The Functionings Approach: a decolonial ecofeminist point of view/ A perspectiva dos funcionamentos: um olhar ecofeminista decolonial.

AutorDias, Maria Clara

Ha seculos a tradicao filosofica tem se dedicado a caracterizar o que somos: eu, voces e os individuos que de alguma forma julgamos semelhantes a nos. A tradicao filosofica acredita que eu, voces e eles possuimos algo que nos caracteriza e, segundo a tradicao, nos distingui e identifica enquanto pessoas. Acredita, por assim dizer, em uma natureza humana, mais ou menos fixa e visivelmente delimitada. Esta forma de interpretar o que somos e, mais particularmente, de caracterizar os que devemos assumir como objeto de nossa consideracao moral, como o foco de nossas principais politicas publicas e, finalmente, como aqueles aos quais se reporta o Direito, deixa ao relento um grande numero de individuos, tradicionalmente, aqueles que de alguma forma desviam de um modelo normativo pre-estabelecido por estruturas de poder socioculturais, biomedicas e juridicas hegemonicas.

A dificuldade de ajustar a um padrao hegemonico, o comportamento de certos grupos etnicos ou individuos sociocultural, economica e fisicamente diversos, impoem sobre os mesmos o estigma da irracionalidade ou insanidade mental, debilitando a expressao de suas demandas na sociedade e inviabilizando seu processo de constituicao de uma identidade positiva, minimamente satisfatoria. No cenario de debate publico os principais atores tem sido sempre os detentores das regras do discurso oficial: individuos escolarizados, com poder economico, brancos e, principalmente, do sexo masculino.

O objetivo deste artigo sera apresentar os arcaboucos teoricos de uma perspectiva de justica mais inclusiva e mais compativel com os ideais de uma concepcao moral universalista. Para tal, pretendo, primeiramente, fornecer uma caracterizacao funcional do que somos. Defenderei que somos todos sistemas funcionais dinamicos, flexiveis, que se transformam e se moldam, numa tentativa de melhor se harmonizar com seu entorno e alcancar uma realizacao plena. Desta forma, pretendo romper com padroes que tem promovido a exclusao, perda de autoestima e sofrimento de muitos individuos que fogem a estrutura heteronormativa, racial, sociocultural e especista dominante. Em seguida pretendo apresentar a Perspectiva dos Funcionamentos (PdF), uma perspectiva de justica comprometida com o florescimento dos funcionamentos basicos de cada individuo, entendidos como sistemas funcionais complexos e diversos. Minha hipotese e a de que ao focarmos na realizacao dos funcionamentos basicos dos diversos sistemas funcionais existentes, (1) seremos capazes de ampliar nosso discurso acerca da justica, de forma a melhor resgatar sua pretensao de universalidade e (2) estaremos mais aptos a incorporar e a responder as demandas especificas de cada ser.

Individuos entendidos como sistemas funcionais (1)

A caracterizacao de individuos como sistemas funcionais e propria a uma forma de individuacao que pretende dissolver uma serie de impasses gerados a partir de uma concepcao dualista do que somos. O dualismo em sua versao tradicional, o dualismo ontologico, concebe os seres humanos como um composto de dois tipos de substancias: uma substancia pesante, uma mente, e uma substancia fisica, um corpo. Entendidos desta maneira, torna-se dificil justificar a consciencia subjetiva que temos de nossa propria unidade e nossa forma de atuar no mundo. Acredito, por exemplo, que as diversas partes que compoem o meu corpo se movimentam em uma certa direcao, porque eu acredito e desejo certas coisas. Acredito tambem que minhas pernas, meu sistema respiratorio, assim como minha memoria, minhas crencas e desejos, fazem parte de um todo integrado que me constitui enquanto um individuo. A resposta funcionalista (2) ao problema da interacao entre o mental e o fisico busca resgatar esta crenca bastante trivial de que somos um todo integrado.

De acordo com a concepcao funcionalista, a forma adequada de individuar uma entidade e por recurso a suas propriedades funcionais. Desta forma o funcionalismo resgata tambem a nossa conviccao de que alguns processos mentais podem ser realizados em estruturas com propriedades fisicas distintas. Eles sao multiplamente realizaveis. Ao identificar um evento mental por suas propriedades funcionais, estamos, assim, reconhecendo o carater necessario de um componente material, porem nao reduzindo o evento em questao as propriedades fisicas da estrutura material que o realiza.

A forma mais usual de exemplificar a concepcao funcional e atraves da construcao de modelos ou maquinas programadas para realizar um tipo de funcionamento especifico. Neste caso, as ilustracoes vao desde maquinas mais simples como as que nos oferecem refrigerantes, mediante a introducao de moedas de um determinado valor, ate as maquinas conexionistas de tipo PDP (Parallel Distribution Process) ou redes neurais. Parece evidente que a complexidade das funcoes que usualmente realizamos exige que sejamos exemplificados por modelos flexiveis e bastante complexos. Complexos talvez o suficiente para nao sermos, ainda, capazes de descreve-los. Neste sentido a proposta funcionalista parece vulneravel a uma objecao de fato, mas, se estivermos corretos, podera mostrar que, em principio, nada impede que esta seja a forma mais adequada de descrever o que somos.

Seres humanos, segundo uma descricao funcional, poderiam, assim, operar como um programa flexivel composto de varios modulos. No primeiro modulo estaria um scanner, responsavel pela recepcao dos inputs. A partir dai, podemos imaginar varios modulos entre os quais um modulo avaliador, responsavel pela selecao das informacoes que chegarao a etapa final, qual seja, a producao de um comportamento especifico.

Se esta descricao for, realmente, sustentavel, teremos entao que enfrentar suas consequencias. Ja de partida, vemos esmaecer a ideia de uma base fixa, imutavel, detentora do que imaginamos ser a nossa essencia propriamente humana. A pergunta acerca da identidade de cada individuo devera ser respondida por referencia a uma rede de processos que envolve a performance de distintas funcoes, algumas das quais usualmente descritas atraves de um vocabulario mentalista. A esta rede chamaremos de Self. O Self, assim entendido, nao e uma unidade transcendente que controla todo o sistema, nem uma parte especifica do mesmo. Ele e uma rede ou uma conjuncao de processos. Enquanto tal, ele esta projetado no mundo e em constante processo de transformacao. Seu campo informacional e composto de dados oriundos tanto dos limites internos, quanto externos ao proprio corpo. Dentro desta descricao, nossos limites tornam-se tambem flexiveis. Nosso Self ja nao pode ser identificado ao cerebro, nem delimitado pelos contornos do nosso corpo fisico/biologico.

Se quisermos, por exemplo, pensar a nossa atividade cognitiva segundo o modelo funcional da relacao inputs/outputs e estados mentais diversos, onde deveriamos estabelecer os limites do processo cognitivo? Segundo uma interpretacao funcional, a cognicao nao poderia ser identificada como uma etapa especifica do processo, um estado mental isolado, por exemplo, mas ela seria todo o processo. Neste caso, ela envolveria necessariamente uma complexa rede de inputs--internos e externos --e outputs. Os elementos que compoem o processo cognitivo fazem, assim, parte de uma estrutura dinamica, onde os papeis desempenhados estao em constante permuta. Registros deixados em livros, diarios, computadores e no nosso entorno ambiental ocupam um papel tao fundamental em nosso set informacional, quanto nossas sensacoes, tracos de memorias e as operacoes realizadas no nosso cerebro.

O papel desempenhado por objetos localizados fora dos limites do nosso corpo, ou ainda, por artefatos, no nosso processo cognitivo, talvez explique porque nosso raciocinio se ve debilitado quando perdemos nossa agenda ou as informacoes que guardamos em nossos computadores. Pode explicar tambem a falencia cognitiva de idosos que sao afastados do lugar, pessoas ou objetos que lhes eram familiares. Segundo esta visao, nosso processo cognitivo se estende, necessariamente, para alem do nosso cerebro e dos limites do nosso corpo, pois ele envolve, como parte constitutiva de seu mecanismo, os inputs que compoem o conteudo de nossos pensamentos e, o que em vocabulario kantiano chamariamos, a sintese dos mesmos atraves de conceitos. A linguagem e ela mesma um artefato que incorporamos a nossa estrutura cognitiva e que assume o papel de...

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