The cycles of historical revisionism in the studies of the Russian Revolution/ Os ciclos de revisionismo historico nos estudos sobre a Revolucao Russa.

Autorde Melo, Demian Bezerra
CargoReport

Ao entrar em qualquer livraria brasileira neste centenario da Revolucao Sovietica nos deparamos com uma serie de obras que poderiam facilmente ser catalogadas como parte de uma demonologia do comunismo. Em primeiro lugar, as biografias disponiveis de personagens chave daquele processo sao em geral assinadas por anticomunistas ferrenhos. Em termos de lancamentos, podemos mencionar uma edicao atualizada da biografia de Leon Trotski escrita por Robert Service, que faz uma caricatura daquele como um "stalinista moderado" (SERVICE, 2017). E tambem duas nao menos problematicas biografias de Stalin, uma escrita por Robert Gellately, que atribui a suposta "leitura ortodoxa" do marxismo por parte do lider sovietico a responsabilidade sobre os expurgos e massacres da decada de 1930 (GELLATELY, 2017), e outra por Stephen Kotkin, para quem 1917 nao foi uma revolucao social proletaria, mas uma mera revolta de soldados e marinheiros (KOTKIN, 2017).

Ja em termos de titulos lancados ao longo da ultima decada, e facil encontrarmos obras como a pretensiosa biografia de Lenin do mencionado Service (2006), ou uma grande caricatura do movimento comunista no seculo XX tambem escrita por ele (Camaradas, 2015). Do citado Gellately, ha ainda Lenin, Stalin e Hitler (GELLATELY, 2010), cuja tese central e a de que tais personalidades poderiam ser homogeneamente compreendidas como responsaveis por catastrofes decorrentes da "busca desmedida por ideais utopicos". Neste mesmo livro, Gellately defende que o regime sovietico montado a partir de 1917 teria sido muito mais repressivo que a autocracia czarista, opiniao que nao por acaso faz muito sucesso nos circulos conservadores.

Trata-se de uma serie de revisionismos historicos--por vezes justificados pelo recurso a novas fontes de pesquisa--que reiteram a velha propaganda anticomunista das decadas de 1940-50, produzida por historiadores cujos adversarios adequadamente os apelidaram de cold warriors ("soldados da Guerra Fria"). E, nao obstante a predominancia desse tipo de obras nas prateleiras, felizmente ja nao e tao provavel que se encontre a venda hoje em dia algo como o Livro negro do comunismo, de Stephane Courtois (COURTOIS et al, 1999 [1997])--um marco desse tipo de producao--publicado ha vinte anos, e hoje disponivel para download na internet.

Todavia, alem dessa demonologia revisionista e possivel encontrar em livrarias brasileiras titulos de outro teor, como a profunda pesquisa de Wendy Goldman sobre a condicao feminina na URSS, desde o periodo da Revolucao ate a ascensao da burocracia stalinista (GOLDMAN, 2014); antologias, como a organizada por Graziela Schneider, contendo materiais sobre a atuacao das mulheres (SCHNEIDER, 2017); ou a contribuicao a critica do revisionismo historiografico de Outubro de 1917 (e tudo o mais que lhe e afeito) do filosofo italiano Domenico Losurdo (LOSURDO, 2017). Alem, e claro, de reedicoes de obras importantes, como o classico Os dez dias que abalaram o mundo de John Reed (REED, 2017). Se tiver muita sorte, encontrara uma edicao da Historia da Revolucao Russa de Leon Trotski, uma das narrativas mais bem informadas sobre o episodio escrita por um de seus protagonistas. (1)

Contudo, boa parte da producao critica sobre o processo ainda esta longe do alcance publico brasileiro, como bem apontou o jornalista Marcelo Godoy em artigo publicado em O Estado de S. Paulo (GODOY, 18/03/2017). A lacuna naturalmente e bem maior que aquela arrolada no artigo de Godoy, ate pelas dimensoes disponiveis no jornal. Por exemplo, a biografia de Trotski escrita por Service provocou importante controversia no exterior, mas inutilmente o leitor brasileiro procuraria uma traducao de In Defense of Leon Trotsky, de David North, parte fundamental do debate. Inutilmente procuraria tambem biografias do mesmo personagem escrita pelos historiadores franceses Pierre Broue (BROUE, 1988) e Jean-Jacques Marie (MARIE, 2006), embora ha muitos anos tenha sido publicada no Brasil a famosa trilogia sobre o revolucionario russo escrita pelo historiador polones Isaac Deutscher. (2)

Em termos de supressao, ha tambem o caso daquelas obras cujo clima intelectual impediu que alcancassem maior repercussao no debate internacional, de certo modo justificando a sua nao publicacao no Brasil, como o Livro negro do capitalismo (PERRAULT, 1998), organizado por Gilles Perrault e publicado na Franca em 1998 como resposta ao mencionado Livro negro do comunismo. Mesmo no mundo anglofono, a editora da Universidade de Harvard, que em 1997 havia publicado o livro de Courtois, se negou no ano seguinte a publicar o de Perrault. Um evento explosivo como a Revolucao de 1917 sem duvida desperta paixoes, e a primeira a ser sacrificada e a retorica da liberdade academica.

O passado como campo de batalha

O comunismo como proposta societaria, tal como definido nas paginas celebres escritas por Marx e Engels no Manifesto de 1848, a partir da Revolucao Sovietica de 1917 deixou de ser simplesmente uma hipotese politica de alas significativas (e em algumas latitudes minoritarias) do emergente movimento operario para se tornar um objetivo concreto de um Estado. Por sua vez, tal Estado teve a existencia justificada pelo compromisso de abolir a propriedade privada dos meios de producao, a existencia das classes sociais assentadas sobre ela e que constituem o modo de producao capitalista e, assim, o proprio Estado. E claro que, nesses termos marxianos, o comunismo nao se estabeleceu em parte alguma do planeta, ja que, dialeticamente, este pressupunha a abolicao do capitalismo em escala mundial e, tambem, da estrutura politica encarregada de lhe preservar politica e militarmente, o sistema internacional de Estados. De qualquer modo, a fundacao da Uniao das Republicas Socialistas Sovieticas esteve alicercada nesse projeto de subversao global, centro irradiador da revolucao socialista mundial.

"Essa revolucao fez um apelo ainda maior ao presente e ao futuro, mantendo a expectativa de ir alem de um sistema capitalista que nao conseguira resolver tantos problemas humanos e que tambem levou o mundo a guerra global" (HAYNES & WOLFREYS, 2007: 3), escreveram os historiadores Mike Haynes e Jim Wolfreys, nas primeiras paginas da introducao que escreveram ha dez anos para um livro dedicado a refutacao do revisionismo das revolucoes modernas. Neste centenario, a memoria de 1917 continua no centro das batalhas pelo passado que se travam no presente, batalhas essas que, como ensina Fontana, sao tambem vinculadas aos projetos de futuro (FONTANA, 1998).

Isolada no territorio do antigo imperio russo ao longo dos anos 1920-30, a Revolucao Socialista espalhou-se de forma vitoriosa--ainda que com graves distorcoes -em importantes regioes do planeta apos o fim da Segunda Guerra Mundial, particularmente no mundo sob o dominio do imperialismo, como foram os casos da China em 1949 e da Indochina durante as decadas de 1950 ate 1970, regiao onde Partidos Comunistas constituidos sob inspiracao do modelo sovietico foram os protagonistas dos processos de descolonizacao. A presenca de comunistas no processo de descolonizacao, alias, e um fato historico que, em geral, e negligenciado nas narrativas historiograficas revisionistas, bastante interessadas em tracar um paralelo, atraves da categoria do totalitarismo, com o fascismo historico, como bem apontou Domenico Losurdo (LOSURDO, 2017: 91134). Conforme ressaltou esse autor, enquanto a revolucao bolchevique lancou "o apelo aos escravizados das colonias para que arrebentem suas correntes, isto e, para que conduzam guerras de libertacao nacional contra o dominio imperial das grandes potencias", o "modelo de Hitler se [baseava] no imperio colonial da Inglaterra" (Idem: 120).

A Revolucao de 1917 e indiscutivelmente o processo mais decisivo de toda uma epoca historica, como bem demonstrou Eric Hobsbawm em sua consagrada obra A era dos extremos (HOBSBAWM, 1995). Se e verdade que, segundo ele, a experiencia catastrofica da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) define o inicio do seculo, foi a Revolucao Sovietica que determinou o seu teor politico. No plano imediato, o proprio fim da carnificina industrial no continente europeu em 1918 resultou da Revolucao, que liquidou tres seculos da dinastia Romanov. (3)A capacidade de traduzir esse sentido, desdobrado na conclusao de que o fim do Estado sovietico fundado naquela revolucao determinou o fim do seculo XX, e o que explicou o sucesso do livro de Hobsbawm, como bem assinalou o historiador italiano Enzo Traverso (TRAVERSO, 2012: 11).

Traverso, alias, lembra tambem como o mais bem sucedido livro de Hobsbawm foi boicotado na Franca, tendo sido rejeitado por Pierre Nora para figurar em sua prestigiosa colecao editada pela Gallimard, sob a justificativa de que se tratava de uma "obra anacronica e inspirada em uma ideologia de outra epoca" e, portanto, "nao seria rentavel". So cinco anos depois da edicao inglesa (de 1995) ele foi publicado em frances, por iniciativa de um editor belga (Idem, 36)! E, embora sempre se possa alegar que os circulos cultos de lingua francesa nao tenham esperado cinco anos para ler o livro de Hobsbawm, cabe lembrar que, no mesmo ano de sua edicao inglesa, Francois Furet--baluarte do revisionismo sobre a Revolucao Sovietica--publicou o que pode ser denominado como seu contraponto liberal, O passado de uma ilusao.

Nesse ultimo livro, Furet deu consequencia ao seu projeto historiografico revisionista iniciado em sua obra sobre a Revolucao Francesa, que consistiu em anatemizar o proprio conceito de revolucao (Cf. WOLFREYS, 2007; LOFF, 2014). Para Furet em O passado de uma ilusao a Revolucao de Outubro foi simplesmente "um putsch bem-sucedido no pais mais atrasado da Europa, realizado por uma seita comunista, dirigida por um chefe audacioso" (FURET, 1995: 35). Nesse livro ele reabilita a teoria do totalitarismo, propondo um paralelo entre o comunismo e o fascismo, tratando-os como "irmaos gemeos".

Depois de trajetoria juvenil no...

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