The Human Rights between Police and Politics/Os Direitos Humanos entre Policia e Politica.

AutorDeluchey, Jean Francois Y.

Introducao: primeiros impasses

O presente trabalho originou-se na identificacao de alguns impasses atuais dos direitos humanos no Brasil, observados em dois campos distintos: o da universalidade concreta dos direitos humanos, e o da terceirizacao das politicas publicas de direitos humanos no Brasil. A partir desses dois campos, alguns problemas precisam ser equacionados a partir de uma analise critica do consenso referente a normatividade dos direitos humanos nas democracias "ocidentais": esta mesma normatividade da qual o filosofo esloveno Slavoj Zizek diz que e "a forma da aparencia de seu exato oposto" (ZIZEK, 2013: 169, grifo do autor).

O primeiro campo de observacao que nos instigou esta reflexao refere-se a analise da universalidade concreta dos direitos humanos: com quase 70 anos de Declaracao Universal dos Direitos Humanos da ONU, muitos direitos associados ao espectro das liberdades publicas puderam ser consolidados no Ocidente e militam para o reconhecimento do valor do liberalismo na consecucao de varios direitos individuais e coletivos (especialmente entre os reconhecidos como "de primeira geracao"). Para Ellen Meiksins Wood, que comenta a transicao da ordem feudal para a ordem liberal capitalista:

Evidentemente, a dissolucao de identidades normativas tradicionais e de desigualdades juridicas representou um avanco para esses individuos "livres e iguais"; e a aquisicao da cidadania conferiu a eles novos poderes, direitos e privilegios" (WOOD, 2003: 182).

Por outro lado, continua Wood,

Mas nao se pode medir seus ganhos e suas perdas sem lembrar que o pressuposto historico de sua cidadania foi a desvalorizacao da esfera politica, a nova relacao entre "economico" e "politico" que reduziu a importancia da cidadania e transferiu alguns de seus poderes exclusivos para o dominio totalmente economico da propriedade privada e do mercado, em que a vantagem puramente economica toma o lugar do privilegio e do monopolio juridico (WOOD, 2003: 182183. Grifos da autora).

Assim, observamos que os avancos associados ao liberalismo escondem serios dissensos em relacao ao agendamento das reformas necessarias ao equacionamento das diferencas sociais que, muitas vezes, reduzem os direitos ditos universais a meras figuras retoricas, a abstracoes inalcancaveis aos individuos. Os direitos humanos, mesmo nos paises nos quais, como o Brasil, estes foram integrados a ordem constitucional, penam em sair da abstracao e serem efetivamente "garantidos", o que provoca uma ansia para a judicializacao desses direitos, demonstrando desta forma a dificuldade de alcancar uma universalidade (que iria variar de caso a caso no espaco judiciario). Neste aspecto, seguimos os passos de grandes teoricos, desde Hegel ou Marx, Zizek ou Ranciere, os quais conseguem nos guiar no equacionamento da universalidade liberal e de suas aparentes contradicoes:

Nas condicoes sociais especificas da troca de mercadorias e da economia de mercado global, a "abstracao" torna-se uma caracteristica direta da vida social atual, a forma em que individuos concretos se comportam e se relacionam com seus destinos e com seu ambiente social. A este respeito, Marx compartilha a ideia de Hegel, segundo a qual a universalidade surge "por si mesma" somente quando os individuos nao mais identificam completamente o amago de seu ser com a sua situacao particular; somente na medida em que se experimentam como "deslocados" para sempre dela. A existencia concreta da universalidade e, desta maneira, o individuo sem um lugar adequado no edificio social. Portanto, o modo de aparicao da universalidade, sua entrada na existencia real, e um ato extremamente violento de romper o equilibrio organico anterior. (ZIZEK, 2010: 27)

Em vez de serem perturbadores da ordem dominante e "romper o equilibrio organico anterior", e em vez de desafiar constantemente a atual ordenacao dos corpos e dos modos de vida, existe o risco de relativizar os direitos humanos para reduzi-los a uma dimensao do social afastado do politico. O mundo social acaba sendo apresentado como esvaziado de conteudo politico e, logo, aparece enquanto naturalidade. Esta reducao do politico em uma dimensao separada do social tem consequencias sobre o equacionamento dos direitos humanos na ordem capitalista, os quais penam a superar os direitos humanos ditos "de primeira geracao", particularmente os que os Franceses chamam de "libertes publiques": liberdade de ir e vir, liberdade de dispor de seu corpo, direito a vida privada, direito a seguranca (juridica, surete, incluido o direito de nao preso arbitrariamente), liberdade de opiniao, liberdade de expressao, liberdade de reuniao, liberdade de associacao, liberdade religiosa e liberdade de instrucao (1). Esta dificuldade de superacao das liberdades publicas deveria estar, na nossa avaliacao, no cerne da problematizacao critica dos direitos humanos na contemporaneidade, e deveria nos alertar sobre a ansia dos liberais em inventar a cada decada uma nova "geracao" de direitos a serem garantidos juridicamente (reforcando a ideia que existe um movimento natural da sociedade capitalista em direcao do progresso social).

O nosso segundo campo de observacao esta relacionado com as politicas publicas de implementacao dos direitos desde a redemocratizacao do Brasil nos anos 1980, as quais imprimiram a defesa dos direitos humanos um movimento contraditorio. De um lado, os direitos humanos se firmaram como politica transversal da acao publica no Estado federal e nos estados federados brasileiros (Constitucionalizacao em 1988, primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos em 1996, criacao da Secretaria de Direitos Humanos da Presidencia da Republica em 1997, etc.). De outro lado, todas as politicas publicas diretamente relacionadas com a tematica dos direitos humanos foram paulatinamente terceirizadas, demonstrando um claro desengajamento e ate uma desresponsabilizacao por parte do estado brasileiro (2). E o que tentei mostrar em um trabalho recente, onde pude observar que nos anos 1990 e no inicio dos anos 2000, assistimos a externalizacao progressiva das politicas publicas de defesa dos direitos humanos, as quais passaram a ficar sob a gestao direta ou compartilhada das ONGs (3).

Ademais, por alem da participacao direta das ONGs na gestao governamental dos direitos humanos, outra inovacao importante dos anos 1990 foi a criacao de conselhos paritarios associando membros da sociedade civil organizada a gestao das principais politicas publicas como, por exemplo, nos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos e de Conselhos Estaduais de Defesa dos Direitos da Crianca e do Adolescente. Apresentada pelas ONGs e pelos governos como uma conquista politica da sociedade civil organizada, a fundacao destes Conselhos paritarios, esta associada, entre outros instrumentos, a tentativa "social-liberal" de retirar do Estado parte das responsabilidades ligadas as politicas sociais, apoiando-se em organizacoes da sociedade civil para gerenciar de maneira direta ou compartilhada essas areas consideradas de "propriedade nao estatal" (4).

No trabalho ja referenciado (DELUCHEY, 2012), estudamos de que forma a participacao das ONGs de defesa dos direitos humanos em Conselhos de gestao paritarios apenas constitui um marche de dupes (engano, ilusao) que reveste a forma da arena politica para melhor esvaziar a possibilidade de expressao do conflito politico-ideologico e assim reduzir substancialmente o poder de militancia e de mobilizacao popular que tais ONGs tradicionalmente representavam na sociedade brasileira (DELUCHEY, 2012: 85). Assim sendo, concluiamos, alem do progressivo retiro do Estado da area da defesa dos direitos humanos, tudo indicava que, nas arenas paritarias e por meio da gestao direta de programas publicos, os governantes ofereceram as ONGs um assento para que nao mais se levantassem politicamente, para que, finalmente, nao enfrentassem a razao governamental neoliberal.

Por estes motivos, e importante observar, teoricamente, de que forma poder-se-ia sair desses tres impasses no qual se encontra a defesa dos direitos humanos no Brasil: primeiro a dificil superacao das liberdades publicas, obstando o necessario equacionamento dos direitos humanos com o combate as desigualdades sociais, segundo o desengajamento politico da sociedade civil e do estado na defesa dos direitos humanos e terceiro a naturalizacao de uma universalidade sem conteudo concreto que confunde garantia juridica e garantia material dos direitos, e naturaliza a coexistencia entre a igualdade juridica e as desigualdades sociais no Brasil.

Para desenvolver esta reflexao, escolhemos partir do trabalho filosofico de Jacques Ranciere, e mais precisamente da oposicao conceitual entre a policia (polo da fixacao da ordem) e a politica (polo do movimento democratico igualitario). A nossa hipotese e que a distincao entre estes dois polos possam configurar uma chave de explicacao de grande riqueza heuristica para a superacao dos impasses acima apresentados.

Policia e Politica em Ranciere

A definicao do conceito "politica", nas ciencias sociais, e objeto de grande malentendido entre os cientistas sociais (inclusive e quica particularmente nas ciencias sociais aplicadas como o direito ou a economia), apesar da carencia de consenso academico, esta definicao pouco aparece como objeto de controversia intelectual. Alias, tanto no senso comum como nos discursos academicos, a politica concerne elementos tao distintos quanto as politicas publicas, os processos eleitorais, as manifestacoes populares ou as principais diretrizes em uma gestao empresarial. Entre esses elementos, defendemos que apenas um (as manifestacoes populares) se refere de fato a politica; os outros concernem a ordem policial. Nisto, seguimos os passos do filosofo frances Jacques Ranciere para quem "Se tudo e politico, nada o e. [...] Para que uma coisa seja politica, e preciso que suscite o encontro entre a logica policial e a logica igualitaria, a qual nunca esta...

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