronteirco de mulheres para fins de prostituicao, libertinagem ou qualquer outro proposito imoral. Como critica Emma Goldman (1910: 247), em alusao ao primeiro grande panico moral sobre o trafico de mulheres nos Estados Unidos, de repente, os reformadores fizeram uma grande descoberta: o trafico de escravas brancas, condicao de que nunca se ouviu falar, inaugurando-se uma cruzada contra a imoralidade.

    Doezema (2000: 39), Grittner (1990: 64), Irwin (1996: 4), entre outros autores, retratam de forma consensual o chamado trafico de escravas brancas como um mito com caracteristicas de um panico moral, haja vista a reacao completamente desproporcional de milhoes de pessoas frente a uma suposta ameaca a pureza e sexualidade das mulheres.

    Conforme Doezema (2000: 39-40), as narrativas de escravidao branca e trafico de mulheres funcionam como mitos culturais na construcao de concepcoes particulares sobre a questao da migracao para a industria do sexo, refletindo a necessidade percebida pela sociedade da epoca de regular a sexualidade feminina, sob o pretexto de proteger as mulheres. Eram indicativos de profundos medos, incertezas e preocupacoes, no que concerne a identidade nacional, diante dos estrangeiros, imigrantes, colonizados e dos desejos crescentes das mulheres por autonomia.

    Os reformadores da era progressista utilizavam o termo escravidao branca para promover a imagem de jovens brancas indefesas da Europa e da America, que estariam sendo drogadas, raptadas, escravizadas contra as suas vontades e forcadas a manter relacoes sexuais com nativos humildes e orientais ricos. Conforme Blanchette e Silva (2009: 80):

    Tipicamente, tais narrativas relatavam a historia de uma moca, supostamente "pura" e "inocente" (leia-se virgem), que e aliciada por figuras suspeitas (muitas vezes nao-brancos) do submundo e que rapidamente cai num "mundo de degradacao", no qual e forcada a manter relacoes sexuais com uma serie de homens repugnantes e socialmente inaceitaveis. Embora sem muito fundamento na realidade, tais historias eram amplamente divulgadas pela midia da epoca.

    Inumeras pecas de teatro, filmes, livros e panfletos sobre escravidao branca, com historias morbidas e obscenas, foram produzidos nos Estados Unidos no periodo entre 1900 e 1920. Dentre eles, Bordonaro (2008: 6) cita Fighting the Traffic in Young Girls, War on the White Slave Trade e The House of Bondage, publicados em 1910, e The Great War on White Slavery, Fighting for the Protection of Our Girls e The Tragedies of the White Slaves de Lytle, editados em 1911.

    No final do seculo XIX e inicio do seculo XX, a Europa e os Estado Unidos passavam por um periodo de rapida urbanizacao e transformacao social. O ingresso das mulheres no mercado de trabalho criou condicoes para um aumento de suas mobilidades, tanto no interior do pais, quanto em direcao a outros paises. Simultaneamente, a mudanca na composicao racial das cidades se tornava visivel em virtude do...

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