The Future of the Inter-American Human Rights System: The IACHR and the Democratic Breaks/O futuro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: a atuacao da CIDH diante dos processos de ruptura democratica.

AutorReis, Rossana Rocha
CargoTexto en portugues - Ensayo
  1. A definicao do problema

    As democracias representativas, sejam elas presidenciais ou parlamentaristas, via de regra contem previsoes para a destituicao do chefe do Executivo, desde que observadas as normas e procedimentos previstos no ordenamento juridico domestico. Desde a chamada terceira onda de redemocratizacao, a America Latina ja assistiu a mais de um presidente ser incapaz de concluir o seu mandato. Foi o caso de Carlos Andre Perez, na Venezuela em 1993, e Fernando Collor no Brasil em 1992. Nos dois casos os processos de impeachment se processaram sem que organizacoes internacionais fossem mobilizadas. A bem da verdade, assistiu-se tambem a tentativas de por fim a governos eleitos atraves do uso da forca, no melhor estilo dos golpes que caracterizaram os anos 1960 e 1970, como foi o caso da Venezuela em 2002; e a autogolpes, como o de Fujimori, no Peru em 1992 (Valenzuela, 2004). Nesses casos, no entanto, observamos diferentes paises e organizacoes internacionais, com mais ou menos enfase, condenarem celeremente as tentativas de quebra de regime.

    Nos ultimos anos, no entanto, a regiao vem se defrontando com um novo tipo de ruptura democratica, que desafia as classificacoes existentes. Tratam-se de situacoes onde um presidente eleito e destituido em processos conduzidos por instituicoes politicas que deveriam ser, elas proprias, promotoras do Estado democratico de direito, tais como o Poder Judiciario, o Poder Legislativo e o Ministerio Publico. A ruptura pode ou nao vir acompanhada de violacoes massivas de outros direitos humanos, pode ou nao contar com a participacao ativa das Forcas Armadas, pode ou nao vir acompanhada de mobilizacao social. O que torna a legitimidade do processo duvidosa e a manipulacao das leis por individuos ou grupos bem instalados no aparelho do Estado que se articulam para derrubar um governo escolhido democraticamente.

    Nas tres situacoes que discutiremos aqui--a derrubada de Manuel Zelaya em 2009, em Honduras, de Fernando Lugo no Paraguai em 2012, e de Dilma Rousseff no Brasil em 2016, os processos politicos que levaram ao fim governos eleitos pelo povo foram marcados por controversias e acusacoes de desrespeito ao devido processo legal, ao amplo direito de defesa, entre outras violacoes de direitos consagrados na normativa interamericana de protecao aos direitos humanos. Sao essas controversias e acusacoes que no momento requerem a atencao da Comissao Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Nesses tres casos a Comissao Interamericana foi ou esta sendo instada a se pronunciar nao apenas sobre a adequacao dos processos ao ordenamento politico/juridico domestico, como tambem sobre a adequacao dos processos e das proprias leis domesticas a normativa interamericana a qual todos esses Estados estao comprometidos.

    A Comissao Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e um orgao autonomo da Organizacao dos Estados Americanos (OEA), e juntamente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, compoe a estrutura do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). A Comissao tem como objetivo "promover a observancia e a Defesa dos direitos humanos nas Americas" e para isso dispoe de uma serie de mecanismos de atuacao (1). Como veremos na proxima sessao, historicamente a CIDH se associou a defesa dos direitos humanos contra regimes autoritarios, sendo importante ator na condenacao internacional das ditaduras e no fortalecimento da associacao entre democracia e respeito aos direitos humanos (Serrano, 2010; Sikkink e Walling, 2011; Engstrom e Hurrell, 2010).

    A redemocratizacao das Americas, contudo, nao facilitou a atuacao da Comissao, que ainda se recupera do ultimo ataque de paises-membros do Sistema, que questionam suas funcoes e seus metodos. Para os criticos, a CIDH seria muito vulneravel a interesses politicos, estaria extrapolando suas funcoes e, ainda, colidindo com a legitimidade democratica (2). Falaremos mais sobre a crise da CIDH na proxima sessao, mas gostariamos de registrar nesse ponto que as demandas geradas em funcao dos acontecimentos em Honduras, no Paraguai e no Brasil surgem em uma conjuntura particularmente dificil na historia da Comissao, que se encontra fragilizada do ponto de vista politico e financeiro. Apesar disso, consideramos que, em funcao do seu historico e da sua autonomia, a Comissao esta melhor posicionada do que qualquer outro orgao regional para fazer a critica desses acontecimentos e para promover uma conscientizacao sobre o significado desses processos de ruptura democratica para o respeito aos direitos humanos, e para o futuro da democracia nas Americas.

    Os orgaos politicos da OEA, em principio responsaveis por zelar pelo respeito e a promocao da democracia no Continente estao presos a duas circunstancias que dificultam um posicionamento mais enfatico: primeiro, a normativa que regula a chamada "clausula democratica" da OEA nao preve de forma explicita como lidar com o que acontecendo, ja que, nos tres casos, mas especialmente no Paraguai e no Brasil houve uma preocupacao significativa com a formalidade das regras constitucionais do processo. Segundo, a natureza intergovernamental da Assembleia Geral da OEA torna a obtencao de um consenso entre suas partes muito mais improvavel do que na CIDH, como podemos observar nessas e em outras situacoes envolvendo a utilizacao da clausula democratica (3).

    A CIDH encontra-se nesse momento diante da possibilidade de reafirmar sua credibilidade, fazendo jus a seu historico na defesa dos direitos humanos e mostrando sua importancia em situacoes de fragilizacao de regimes democraticos, ainda que esta situacao seja muito distinta daquela enfrentada nos anos 1960 e 1970. Dito isto, e preciso estar atento tambem as pressoes e dificuldades que a Comissao vai enfrentar, sobretudo quando sua interpretacao dos fatos destoa muito da visao majoritaria dentro dos orgaos politicos da OEA, ou daquela partilhada pelos membros mais poderosos dentro do Continente.

    Para entender melhor os limites e as possibilidades da atuacao da CIDH em relacao as situacoes de ruptura democratica, na proxima sessao faremos uma breve incursao pela historia da CIDH, de modo a compreender a relacao que se estabeleceu entre o trabalho da Comissao e a defesa da democracia. Trataremos tambem da normativa interamericana com respeito a democracia, e de sua relacao com o tema dos direitos humanos. Em seguida, reconstruiremos em linhas gerais os processos de destituicao dos presidentes de Honduras, Paraguai e Brasil. Evidentemente nao e possivel, no ambito desse artigo, tratar em profundidade as crises politicas que levaram a derrubada de tres presidentes em paises bastante distintos entre si, e para as quais existe uma bibliografia propria (4). Estamos cientes das profundas diferencas entre as tres situacoes, no entanto, sustentamos que uma avaliacao conjunta dos casos, com enfase nos pontos em comum, nos permite esbocar um mesmo tipo de ruptura democratica, distinto daqueles que caracterizaram periodos anteriores da historia das Americas.

    Finalmente, concluiremos com uma analise dos posicionamentos da CIDH diante dessas situacoes, buscando compreender como ela esta reagindo aos novos desafios, e avaliando seu posicionamento diante de seu compromisso normativo com os direitos humanos e seu historico de defesa da democracia.

  2. Antecedentes historicos e a normativa interamericana.

    A Organizacao dos Estados Americanos (OEA) foi pioneira no reconhecimento internacional dos direitos humanos, consubstanciado na Declaracao Interamericana de Direitos Humanos, que data de 1948. Contudo, a maioria dos paises do Continente foi, durante muitos anos, relutante em contribuir para a criacao de mecanismos de garantia e promocao dos diretos humanos.

    Do ponto de vista dos paises latino-americanos, a criacao de um sistema de supervisao do comportamento dos Estados em relacao a violacoes dos direitos humanos era percebida como uma porta de entrada para o intervencionismo norte-americano. Para esses paises, as principais finalidades da OEA deveriam ser a consagracao do principio de nao-intervencao e o fomento da cooperacao economica com os Estados Unidos (Dykmann, 2008).

    Os Estados Unidos, por sua vez, viam a formacao de um organismo regional de cooperacao como parte de um processo mais amplo de consolidacao de sua hegemonia sobre o continente, dentro da logica da Guerra Fria. Tambem para eles um sistema robusto de garantia e protecao aos direitos humanos era considerado inconveniente, entre outras razoes porque o pais praticava uma politica oficial de segregacao racial (Forsythe, 1991).

    Assim sendo, muitos anos se passaram antes que fossem criadas condicoes para construir mecanismos de protecao e garantia dos direitos humanos no Continente. Em 1959 a Assembleia Geral da OEA aprova a criacao da Comissao Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que se reune pela primeira vez em 1960. Em 1969 e aprovada a Convencao Interamericana de Direitos Humano, que passa a vigorar em 1978. Em 1979 o atual desenho do SIDH se completa com a instalacao da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

    Nos anos que seguiram a sua criacao, a Comissao foi, aos poucos, encontrando maneiras de exercer suas funcoes com os mecanismos que lhe foram outorgados, e mesmo diante de limitacoes institucionais e orcamentarias, ela foi capaz de construir uma reputacao em termos da defesa dos direitos humanos na America que a tornou referencia nao apenas nas Americas, mas em todo mundo (Boti, 2016; Sikkink, 2011; Mendez e Cone, 2013).

    Evidentemente, esse percurso nao foi tranquilo. Duvidas sobre a isonomia da Comissao, especialmente em um continente marcado pela desigualdade da distribuicao de poder e riqueza entre os paises, sempre estiveram presentes. Desde os primeiros anos de seu funcionamento, o foco da Comissao sobre o regime socialista cubano, em sintonia com os interesses de politica externa estadunidense, alimenta as criticas ao seu trabalho na America Latina. Contudo, aos poucos a...

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