The Controversy About Marx and Justice/ A controversia sobre Marx e o conceito de justica.

AutorGeras, Norman
  1. Marx contra a Justica

    (i) Uma primeira e, em decorrencia disso, atraente evidencia contra a suposicao de que Marx considera o capitalismo injusto e o fato de que ele mesmo efetivamente o disse. Uma vez que a compra da forca de trabalho foi efetivada, de acordo com Marx, essa mercadoria pertence ao capitalista de pleno direito e, sendo assim, o mesmo se passa com o seu uso e com os produtos de seu uso (1976, p. 292, 303; 1968, p. 315). Ou, expresso do ponto de vista do trabalhador, "mal seu trabalho tem inicio efetivamente e a forca de trabalho ja deixou de lhe pertencer" (MARX, 1976, p. 677). O capitalista, Marx afirma na passagem mais frequentemente citada a esse respeito, pagou pelo valor da forca de trabalho, e o fato de que o uso dela terminou por criar um valor maior "e, certamente, uma grande vantagem para o comprador, mas de modo algum uma injustica para com o vendedor" (1976, p. 301). Igualmente,

    o fato de que essa mercadoria particular, a forca de trabalho, tenha o valor de uso peculiar de fornecer trabalho e, portanto, de criar valor, nao pode alterar em nada a lei geral da producao de mercadorias. Portanto, se a quantia de valor adiantada em salario nao ressurge no produto pura e simplesmente, mas sim aumentada de um mais-valor, isso nao resulta de que se tenha ludibriado o vendedor, pois este recebeu efetivamente o valor de sua mercadoria, mas do consumo dessa mercadoria pelo comprador (1976, p. 731) (2).

    (ii) Em conformidade com sua negacao de que a relacao salarial e injusta, Marx tambem se coloca contra os socialistas que tentam recorrer a consideracoes sobre justica. O episodio mais bem conhecido e sua polemica, na Critica do programa de Gotha, contra a nocao de uma justa distribuicao dos produtos do trabalho. "O que e 'distribuicao justa'?", ele pergunta com severidade, os burgueses nao consideram que a atual distribuicao e 'justa'? E nao e ela a unica distribuicao justa tendo como base o atual modo de producao? As relacoes economicas sao reguladas por conceitos juridicos ou, ao contrario, sao as relacoes juridicas que derivam das relacoes economicas? Os sectarios socialistas nao tem eles tambem as mais diferentes concepcoes de distribuicao 'justa'? (Marx; Engels, 1970b, p. 16)

    Logo depois ele se refere a tais nocoes como "restolhos ideologicos ultrapassados" e "disparates ideologicos, juridicos e outros generos, tao em voga entre os democratas e os socialistas franceses"--sua posicao geral parece bastante clara (MARX; ENGELS, 1970b, p. 19). Novamente, em uma carta de 1877, ele escreve desdenhosamente sobre um grupo de estudantes imaturos e doutores diplomados super-sabios que querem dar ao socialismo uma orientacao 'mais alta, idealista', ou seja, substituir sua base materialista (que demanda o estudo serio e objetivo por parte de quem queira usa-la) pela mitologia moderna, com suas deusas Justica, Liberdade, Igualdade e Fraternidade (n. d., p. 375-376)

    Na unica ocasiao em que o proprio Marx faz uso de referencias a direitos e justica--em sua Mensagem Inaugural da Associacao Internacional dos Trabalhadores e no preambulo de seu Estatuto--ele se explica cautelosamente em uma carta a Engels: "eu fui obrigado a inserir duas frases sobre 'dever' e 'direito' no preambulo do Estatuto, e tambem sobre 'verdade, moral e justica', mas elas estao colocadas de uma maneira tal que nao vao fazer mal" (n.d., 182).

    (iii) O que motiva a polemica acima referida, bem como a negacao de Marx de que haveria injustica na relacao salarial, talvez ja esteja evidente. E o que muitos, inclusive esses cuja interpretacao estamos esbocando no presente momento, entendem ser sugerido por outra formulacao presente na Critica do programa de Gotha, a saber, que "o direito nao pode ultrapassar a forma economica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade" (MARX; ENGELS, 1970b, p. 19). Criterios de justica, pode-se depreender dai, sao relativos, ou internos, a modos de producao historicamente especificos. Nao se trata apenas do fato de que aqueles sao gerados por esses--que as relacoes juridicas, e as "formas de consciencia social" a elas correspondentes, "se originam nas condicoes materiais de vida" (MARX, 1971, p. 20)--mas que, alem disso, as nocoes de justica so sao aplicaveis e validas dentro de cada modo de producao. Os unicos principios de justica que sao apropriados para se julgar um modo de producao particular sao aqueles que de fato lhe "correspondem" e sao funcionais para sustenta-lo e legitima-lo. Conforme uma outra passagem bastante citada:

    Nao faz sentido falar aqui de justica natural, como faz Gilbart [a respeito do pagamento de juros sobre emprestimos--NG]. A justica das transacoes que se realizam entre os agentes da producao repousa no fato de que essas transacoes derivam das relacoes de producao como uma consequencia natural. As formas juridicas, nas quais essas transacoes economicas aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizacoes de sua vontade comum e como contratos cuja execucao pode ser imposta as partes pelo Estado, nao podem determinar, como meras formas que sao, esse conteudo. Elas podem apenas expressa-lo. Quando corresponde ao modo de producao, quando lhe e adequado, esse conteudo e justo; quando o contradiz, e injusto. A escravidao, sobre a base do modo de producao capitalista, e injusta, assim como a fraude em relacao a qualidade da mercadoria (MARX, 1981, p. 178, 460-461)

    Se por relativismo nos entendermos uma concepcao segundo a qual determinar o que e justo e simplesmente uma questao de ponto de vista subjetivo, entao se pode dizer que a concepcao de Marx nao e relativista. Ao contrario, ela tem uma base firmemente objetiva, uma vez que compreende que os padroes de justica apropriados a qualquer tipo sociedade se estabelecem como tais em virtude da funcao social real que eles exercem (WOOD, 1980a, p. 18-19; 1981a, p. 131-132). Ela se mostra relativista, contudo, no sentido em que vincula todo principio de justica a um modo de producao especifico tal como descrito, tornando assim os principios em si incapazes de providenciar uma base para um juizo trans-historico. Desse modo, nao ha como existir um parametro de justica independente, que seja externo ao capitalismo e, ao mesmo tempo, apropriado para julgalo. Nao pode haver nenhum principio que transcende epocas historicas a partir do qual Marx seria capaz de condenar o capitalismo como injusto.

    (iv) E possivel apresentar o mesmo argumento de outro angulo. Normas e nocoes morais estao embutidas na bussola da teoria da ideologia de Marx. Portanto, nao apenas as ideias sobre justica mas tambem a moralidade em um sentido geral pertencem a superestrutura da qualquer formacao social. Conforme posto em A ideologia alema, "a moral, a religiao, a metafisica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciencia a elas correspondentes, sao privadas, aqui, da aparencia de autonomia que ate entao possuiam" (MARX; ENGELS, 1975, p. 36-37). Assim, a ideia de que Marx consideraria a sociedade capitalista injusta segundo o criterio de principios de justica historicamente gerais nao e consistente com suas nocoes sobre ideologia (BRENKERT, 1980, p. 90; 1983, p. 154-155).

    Reformismo

    (v) Uma vez que a justica e essencialmente um valor relativo a distribuicao argumenta-se, ademais, que atribuir a Marx uma preocupacao com ela significa modificar sua critica ao capitalismo em um sentido que ele explicitamente repudiou e, por esse caminho, se chegar a uma conclusao reformista que ele nao aprovava. Essa perspectiva [sobre justica distributiva] foca a atencao de modo demasiadamente estreito na questao da distribuicao de renda e suas diferenciacoes internas: a parcela do produto social recebida pelos trabalhadores e o nivel inadequado de sua remuneracao. Alem disso, ela sugere que a exploracao deve ser eliminada pela alteracao e regulacao dessa esfera, isso e, por meio de reformas na distribuicao de renda. Entretanto, como sabemos, para Marx a exploracao reside na propria natureza do capitalismo, sendo parte constitutiva de suas relacoes de producao, das quais depende em larga medida a distribuicao de renda. A preocupacao dele e com a questao mais fundamental das relacoes de producao e a necessidade de uma revolucao completa nelas. Assim, por mais importante que sejam, reformas relativas aos niveis salariais simplesmente nao podem levar a abolicao da exploracao (3). Por isso Marx esbraveja contra os autores do Programa de Gotha por criarem confusao em torno da "assim chamada distribuicao". A distribuicao dos meios de consumo nao pode ser tratada independentemente da dos meios de producao (MARX; ENGELS, 1970b). Assim, tambem em Salario, preco e lucro, ele fala "daquele radicalismo falso e superficial que aceita as premissas e tenta se esquivar das conclusoes", e continua: "reivindicar uma retribuicao igual ou mesmo equanime tendo por base o sistema de trabalho assalariado e o mesmo que reivindicar liberdade com base no sistema escravagista. A questao e a seguinte: o que e necessario e inevitavel dentro de um determinado sistema de producao?" Depois, na mesma obra, Marx proclama, "em vez do lema conservador 'um salario justo para uma jornada de trabalho justa' eles [os trabalhadores--NG] devem colocar em suas bandeiras a palavra de ordem revolucionaria 'Abolicao do sistema de trabalho assalariado!"'(MARX; ENGELS, 1970a, p. 56-57).

    (vi) O enfoque voltado a justica distributiva, ha quem argumente, tambem e reformista em outro sentido. Ele faz o projeto marxiano de buscar as tendencias revolucionarias reais que irao derrubar a ordem capitalista retroceder em direcao a projetos de esclarecimento moral e reforma juridica. Como coloca um comentador, esse enfoque "direciona a atencao para ideais abstratos de justica e a desvia de objetivos revolucionarios concretos" (BUCHANAN, 1979, p. 134). A ideia aqui e que, para Marx, e uma forma de idealismo acreditar que o progresso historico ocorre por meio de aperfeicoamentos na...

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