The historical and cultural experience of class formation among Parana telephone workers/ A experiencia historicocultural de constituicao de classe entre os trabalhadores telefonicos do Parana.

Autorde Almeida, Ivana Cristina Lima

Consideracoes iniciais

Meu enleio e que um tapete e feito de tantos fios que nao posso me resignar a seguir um fio so; meu enredamento vem de que uma historia e feita de muitas historias. (Clarice Lispector)

Nao e possivel mergulhar na trama da experiencia historica de constituicao da classe dos trabalhadores telefonicos do Parana no inicio da segunda metade do seculo XX, sem sentir-se enredado em uma teia de fios politicos, economicos, sociais, culturais e ideologicos. Definitivamente nao se trata de uma epoca qualquer no passado. Trata-se de um tempo recentemente vivido por muitos de seus personagens, por intermedio do qual o tempo de vida intimo confunde-se (e entrelaca-se) com a grande historia dos acontecimentos gerais.

O setor de telecomunicacoes, por sua natureza e especificidade, tem sido um territorio temido e ate evitado pelos que nele nao trabalham. Tanto em seus aspectos tecnico-organizacionais quanto em seus aspectos politico-institucionais, o processo de "comunicacao a distancia" por vias eletromagneticas (telegrafo, telefone, radio, TV e outras) passou a desempenhar, ao longo de sua trajetoria, um papel decisivo no tecido socioeconomico dos paises mais e menos industrializados.

No Brasil, as telecomunicacoes foram incorporadas a sociedade na segunda metade do seculo XIX, quando o governo imperial reconheceu o servico telegrafico como de grande interesse publico, sobretudo quanto ao aspecto da seguranca nacional, reservando ao poder central a competencia de regulamentacao e a administracao publica a exploracao direta do servico (ALMEIDA, 2004).

De certa forma, a organizacao das telecomunicacoes nessa epoca fazia parte de um padrao mais geral de exploracao da infraestrutura dos fabricantes norte-americanos e europeus. Estes, via de regra, estabeleciam filiais de servicos em paises como o Brasil para garantir apenas os troncos mais rentaveis, nao se propondo a estabelecer uma rede de comunicacao que integrasse os respectivos espacos nacionais.

Essa situacao permaneceu inalterada mesmo apos a instituicao do regime republicano no pais. Na verdade, seguindo o propalado "espirito de descentralizacao" da Carta Constitucional de 1891, cada estado federativo passou a ter direito a propria politica para o setor, e varios deles (inclusive o Parana) reproduziram essa descentralizacao aos seus municipios. Resultado: ate o final dos anos de 1920, quando surgiu a tecnologia do radio anunciando a libertacao do fio, as telecomunicacoes brasileiras estiveram fatiadas entre as empresas privadas nacionais e estrangeiras e o Estado.

Embora a Uniao viesse a retomar, durante o Estado Novo (1937-1945), a competencia para regular o setor e instituir os servicos de telegrafos como sua exclusividade, tal reforma politica nao se aplicou aos servicos de telefonia, ainda encaminhados por um oligopolio formado por seis empresas estrangeiras, duas das quais exerciam tambem o controle da venda de equipamentos de telecomunicacoes no pais (ALMEIDA, 2004).

Esse modelo solidamente privado sofreria uma nova orientacao constitucional em 1946, pelo menos em relacao aos servicos de telegrafos, radiocomunicacao e radiodifusao sobre os quais a Uniao consagrou-se como unica a regular e explorar diretamente, ou mediante concessao ou autorizacao a outros. Quanto a telefonia por fio, a responsabilidade federal restringiu-se as areas interestaduais e internacionais, permitindo as unidades da federacao que formulassem a politica telefonica em ambito estadual.

Tais diretrizes vigoraram ate a decada de 1960, periodo em que a politica de telecomunicacoes tornou-se objeto de forte mudanca juridica e institucional, ensejada por fatores quantitativos--elevacao da capacidade de atendimento e cobertura--e qualitativos--melhoria no sistema de ligacoes e tarifas--imprescindiveis ao atendimento das comunicacoes nacionais, internacionais e aos fins militares. Esse processo culminou com a estruturacao de um monopolio publico vigente ate o final dos anos de 1990, quando outra vez alteracoes governamentais (reprivatizacao), acompanhadas previa e posteriormente de novos avancos tecnologicos (introducao dos sistemas digitais em substituicao aos sistemas analogicos), voltaram a "revolucionar" O setor.

Mas se, a essa altura, os fatos aqui expostos sao historicamente importantes para o entendimento do contexto que tem envolvido, desde suas origens, as telecomunicacoes brasileiras e, em particular, paranaenses, ha algo mais a ser explicado nessas transformacoes do que capitais, fatores produtivos, leis e mercados. Ainda falta explicar, por exemplo, como, nessa teia de fios socioeconomicos e politico-institucionais, alguns homens e mulheres profissionalmente acoplados a essa esfera--como atores de seus dramas e observadores de suas epocas--viram e articularam os seus interesses coletivos.

Em outras palavras, falta explicar como, em um contexto regional proprio, os empregados daquelas companhias foram revelando necessidades, reivindicacoes e anseios e (trans)formando-se, dai em diante, em forca associativa e movimento sindical.

Foi em busca desse processo que o estudo de caso desenvolvido (1) se enveredou no conceito de experiencia historica de Edward Palmer Thompson (1924-1993) com o objetivo de apreender, no final da decada de 1950, a dinamica da relacao entre a dimensao objetiva das mudancas ocorridas e os modos pelos quais os trabalhadores absorveram, (re) elaboraram e vivenciaram culturalmente essa experiencia conflituosa, traduzindo-a em acoes politicas de e para a classe.

Na escolha desse caminho, o dialogo com as historias e memorias desses sujeitos apoiou-se na leitura de relatorios e atas de assembleias sindicais do periodo 1958-1961, nas publicacoes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) da decada de 1950, em boletins do Dieese de 1959-1961, em documentos oficiais do Ministerio do Trabalho e na aplicacao de entrevistas entre os anos de 2003 e 2004 a tres trabalhadores--identificados como T1, T2 e T3 -, que participaram da organizacao do Sinttel/PR desde as suas origens.

Dentro das dimensoes cabiveis neste artigo, a intencao e discutir, a partir da especificidade do setor de telecomunicacoes brasileiro daquele momento, o processo historico de constituicao dos interesses coletivos dos trabalhadores telefonicos do Parana entre 1958 e 1959. Nesta perspectiva, Thompson se torna um interlocutor privilegiado.

  1. Thompson e a experiencia historica como constituinte de classe

    Entre as ultimas decadas do seculo XVIII e as primeiras decadas do seculo XIX, mais precisamente entre 1780 e 1832, "os trabalhadores ingleses em sua maioria vieram a sentir uma identidade de interesses entre si, e contra seus dirigentes e empregadores" [grifo meu]. (THOMPSON, 1997, p.12). Assim escrevia em agosto de 1963 o historiador ingles Edward Palmer Thompson no Prefacio de sua obra The making of the english working class, na traducao brasileira, A formacao da classe operaria inglesa" (2).

    A afirmativa de Thompson (1997), decorrente de seus estudos a respeito da classe operaria inglesa como agente historico principal de sua propria formacao, abriu na decada de 1960 novas perspectivas teoricas e metodologicas para o entendimento da atuacao dos trabalhadores no processo de constituicao de sua classe. Quando se fala em nova perspectiva teorica, pretende-se dizer com isso que a proposicao thompsoniana diverge, dentro do marxismo ao qual se filia, das abordagens estruturalistas ortodoxas (como a de Louis Althusser). Naquela decada, a leitura de Louis Althusser (1918-1990) da obra de Marx se difundiu na historiografia britanica, fazendo crescer a aceitacao de que a historia, conforme aponta o proprio Althusser (1978, p. 70-71--grifos no original),

    e um imenso sistema natural-humano em movimento e o motor da historia e a luta de classes. [...] A historia e certamente um processo sem Sujeito nem Fim(ns), cujas circunstancias dadas, nas quais 'os homens' agem como sujeitos sob a determinacao de relacoes sociais, sao o produto da luta de classes. Portanto, a historia nao tem, no sentido filosofico do termo, um Sujeito, mas um motor: a luta de classes. Essa perspectiva foi considerada estruturalista ortodoxa na medida em que torna a historia dependente de contradicoes estruturais e exclui os sujeitos do processo de mudanca social. Alem disso, a definicao de classe esta relacionada aos meios de producao e a posicao que o individuo assume dentro da estrutura economica. Portanto, compreende a existencia da classe e da consciencia de classe como superestrutura condicionada inteiramente a base material da sociedade (3).

    E nesse ponto que a critica de Thompson (1997, p. 9--grifos meus) irrompe, principalmente no seio do marxismo althusseriano, para advogar que "a classe operaria nao surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu proprio fazer-se". E argumenta: "Nao vejo a classe como uma 'estrutura', nem mesmo como uma 'categoria', mas como algo que ocorre efetivamente (e cuja ocorrencia pode ser demonstrada) nas relacoes humanas" (4).

    A partir das duas citacoes acima, somadas a que abre esta discussao, Thompson (1997) revela a sua intencao de desconstruir a ideia de os trabalhadores (ingleses) serem vistos como uma "entidade" receptora das determinacoes de outra classe que os domina e que os considera inferiores. Pode-se acrescer tambem, nessa reflexao, a critica a necessidade de a classe operaria ser "guiada" para adquirir consciencia de seu lugar subalterno na formacao social e de condutora da luta de classes. Em outras palavras, a formacao da consciencia dee para a classe determinada pela estrutura de producao da sociedade e pelo antagonismo de classe.

    E como Thompson rompe teorica e metodologicamente com essa concepcao? Sem sair do solo marxiano, Thompson (1997, p. 9) passa a estudar a classe (operaria inglesa) como um "fenomeno historico [grifo original], que unifica uma serie de acontecimentos dispares e aparentemente desconectados, tanto...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT