The facts and the declarations: reflexions on The State of Difuse Illegality/Os fatos e as declaracoes: reflexoes sobre o Estado de Ilegalidade Difusa.

AutorDe Giorgi, Raffaele

Introducao

Parte da America Latina viveu durante a segunda metade do seculo XX, a experiencia tragica das ditaduras e, posteriormente, entre as decadas de 1980 e 1990, testemunhou os movimentos constitucionais de restauracao de suas respectivas "democracias". Essa reconstrucao se realizou atraves de uma redirecao do constitucionalismo politico a reestruturacao dos requisitos juridicos e politicos da diferenciacao social, abrindo assim amplo espaco para o reconhecimento de direitos e para a construcao de grandes expectativas sobre o futuro dessas democracias.

A impossibilidade da politica e das novas constituicoes de conduzirem ao futuro esperado produziu frustracao institucional. A resposta foi aquilo que os "criticos" chamaram de "colonizacao" dos discursos e praticas judiciais orientados por teorias de legitimacao do direito como "mecanismo de transformacoes sociais". Esse constitucionalismo atravessou da politica para o direito, colocando-se como instrumento de transformacao da sociedade a ser operado atraves da jurisdicao. O protagonismo judicial ou o ativismo judicial justificou seu proprio surgimento no constitucionalismo latino americano como resposta aquilo que qualificou como ineficacia da acao politica.

Nesse contexto historico e que surge o conceito de "estado de coisas inconstitucional". Sua origem data do fim do seculo XX, se encontra na Sentencia de Unificacion SU-559/97 da Corte Constitucional Colombiana--na qual se discutiu a distribuicao especial de educadores, de recursos orcamentarios relativos a educacao, alem de especificos problemas previdenciarios--, e na decisao T-068/98--, na qual se discutiu questao previdenciaria. Essas decisoes nao veicularam declaracoes de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, mas qualificaram estados$de$coisas como violadores da constituicao (Valle, 2016, p. 340). Entre os principais motivos, indicou aqueles que constituiam "un determinado estado de cosas que contraviene los preceptos constitucionales", a violacao massiva de direitos fundamentais que nao poderia ser explicada por faltas nao atribuiveis, exclusivamente, a um so orgao ou agente estatal, mas apenas por uma deficiencia politica e institucional generalizada.

A Corte Constitucional Colombiana estabeleceu sua "doutrina do estado de coisas inconstitucional" no julgamento no qual se proferiu a SU-559, na qual concluiu que "a violacao dos direitos fundamentais (ali tratada) seria o resultado de falhas estruturais" e nao simplesmente "o produto de arbitrariedade cometidas por um funcionario do Estado" (Higuera, 2000, p. 969). Naquela decisao a CCC se outorgou novo dever, aquele "de colaborar de maneira harmonica com o restante dos orgaos do Estado para realizacao de seus fins; e tambem se outorgou o dever de comunicar as autoridades competentes um determinado estado de coisas violador da Constituicao Politica" (SU-559).

Apos pelo menos seis decisoes nas quais se utilizou do "novo" conceito, ja na primeira metade da decada de 2000, a Corte Colombiana (CCC) construiu a decisao (Sentencia T-025/04) que fixou definitivamente os requisitos para a declaracao de ECI, isto e, circunstancias que possibilitariam a qualificacao juridica de um estado de coisas como inconstitucional, que seriam: i) multiplicidade de direitos fundamentais afetados, ii) vulnerabilidade dos afetados, iii) urgencia da prestacao estatal, iv) persistencia temporal da violacao a direitos fundamentais enfrentada no caso, v) omissao das autoridades competentes, e, por fim, vi) a multiplicidade de agentes e orgaos publicos envolvidos.

Os requisitos fixados para a aplicacao daquele conceito, sob a otica da tradicao constitucional e sua doutrina do controle de constitucionalidade, chamam extrema atencao. Primeiro, pelo reconhecimento de que nao se trata de declaracao de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, como lhe e proprio. Segundo, pelo reconhecimento de uma resistencia temporal do problema tratado; e, finalmente, em terceiro lugar, por reconhece-lo como estrutural e, assim, a "impossibilidade de definicao de responsabilidade de agente, ente ou orgao estatal", e, por fim, reconhecer a necessidade de uma pluralidade deles para a solucao do problema (aquilo que se chamou de coordenacao institucional).

Neste trabalho, buscaremos desenvolver teorica e filosoficamente o significado que tem a declaracao de "estado de coisas inconstitucional". A partir da analise de algumas das sentencas da Corte Colombiana, principalmente da T-153, e partir da decisao do STF na MC em ADPF n. 347, na qual se declarou a inconstitucionalidades de estados de fato, alcancaremos a conclusao da inconsistencia teorica e filosofica da declaracao de estado de coisas inconstitucional atraves do percurso teorico ora desenvolvido.

  1. ECI no Brasil

    O "estado de coisas inconstitucional (ECI) teve seu debate no plenario do STF iniciado ainda em 2015, na Medida Cautelar em ADPF n. 347. Assim como a CCC, o STF argumentou, para legitimar o uso da declaracao de "estado de coisas inconstitucional", sobre uma suposta necessidade de intervencao do Direito no campo que foi representado como privativo da Politica. A Politica, por seu turno, segundo os argumentos utilizados naquela decisao, nao teria sido capaz de respostas eficientes para tratar problemas de sua competencia funcional.

    Na Sentencia T-153, da Corte Constitucional Colombiana (CCC) e na decisao do Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF) na MC-ADPF n. 347, tratou-se das condicoes do sistema carcerario violadoras da dignidade humana que, contudo, nao poderiam encontrar na Politica qualquer solucao em razao de uma sob os argumentos de falta de representacao da populacao afetada e de contrariedade da opiniao publica. Esses seriam requisitos acrescentados pelo STF, alem da violacao massiva de direitos fundamentais, falta de coordenacao institucional e falha estrutural de diversos orgaos e agentes, que justificariam a intervencao judicial sobre o tema sem que, contudo, se configurasse qualquer violacao a separacao dos poderes. Ou seja, segundo os argumentos utilizados naquela decisao (ADPF n. 347), a defesa de direitos e garantias fundamentais de populacao hipossuficiente exposta a reiterada e massiva violacao de direitos legitimaria a tal medida e afastaria a possibilidade de se indicar violacao a separacao dos poderes do Estado.

    Os principais criticos apontaram como o grande problema do ECI a invasao pelo judiciario (direito) sobre as competencias do legislativo (politica), ou melhor, um possivel cancelamento da diferenciacao entre direito/politica. Tambem foi apontado por outros que seus mecanismos e sua operacao distinguiram-se do controle de constitucionalidade da tradicao do pensamento juridico, porque nao se dirigiam a qualificacao juridica de leis ou normas como inconstitucionais, mas a estados de fato (Vasconcelos, 2018, pp. 289-290).

    No Brasil, a Acao de Descumprimento de Preceito Fundamental--ADPF n. 347, dirigiu ao Supremo Tribunal Federal pedido de qualificacao de inconstitucionalidade de um "estado de fato" como meio para determinacao de medidas concretas suficientes a solucao de "litigio estrutural". Aquela acao tratava de problemas do sistema carcerario, como a superlotacao, as condicoes degradantes e a violacao massiva de direitos fundamentais dos presos. Classificava essas condicoes como resultantes de acoes e omissoes dos Poderes Publicos da Uniao, dos Estados e do Distrito Federal perpetradas por decadas a fio.

    O Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente a Medida Cautelar em ADPF n. 347. Segundo os argumentos utilizados na decisao, o cenario fatico ali descrito seria incompativel com a Constituicao Federal (1). A situacao carceraria foi qualificada como inconstitucional atraves da construcao do litigio estrutural, de uma violacao massiva de multiplos direitos fundamentais. Declarou-se que o quadro fatico ali reproduzido seria resultante de uma multiplicidade de atos comissivos e omissivos dos Poderes Publicos da Uniao, dos Estados e do Distrito Federal, incluidos os de natureza normativa, administrativa e judicial. No entanto, aquela decisao cuidou de determinar a adocao de apenas tres medidas, quais sejam: i) a realizacao de audiencias de custodia (pelo Judiciario); ii) a liberacao do fundo penitenciario (pelo poder executivo da Uniao); e iii) a obrigacao. O que se observa na decisao muito claramente e a frustracao institucional, uma impotencia de agir em relacao aquilo que se qualificou como um estado de coisas.

  2. A situacao do carcere no Brasil e o comportamento dos juizes e da administracao publica

    A Human Rights Watch realizou pesquisa sobre a populacao carceraria no Brasil em 1988, antes mesmo da promulgacao da Constituicao brasileira em 5 de outubro daquele ano (HRW, 1997-1998) e emitiu relatorio que foi, depois, sucedido por uma publicacao no ano seguinte tratando das condicoes em uma prisao de Sao Paulo. Em 1992, um outro relatorio foi produzido pela HRW, agora sobre a chacina na Casa de Detencao do Carandiru ocorrida em outubro daquele mesmo ano. Aquela ONG tem sistematicamente denunciado graves violacoes de direitos da populacao carceraria desde o final decada de 1980 (2), e tem condenado o Brasil de forma regular pela grave superlotacao das prisoes, condicoes de detencao horriveis e execucao sumaria de detentos. A dificuldade, no entanto de obter dados do periodo da ditadura militar dificulta tracar um trajeto mais longo sobre o problema do superencarceramento e das violacoes de direitos de presos.

    Em 1988, ja se estimava uma sobrecarga da demanda por novas vagas para acomodar a populacao carceraria ja existente. O deficit na capacidade instalada dos presidios era oficialmente estimada em 96.010 postos ate 1997 (para cada vaga nos presidios havia 2,3 presos). Em outubro daquele ano o jornal a "Folha de Sao Paulo" (3) publicou reportagem do jornalista Marcelo Godoy chamando atencao para o crescente numero de rebelioes em presidios desde 1995 e que...

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