The conception of education in the first half of the nineteenth century through the Napoleonic Code/A concepcao de educacao na primeira metade do seculo XIX atraves do Codigo Napoleao.

AutorRangel, Alan Wruck Garcia

O artigo analisara a concepcao de educacao atraves do Codigo civil frances de 1804 (rebatizado em 1807 Codigo Napoleao). (1) Embora o termo "educacao" possa, na primeira metade do seculo XIX, remeter a instrucao em estabelecimento educacional, ele deve de preferencia ser entendido de maneira ampla como toda acao dirigida ao ser humano desde o seu nascimento, englobando sua alimentacao e sustento, bem como sua formacao intelectual e moral. Uma leitura rapida nas edicoes do Dicionario da Academia francesa e suficiente para confirmar essa percepcao. No final do seculo XVIII, o termo "educacao" e definido como "o cuidado que se toma na instrucao das criancas, seja no que concerne aos exercicios do espirito, seja no que concerne aos exercicios do corpo, e principalmente no que concerne aos costumes" (edicoes 1762 e 1798). Entretanto, na edicao de 1835 a educacao e definida como "acao de criar (action d'elever), de formar a crianca, um jovem homem, de desenvolver suas faculdades fisicas, intelectuais e morais". Note-se que a palavra "instrucao" desaparece logo na primeira edicao publicada no seculo XIX para ser substituida pelo termo "criar" (elever) que remete comodamente a educacao de aspecto domestico cujo elemento moral e reforcado (2).

A nocao de educacao esta, assim, estritamente ligada ao contexto do liberalismo, cujo delineamento ideologico se percebe pela presenca discreta do Estado neste setor. O estudo toca a questao sobre a idealizacao da educacao domestica no contexto do liberalismo, e serve de exemplo para se compreender os elementos incidentes na relacao publico e privado. Revela, ainda, os aspectos autoritario, patrimonialista e "classista" do projeto liberal, quando a educacao na Franca e imaginada como pertencendo exclusivamente a esfera das familias. O estudo situa-se, portanto, muito antes das leis Ferry, promulgadas no final do seculo XIX, e que instauram o ensino gratuito, obrigatorio e laico (3). Hoje, na Franca, a obrigatoriedade da instrucao se estende, conforme a ordenacao de 6 de janeiro de 1959 (art. 1), as criancas e jovens entre 6 e 16 anos de idade. Essa mesma ordenacao (art. 3) permite, seguindo o principio da liberdade de ensino, que a instrucao da crianca seja assegurada pela propria familia; e conforme o decreto de 18 de fevereiro de 1966, a inobservancia da instrucao obrigatoria por parte dos pais constitui contravencao, e punida com multa. No Brasil, o artigo 208 da Constituicao Federal de 1988 preve a obrigatoriedade da instrucao sem aventar a hipotese do ensino ser ministrado no seio domestico pelos proprios pais. O tema da "educacao domiciliar" chegou ao STF (RE 888815) que decidiu em nao reconhecer essa modalidade de ensino em face da ausencia de legislacao infraconstitucional especifica regulando a materia.

A adocao do principio da obrigatoriedade da instrucao, que pressupoe consequentemente a sua gratuidade, tem uma longa historia na Franca. No projeto jacobino de educacao nacional (4), ainda que tenha sido bastante criticado por atentar contra o direito natural das familias sobre a educacao dos filhos, a obrigatoriedade do ensino e mantida, e o projeto se transforma em lei pelo decreto do 29 Frimaire an II (19 de dezembro de 1793), conhecido como Lei Bouquier. Essa lei exige a permanencia da crianca na instituicao de ensino durante ao menos tres anos consecutivos, sob pena de a familia ser denunciada ao tribunal de policia correcional (art. 9) (5). Essa lei sera mais tarde descartada pelos termidorianos. A Constituicao do 5 Fructidor an III (22 de agosto de 1795), que outorga a liberdade para qualquer cidadao criar estabelecimentos privados de educacao e instrucao (artigo 300 do Titulo X consagrado a Instrucao Publica: "Os cidadaos tem o direito de formar estabelecimentos particulares de educacao e de instrucao, bem como sociedades livres, para concorrer aos progressos das ciencias, das letras e das artes"), vai aniquilar com o ideal de uma educacao estritamente publica, e alguns meses mais tarde a Lei Daunou do 3 brumaire an IV (25 de outubro de 1795) rompera completamente com o principio da obrigatoriedade do ensino (6). Essa lei sera substituida por outra no governo do Consulado. Trata-se da Lei Fourcroy, votada em 10 floreal ano X (1 de maio de 1802), que coloca a instrucao publica sob a tutela estatal, mas refuta a obrigatoriedade e gratuidade no ensino. A novidade dessa lei e a criacao dos liceus ao lado de duas outras categorias de estabelecimentos, as escolas primarias e as escolas secundarias. Com Bonaparte, o tema da "educacao e instrucao publica" sai da esfera constitucional, para ser, doravante, regulamentado por leis administrativas. Notavel indicio de mudanca de perspectiva, a educacao deixa de ser materia importante a cidadania, e resta escamoteada no setor publico, seguindo, tambem, o interesse das familias. Sob a Monarquia de Julho, a Carta de 1830 preve no paragrafo 8 do artigo 69 a possibilidade de regulacao da materia por lei posterior. O respeito a autoridade paterna e, entretanto, visivel no artigo 2 da Lei Guizot de 28 de maio de 1833 que pela primeira vez neste seculo a regulamenta: "O assentimento dos pais de familia sera sempre consultado e seguido no que concerne a participacao dos seus filhos a instrucao religiosa" (7).

Na primeira metade do seculo XIX, a instrucao publica nao e, portanto, obrigatoria, e a educacao de criancas e jovens pertence ao "mur de la vie privee" (8), devendo o Estado apenas assegurar a liberdade das familias para decidir sobre a sua oportunidade. A educacao e um sucedaneo do patrio poder, este ultimo intimamente ligado a ordem publica a qual interessa nao somente as familias, mas tambem ao Estado (9). A educacao esta, portanto, vinculada de forma inelutavel a "casa paterna" como o primeiro lugar, e na maioria das vezes o unico, de criacao, formacao e instrucao do filho. Para Chardon, jurista frances da primeira metade do seculo XIX, a casa e o unico lugar onde o filho pode escutar "santas doutrinas" e receber "bons exemplos", e caso seja diferente nao havera outro lugar, e o "mal sera sem remedio"10. Conserva-se assim o aspecto domestico da educacao, aquele centrado nos servicos de um preceptor, tipico da sociedade do Antigo Regime (11), mas a partir de agora com as nuances e particularidades do liberalismo. No Codigo Napoleao, a educacao recebe essa dupla influencia: uma revolucionaria--ligada ao fenomeno da individualizacao das relacoes privadas--, e outra tributaria do Antigo Regime--da casa ou domesticidade como espaco autonomo e, portanto, atrelado ao antigo paradigma da oeconomia (12). No Codigo Napoleao, o domicilio, a casa, o lar, o menage, esta sob o comando do chefe de familia: conforme o artigo 214, o marido decide onde residir e a esposa deve segui-lo; e no artigo 374, o filho menor nao pode abandonar a casa sem a autorizacao do pai.

Nao pretendo aqui analisar a concepcao de educacao sob o vies da historia do pensamento politico, por discursos e debates parlamentares em torno do tema, mas, como descrito no titulo, atraves da interpretacao e aplicacao do Codigo Napoleao. Ao contrario do Codigo geral dos estados prussianos de 1794, que regulou a materia de maneira analitica (13), nao temos no Codigo Napoleao um conjunto de regras precisas sobre a educacao. O seu Titulo IX, consagrado ao patrio poder, emprega o termo "educacao" uma unica vez no artigo 385 que trata do usufruto legal. Essa ausencia havia sido alertada por Bonaparte a comissao redatora que segundo ele deixava indecisa muitas questoes que importava resolver; por exemplo, "se um filho, atingindo a idade do discernimento, e que nao recebe uma educacao conforme a fortuna de seu pai, pode demandar a ser mais bem educado" (14).

A fim de identificar o conceito civilista de educacao, e o modo pelo qual ele se opera nas relacoes privadas, foi necessario recorrer a doutrina (15) e a pratica dos tribunais. As fontes utilizadas neste estudo foram 17 decisoes proferidas pelas Cortes de Apelacao entre 1808 e 1867, coletadas nos Repertorios de jurisprudencia (Recueils de jurisprudence), e tambem a doutrina juridica anterior a Terceira Republica (1870-1940). Ainda que os repertorios de jurisprudencia trabalhados sejam extraoficiais (16), e relatem as decisoes de todo o territorio frances, eles sao bem mais ricos em informacoes--pois, em razao da sua propria heterogeneidade, nos dao conta das particularidades locais--do que os repertorios organizados pela imprensa oficial da Corte de Cassacao, nos quais o tema "educacao" aparece raramente. Ademais, os repertorios trabalhados, alem de ter grande circulacao entre os juristas do seculo XIX, nao se limitam a colacao de decisoes, e trazem no seu bojo referencia a doutrina, com comentarios de professores, advogados, magistrados e membros do parquet. Essas fontes, produzidas com olho vivo na pratica dos tribunais, serviram perfeitamente para cumprir os objetivos da pesquisa: delimitar a concepcao de educacao atraves da interpretacao e aplicacao do Codigo Napoleao na primeira metade do seculo XIX, periodo no qual a Franca desconhece uma lei geral instituindo o ensino publico e obrigatorio. Busquei nas fontes, atraves da palavra-chave "educacao", entender o funcionamento da domesticidade, a distribuicao de papeis e funcoes entre os seus membros, e a pesquisa me revelou tres elementos ai implicados: os institutos juridicos do usufruto, dos alimentos, e a nocao de "rang social" que os completa.

Uma vez vinculada ao poder domestico, a concepcao de educacao obedece, portanto, aos preceitos do autoritarismo e do liberalismo numa trama legitima entre patrio poder e patrimonio. A logica civilistica da educacao esta assim apoiada na "economia domestica", na gestao da casa, que envolve o usufruto (2), mas tambem os alimentos (3), e nesses institutos juridicos intervem a ideia de "rang social" (1).

  1. Educacao e rang social

    A expressao rang social aparece nas fontes estudadas, e numa primeira abordagem poderia...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT