The French May 68: meanings and captures/O maio de 68 frances: sentidos e recuperacoes.

AutorMiguel, Marlon

Uma vez enganchada a linha de montagem, a carroceria comeca seu semicirculo, passando sucessivamente diante de cada posto de soldagem ou de outras operacoes complementares: limagem, polimento, martelagem. [...] E um movimento continuo, que parece lento: a primeira vista, a linha de montagem da quase uma ilusao de imobilidade, sendo necessario fixar o olhar em um carro determinado para ve-lo deslocar-se, deslizar progressivamente de um posto a outro. O carro nao para; sao os operarios que devem se deslocar para acompanha-lo durante a execucao do trabalho. Assim, cada um tem uma area bem definida para executar os gestos que lhe sao impostos, embora as fronteiras sejam invisiveis: logo que um carro nela entra, o operario desengata seu macarico, empunha seu ferro de soldar, agarra seu martelo ou sua lima e comeca a trabalhar. Algumas marteladas, alguns claroes, os pontos de solda estao feitos e ja o carro esta saindo dos tres ou quatro metros do posto. E o seguinte vai entrando na area de operacao. E o operario recomeca. As vezes, se ele trabalha depressa, sobram-lhe alguns segundos de descanso antes que chegue um novo carro: ele pode aproveita-los para respirar um pouco ou, ao contrario, intensificando seu esforco, ele "avanca na linha", de modo a acumular uma pequena vantagem, isto e, poe-se a trabalhar fora da area normal, ao mesmo tempo em que o operario do posto que o precede. Uma ou duas horas depois, quando tiver economizado o fabuloso capital de dois ou tres minutos de avanco, tera o tempo de fumar um cigarro--voluptuoso rentista de maos nos bolsos, que olha passar sua carrocaria ja soldada enquanto os outros trabalham. Felicidade efemera: o carro seguinte ja vem chegando; e preciso trabalhar de novo no seu posto normal; e a correria recomeca para ganhar um metro, dois metros e "avancar" na esperanca de fumar tranquilamente um cigarro (LINHART 1978, p. 13) (1)

Marcado pelas convulsoes do pos-maio de 68 ainda "inscrito em seus tracos", e como muitos de sua geracao, Robert Linhart abandona provisoriamente os corredores da Ecole Normale Superieure da rue d'Ulm, assim como a ocupacao de professor, inventa uma nova identidade e se "integra na fabrica", isto e, vai trabalhar na usina Citroen. Fala-se entao de etabli, do movimento do etablissement, termo de dificil traducao que invoca tanto o "estabelecido" ou eventualmente o "integrado", quanto a mesa, a bancada de trabalho do artesao ou do operario. Varios foram aqueles, estudantes e intelectuais, que tomaram a decisao de ir para a usina com a esperanca de, por um lado, se desfazer um pouco de seus ideais abstratos e, por outro, de alargar o horizonte dos operarios. Esperanca de um entrecruzamento de classes e de lutas, de uma nova solidariedade na militancia politica. Para os jornais e parte do meio intelectual, o movimento ganha repercussao, parece de uma novidade extraordinaria; para boa parte dos operarios, ele e apenas um devaneio juvenil, observado com certa desconfianca: "por que esses estudantes, tendo o privilegio de fazer outra coisa, escolheriam a vida penosa da usina?".

Em L'Etabli, Linhart descreve a vida de operario durante um ano na Citroen da porta de Choisy, no 13eme arrondissement de Paris, produzindo assim uma descricao minuciosa do fordismo e do cotidiano na linha de montagem. Sua inabilidade manual faz com que passe nos dois primeiros dias por diferentes funcoes: soldagem com estanho de diferentes pedacos de aco que formarao a primeira "carcaca" do veiculo; em seguida instalacao de borracha nos vidros; enfim confeccao de assentos. Mais tarde, apos alguns dias de licenca, sera transferido ainda para outro posto: verificacao de pecas (defeituosas ou nao, bem pintadas ou nao), selecao e triagem (capos em um carrinho, paralama direito em outro, esquerdo em outro ainda...). Ao longo do ano passado na usina, passara ainda por diversos outros postos. Cada segmento possui sua organizacao e seus numeros proprios: pelo menos 148 carcacas a serem fabricadas por dia, um minimo de 320 vidros por dias--32 vidros por hora, pouco menos de 2 minutos por vidro--, um minimo de 75 assentos por dia--em uma pequena equipe de quatro pessoas, ha o suficiente para fabricar 300 assentos por dia para equipar 150 veiculos; para fazer um assento e preciso fazer 50 pontos no tecido, 3750 agulhadas por dia para conseguir realizar a producao minima. Obviamente, todas essas funcoes conhecem um estimulo "a diferenca" com bonificacoes microscopicas que buscam a ultrapassagem desses esses numeros "minimos" de producao diaria.

Gracas a coordenacao desses diferentes postos, a cada quatro minutos, um carro novo inteiro e fabricado. E como no esporte, ha um "antes" e um "depois" dos recordes que faz com os numeros minimos se modifiquem e aumentem constantemente. "Antes", 5 pessoas produziam 60 assentos por dia; "depois", a destreza e o esforco permitem produzir 75 assentos a 4. Em seguida, com um novo campeao despontando a 90 assentos por dia, em vez de ele poder aproveitar o "avanco" para fumar seu cigarro, os numeros "minimos" serao aumentados uma vez mais.

Para que essa maquina de fabricacao baseada em uma grande divisao do trabalho funcione perfeitamente, e preciso em primeiro lugar uma coordenacao total de suas partes e uma execucao a mais perfeita, a mais precisa possivel, dos gestos de cada um. E esses gestos sao contabilizados, classificados, normalizados, repartidos. Alem disso, na busca incessante pela otimizacao do trabalho e do seu tempo, a "Organizacao do Trabalho" se vale de pequenos ardis corriqueiros como, por exemplo, avancar os relogios em dois minutos de modo a produzir um carro a mais a cada dois dias em um tempo "extra", em principio nao contabilizado; ou, ainda, redistribuir e especializar ainda mais as funcoes dos operarios. Tudo seguindo uma "racionalizacao do trabalho", uma eficacia contabilizavel. Os medicos da usina tambem tem ai o seu papel e respondem igualmente a um calculo de desempenho: eles recebem bonificacoes mais altas na medida em que dao menos licencas de trabalho, sua "performance" sendo avaliada pelo reenvio sistematico de doentes de volta a linha de montagem.

Essa racionalizacao do trabalho se prolonga na organizacao do tempo, do espaco e na reparticao das funcoes. Ha uma segmentacao total da usina. Os relogios marcam, contam, ditam. De 7h da manha ate 17h45--6h55, cada um se posiciona em seu respectivo posto na linha de montagem; 7h, inicio estrondoso do desenrolar das diversas linhas; 8h15, breve pausa; 12h, pausa do almoco; 12h45, retomada do trabalho. Do mesmo modo, ha reparticao das pequenas zonas de trabalho: alguns poucos metros definem uma zona x ou y na linha de montagem, ou um assento face a bancada de trabalho, correspondendo a um posto de trabalho especifico, uma funcao precisa (solda, costura, triagem de pecas). E ha tambem as diferentes funcoes e hierarquias: "operario especializado" (O.S.) ou "trabalhador manual" (M.) classificados em tres niveis diferentes e cuja distribuicao e feita nao segundo as capacidades de cada operario, mas em funcao de sua "raca": negros sao M.1., Arabes M.2 ou M.3; espanhois, portugueses e outros imigrantes europeus O.S.1, franceses O.S.2, eventualmente O.S.3, "segundo a cara do cliente". E em funcao de cada estrato da hierarquia, alguns centavos a mais sao ganhos por hora de trabalho.

As nacionalidades costumam ainda ser reagrupadas pela Citroen em blocos por empresa: em Choisy, por exemplo, Iugoslavos; em Javel, turcos; e assim por diante. Maneira mais simples de classifica-los, controla-los, espiona-los; de distribuir os interpretes. Combina-se o controle na usina e no lar, repartem-se novas funcoes para alem da especializacao, facilita-se a entrada de policias politicas: policiais espanhois e marroquinos, agentes portugueses da PIDE (Policia Internacional e de Defesa do Estado). Em Javel, descreve Linhart, chegam vilarejos inteiros de turcos, mantendo intactas suas hierarquizacoes feudais. Por fim, os "interpretes" tem um papel importante na organizacao e no controle da usina. A maior parte deles e constituida por universitarios burgueses estrangeiros que trabalham para a usina e fazem a ponte entre os operarios estrangeiros, que nao compreendem bem o frances, e a administracao--e ameacam deixar de fazer essa ponte em caso de greves ou atitudes que atrapalhem o funcionamento da usina. A intimidacao comeca sempre com os imigrantes, que constituem a maior parte da mao de obra: ameacas de demissao, de perda de alojamento concedido pela usina, de deportacao ao pais de origem ...

Se os eventos de maio de 68 instauraram uma ruptura significativa do tempo contavel e funcionalista, o retorno a ordem foi, por sua vez, violento. Na fabrica da Citroen, por exemplo, os patroes impoem a chamada "recuperacao". Os operarios sao obrigados a trabalhar 45 minutos suplementares, dos quais metade nao seria contabilizada no momento do pagamento dos salarios. A grande greve de 68 havia assim como que deixado os operarios em divida com os patroes e era preciso agora pagar. Essa "recuperacao" tera como consequencia uma nova greve em 1969, coracao do livro de Linhart, e que, apesar da breve duracao, conseguira reverter essa nova imposicao.

Como acontece com quase todo grande acontecimento historico, ha em torno do maio de 68 frances uma guerra discursiva, isto e uma luta pela sua narrativa. Se seguirmos a bela e conhecida leitura de Gilles Deleuze e Felix Guattari sobre o maio de 68, que apresenta uma definicao da nocao mesma de acontecimento, o que parece em primeiro lugar essencial e a existencia de uma bifurcacao no campo dos possiveis, de um desvio em relacao a cadeia causal habitual, enfim de uma abertura inedita. Com isso, os autores insistem na impossibilidade de se poder dar uma definicao total e de se construir uma narrativa definitiva do acontecimento. Segundo os autores, apesar de tudo o que pode haver de agitacao, gesticulacao, fala ou mesmo besteira, "o que conta e que foi um fenomeno de...

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