The "imperatives of the march revolution" and the legitimization of the dictatorship/Os "imperativos da revolucao de marco" e a fundamentacao da ditadura.

Autorde Carvalho, Angelo Gamba Prata

Introducao

Para o estudioso do direito constitucional, ditaduras sao normalmente apresentadas como a antipoda do que tanto se defende sob o conceito de constitucionalismo democratico. Suas caracteristicas e praticas, especialmente por meio de um olhar retrospectivo, assustam e levantam o questionamento sobre os modos e as causas de sociedades terem convivido com essa realidade por decadas. Nao raramente um desconfortavel ressentimento se consubstancia ao se verificar que, mais do que vitimas, sociedades inteiras foram peca essencial para a construcao e promocao de regimes autoritarios. Nao e sem razao que, como afirmam Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat, em tais contextos, sociedades, "diante do espelho, nao raro, descobrem-se mesmo como parte de sua engrenagem, a gesta-lo, a alimenta-lo" e que isso impoe a necessidade de entender as ditaduras a partir de "um quadro mais complexo e fino das muitas relacoes possiveis das sociedades com os regimes autoritarios e ditatoriais." (ROLLEMBERG; QUADRAT, 2010, p. 12). No caso brasileiro, por exemplo, a ditadura de 1964-1985 foi, na verdade, uma ditadura civil-militar, uma vez que o golpe encontrou forte respaldo social, como se observou nao apenas na Marcha da Familia com Deus pela Liberdade, anterior ao golpe, mas tambem nas dezenas de marchas desse tipo que ocorreram no pais nos primeiros meses de ditadura (BARBOSA, 2012, p. 51; PRESOT, 2012, p. 71).

Para sustentar muitas dessas "relacoes possiveis das sociedades com os regimes autoritarios e ditatoriais" (ROLLEMBERG; QUADRAT, 2010, p. 12), a construcao do discurso justificador do proprio autoritarismo merece uma adequada analise, explicitando, assim, as ambivalencias do momento. O Brasil apresenta, nesse aspecto, uma riqueza impar no direito comparado. Se e possivel desenhar uma normatividade do discurso justificador do autoritarismo, o Brasil serve como um importante paradigma em razao do modo como o direito--e os conceitos que dele derivam--foram estrategicamente enviesados para defender, na ditadura, o verniz democratico. Especialmente em nossa ditadura de 1964 a 1985, em meio a cassacoes e perseguicoes a opositores politicos do regime, prisoes arbitrarias e tortura sistematica nos poroes da ditadura, o regime militar procurava formas de legitimacao formal de sua permanencia no poder. Governos autoritarios buscam, de diferentes modos, argumentos para evitar a admissao de seu carater antidemocratico e, no caso brasileiro, essa estrategia se deu pela propria remodelacao de conceitos juridicos. Em sintese, a ditadura fez do direito seu instrumento fundamental para se dizer democratica. E mais: fez da doutrina juridica seu canal garantidor de uma argumentacao legitimadora de suas arbitrariedades.

Os exemplos sao varios e nao demoraram a se materializar como norma institucionalizada por via do direito, que, nao apenas formalmente se construiu pela excepcionalidade, mas materialmente passou a se definir pela onipotencia do proprio conceito de "revolucao", mesmo que ainda profundamente ligado ao passado tradicional. Como diz Leonardo Barbosa, "o passado e religado ao presente, a operacao do sistema do direito, para legitimar um determinado projeto de futuro" (BARBOSA, 2012, p. 33). Esse paradoxo do conceito de "revolucao" com o passado tradicional, em uma clara concertacao das elites, se fez tambem pela remodelacao do conceito de "poder constituinte" para o momento. O texto do Ato Institucional (AI), baixado dias apos o golpe pelo entao denominado Comando Supremo da Revolucao, nao transparece duvidas a esse respeito. Segundo ele, "A revolucao vitoriosa se investe no exercicio do Poder Constituinte. [...] Esta e a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolucao vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma." (BRASIL, 1964)

Desse modo, por mais que ainda nao tivesse sido formulada uma Constituicao formal, o que so ocorre em 1967, a ditadura ja chamava para si a legitimidade do poder pela propria excepcionalidade formal e material, sustentada por uma pretensa necessidade de "restauracao da ordem interna e do prestigio internacional da nossa Patria" (BRASIL, 1964), que, de forma continua, se institucionalizava por meio do direito. A justificativa, marcada por argumentos ad terrorem, revitalizava--como soi acontecer em ditaduras--a pretensao de ordenacao social coordenada "por cima" e por via da forca. Os militares tomavam para si, assim, nao apenas a tarefa de, segundo eles, "drenar o bolsao comunista, cuja purulencia ja se havia infiltrado nao so na cupula do governo como nas suas dependencias administrativas" (BRASIL, 1964), mas se colocavam como os agentes que supostamente reconduziriam o pais a democracia, a normalidade institucional.

O regime possuia, com o Ato Institucional, seu estatuto juridico e, no conceito paradoxal de "revolucao" e "poder constituinte", sua onipotencia. Ao institucionalizar tais conceitos por meio do Ato Institucional, em que "a revolucao vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma" (BRASIL, 1964), o direito buscava se remodelar em sua propria linguagem, agora estrategicamente empregada para um fim autoritario sob o verniz democratico. Para tanto, a doutrina juridica teve um papel central. Em especial, o Ato Institucional foi engendrado a partir do pensamento de Francisco Campos, autor da Constituicao do Estado Novo, imposta por Getulio Vargas em 1937, e de Carlos Medeiros Silva, cujos argumentos juridicos permearam distintos momentos da ditadura (BARBOSA, 2012, pp. 23; 51; GASPARI, 2002, p. 152).

O discurso de fundamentacao da ditadura nao consistia, portanto, somente nas palavras de ordem dos militares, mas havia um movimento de justificacao academica do golpe. Os juristas da ditadura tiveram o importante papel de construcao teorica e politica da legimidade do regime. Sao exemplos a obra O Estado Nacional (CAMPOS, 2001), de Francisco Campos, em que se construiram as bases ideologicas da politica do Estado Novo, agora revitalizadas no contexto da ditadura de 1964; no esforco teorico de legitimacao da nova ordem politica que Carlos Medeiros Silva empreende nos textos Observacoes sobre o Ato Institucional e Seis Meses de Aplicacao do Ato Institucional (SILVA, 1964a); e, como se estudara mais a fundo neste trabalho, nos Imperativos da Revolucao de Marco (REALE, 1965), de Miguel Reale.

Imperativos da Revolucao de Marco e uma obra publicada em 1965, na qual estao reunidos alguns textos e entrevistas de Miguel Reale acerca da ideologia do golpe, alem de uma descricao do contexto fatico da sociedade brasileira antes (com o intuito de expor as causas do golpe) e depois da intervencao militar. Curiosamente, contudo, esta obra e muito da producao academica de Miguel Reale ligada a ditadura tem sido negligenciadas pela historiografia nacional e pelos pesquisadores de nossa ditadura de 1964. Embora haja uma interessante producao nacional sobre sua conexao com o integralismo (BERTONHA, 2013; CARVALHO, 2013), Miguel Reale e normalmente apresentado, sobretudo nos cursos de direito, apenas como um dos mais influentes juristas nacionais, autor da denominada "Teoria Tridimensional do Direito" e um pesquisador de relevo no ambito da filosofia do direito. Seu pensamento, todavia, muitas vezes e apresentado desconectado desse passado, embora ele seja estruturalmente impactante em suas formulacoes mais abstratas. (1) A propria "Teoria Tridimensional do Direito", tao difundida especialmente em estudos propedeuticos do direito, talvez possa adquirir novos contornos se este passado vier a tona, na medida em que especialmente a dimensao axiologica ligada a cultura e sua conexao com a normatividade ja se revelavam constantes no discurso justificador da ditadura, ainda que em escritos politicos do autor.

Em um contexto em que a doutrina juridica se fez fortemente presente para apresentar uma argumentacao justificadora da ditadura, e preciso aprofundar as conexoes de sentido e mostrar como a historia reconfigura a propria interpretacao de conceitos e teorias tao difundidas. Miguel Reale, como um importante expoente desse movimento, precisa, portanto, ser compreendido em seus varios tempos. Este artigo preenche esta lacuna ao examinar, diacronicamente, suas obras em suas respectivas temporalidades, especialmente seus Imperativos da Revolucao de Marco. Para tanto, o que aqui se buscara e analisar criticamente o ideario politico desenvolvido por Reale e seus reflexos nesse processo argumentativo legitimador da ditadura. Ao assim fazer, o proposito e tambem contrariar o tipico estudo de sua obra, em que a negligencia sobre seu sentido mais profundo se faz constancia. Afinal, seus textos sao por diversas vezes reproduzidos como argumentos de autoridade, sem qualquer contextualizacao maior senao algum comentario acerca de ter sido o autor da Teoria Tridimensional do Direito ou o uso de epitetos de pouca utilidade como "o saudoso jurista".

Mais particularmente, este artigo pretende investigar o significado dos Imperativos da Revolucao de Marco na fundamentacao e na formulacao do projeto politico do regime militar. Porem, no intuito de fazer jus a uma adequada compreensao de sua temporalidade, os Imperativos serao confrontados com escritos politicos de Miguel Reale de periodos anteriores (da Era Vargas) e posteriores (da segunda metade da ditadura), a fim de que se permita concluir em que medida houve continuidade no discurso politico que Reale buscou aplicar a ditadura de 1964-1985, de maneira a evidenciar as transformacoes e permanencias do pensamento de Reale no desenrolar desses acontecimentos politicos, sem perder de vista a literatura ja disponivel a respeito (RAMOS, 2008; CALDEIRA NETO, 2011; BERTONHA, 2013; CODATO, 2013). Ao final, espera-se que Miguel Reale, ao lado de seu impactante pensamento no ambito da filosofia do direito e, especialmente, na construcao da tao aclamada "Teoria Tridimensional do Direito", seja tambem lembrado como...

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