The Apartheid of law: reflections on legal positivism at the periphery of capital/O Apartheid do direito: reflexoes sobre o positivismo juridico na periferia do capital.

AutorAlmeida, Ana Lia Vanderlei
CargoEnsayo

Introducao

Na primeira semana de aula na faculdade de direito da Universidade Federal do Piaui, Lucas (1) ficou estarrecido com o andamento de um debate promovido por certo professor do primeiro periodo. Estava em questao uma situacao hipotetica sobre o apartheid sul-africano: qual seria a atitude dos estudantes caso tivessem que julgar uma pessoa negra que houvesse cometido um crime (2) tal qual estabelecido por aquele regime--por exemplo, o crime de um negro entrar no onibus reservado aos brancos. Os estudantes, na condicao de juizes, o condenariam ou nao? Perguntava o professor. O estarrecimento de Lucas deveu-se ao fato de praticamente todos os alunos terem optado pela condenacao, argumentando que a lei deveria ser cumprida sob pena de conivencia com o caos social. "Basicamente isso", arrematou Lucas, ao narrar o episodio.

Indignado, ele pensou: "Onde e que eu to?" Afinal, seus colegas, mesmo sabendo que as opcoes legais que arregimentavam o regime do apartheid consistiam em racismo, ainda assim decidiam privilegiar a abstracao da lei em detrimento de um valor muito mais solido para ele, o da igualdade. Lucas comparou, em sua mente, que o nazismo tambem se processava dentro do amparo legal e possivelmente aqueles aprendizes de juristas tambem julgariam correta a aplicacao das leis nazistas.

Ele entao comecou a "entrar num estado de tristeza muito grande" com o ambiente da faculdade de direito; com a sua sala "totalmente elitizada", percebendo as "camadas economicas que tem ali dentro", e comecava a pensar que a universidade era "tudo aquilo" que ele "nao esperava encontrar"; era "totalmente o contrario" do que imaginava. Lucas tinha a ideia de que a universidade era um espaco "totalmente diferenciado do ensino medio", em que as pessoas teriam uma "maturidade maior e por isso teriam um senso critico mais desenvolvido". Mas, logo na primeira semana, sofreu uma "decepcao total".

A controversia sobre o apartheid na UFPI tambem marcou a memoria de Daniela, da mesma sala de Lucas. Ela, que havia escolhido estudar direito buscando ajudar a diminuir as desigualdades sociais, "achando que o direito ia servir muito pra isso". Decepcionou-se bastante ao perceber que ninguem mais estava ali para aquilo. Na "Semana do Calouro", na mesma epoca em que seus colegas sairam em defesa do apartheid, pediram aos estudantes de sua turma que expressasse por meio de um desenho o porque de cada um ter escolhido aquele curso. "Ai o povo desenhava dinheiro, festa, e eu sou muito timida, ficava calada, nao sei ... Pensando em desenhar o mapa do Brasil. Ai eu falei: pra ajudar a melhorar nosso pais, alguma coisa assim".

Tive a oportunidade de conversar com Lucas, Daniela e mais dezenas de estudantes no ano de 2013, a proposito da tese de doutorado "Um estalo nas Faculdades de Direito: perspectivas ideologicas da assessoria juridica universitaria popular" (ALMEIDA: 2015). Ali, buscava compreender as possibilidades, as contradicoes e as limitacoes da assessoria juridica universitaria popular (3), na tarefa de se contrapor a orientacao ideologica dominante no direito, absolutamente comprometida com reproducao da ordem social. Para a pesquisa doutoral, analisei por meio de entrevistas coletivas e observacao participante oito grupos (4) de assessoria juridica universitaria popular do Nordeste. Este artigo aproveita esta pesquisa de campo para sintetizar um dos problemas contidos na tese: como a ideologia do positivismo juridico foi adaptada no Brasil e se expressa no direito e na maneira de ensina-lo por meio de alguns elementos que sao constitutivos da forma juridica tal qual se desenvolveu na periferia do capitalismo.

O modo como o direito se reproduz na formacao de seus especialistas foi apreendido por teoricos ligados a tradicoes bem distintas. Pierre Bourdieu (2006), por exemplo, identificou-o como o "habitus" do campo juridico em O Poder Simbolico, responsavel pela propagacao de um ponto de vista sobre o mundo "que em nada de decisivo se opoe ao ponto de vista dos dominantes" (BOURDIEU: 2006, p.245). Muitos dos teoricos brasileiros ligados a perspectivas criticas tambem se dedicaram a este campo de analise, como Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, Luiz Fernando Coelho, Jose Geraldo de Sousa Junior, Maria Ines Porto, entre tantos outros. Uma das formulacoes mais difundidas, a de Luis Alberto Warat, identificou a existencia do que denominou de "senso comum teorico dos juristas", uma especie de pano de fundo das atividades cotidianas dos juristas, "uma para-linguagem, alguma coisa que esta mais alem dos significados para estabelecer em forma velada a realidade juridica dominante" (WARAT, 1994, p.15). O nucleo desse "senso comum" consistiria na visao dogmatica a respeito do direito, concebida como um sistema logico-dedutivo centrado na lei, por sua vez considerada ideologicamente neutra.

Em algumas dessas formulacoes, especialmente nas ligadas ao que se convencionou chamar de "teorias criticas do direito", identifica-se uma especie de "modelo central" da educacao juridica reproduzido por meio de um ensino acritico, dogmatizado, formalista e comprometido com as elites. O passo seguinte a este diagnostico e defender outro modelo de direito a ser construido e ensinado, um "direito emancipatorio", por assim dizer, voltado a transformacao social. Quero aqui problematizar as limitacoes desse empreendimento, argumentando pelos lacos constitutivos do direito com a sociedade de classes e o consequente modo como esses vinculos se expressam na educacao juridica.

O ensino do direito, ao difundir e reforcar a crenca de que o direito consiste num sistema de normas "logico", "neutro" e "independente" dos demais ambitos da vida social, cumpre com certas funcoes indispensaveis a reproducao da sociedade de classes. Na America Latina e no Brasil, tal funcionalidade subordina-se, ainda, a acumulacao de capital nos paises centrais, implicando num modelo de reproducao do complexo juridico plenamente adaptado as condicoes do capitalismo periferico. No ambito da educacao juridica, este processo conformou uma especie de positivismo de periferia que se expressa por meio do ensino abstrato e retorico das leis; por meio da superficialidade teorica e tautologias tipicas dos "doutrinadores" do direito; por meio de formalismos e caricaturas de um dogmatismo manualesco etc. Este apartheid do direito, no entanto, nao e algo passivel de "correcao", sendo, antes, constitutivo mesmo da forma juridica que se processou na periferia do capitalismo.

  1. Os inescapaveis aspectos do modelo "central" da educacao juridica

    Assim como Daniela, tambem Flora entrou no curso com "aquela visao romantizada de que o direito e que traz justica e atraves do direito voce pode humanizar o mundo; de que a justica e que vai trazer mais igualdade social, e que voce vai poder ajudar as pessoas". Levou um choque ao perceber que nao era nada daquilo e que o direito servia para manter o que esta posto. Entao, pensou: "po, o que e que eu to fazendo aqui?" Sua colega Roberta, por sua vez, comentou:

    Quando eu cheguei na faculdade era como se aquele ambiente nao me dissesse respeito. Eu era absolutamente diferente daquelas pessoas em classe social, em raca, em forma de me vestir e me sentir no mundo, e senti uma barreira naquela faculdade a pessoas como eu, que nao vinham do espaco de onde a maioria daquelas pessoas vinha. E a forma de organizacao da faculdade e da sala de aula e de sistema de desvinculo, como diz Galeano. Nada ali lhe aproxima dos outros e nem lhe faz sentir como alguem que tenha alguma coisa a acrescentar. Voce ve que tudo que e ensinado em sala de aula e uma farsa ou simplesmente uma questao formal isolada de qualquer contexto, apresentada sem qualquer responsabilidade com a realidade (Roberta; Entrevista com o NAJUP Direito nas Ruas realizada em Recife no dia 24 de agosto de 2013).

    Muitos estudantes sentem essa desilusao, um desencanto profundo com o curso de direito a ponto de pensarem em desistir dele quando percebem ali a reproducao das relacoes opressoras que marcam a sociedade. "Cala a boca, seu cotista!", ouviu um estudante negro de um colega ligado ao Centro Academico na Universidade Federal do Ceara. Malu, filha de trabalhadores rurais que ingressou na faculdade de direito da UFPI atraves das cotas, percebia sua sala como um ambiente "totalmente opressor". "Eu via pessoas de outra classe social, que nao conversavam com a gente, a sala totalmente dividida, e, num primeiro momento, pensei em desistir". A imensa maioria dos estudantes eram provenientes de escolas privadas, ja que apenas 10% das vagas estavam reservadas as cotas na UFPI, a epoca. "Voce ve, na minha sala, claramente: os alunos cotistas ficam na parte esquerda da turma e os alunos nao-cotistas ficam na parte direita, ve esse racha na turma", relatoume Malu.

    Pouca gente negaria hoje que "os processos educacionais e os processos sociais mais abrangentes de reproducao estao intimamente ligados", como argumenta Istvan Meszaros (2005, p.25). Na verdade, a educacao e indispensavel para reproduzir a divisao social do trabalho, garantindo o funcionamento da sociedade de classes com todos os seus antagonismos. Basta pensar no importante papel que a escola cumpre no fortalecimento de valores como hierarquia, obediencia, disciplina, competicao etc.; alem do reforco dos padroes dominantes de genero e sexualidade, raca/etnia, geracao, entre outros; todos indispensaveis ao "bom" funcionamento das relacoes sociais nos moldes impostos pelo capital. Este "bom" funcionamento, contudo, nao e assegurado apenas pela da educacao.

    A partir de funcoes diferentes, a escola e todos os demais complexos (5) relevantes para a reproducao da totalidade social (politica, direito, arte, religiao etc.) incidem nesse processo de internalizacao dos elementos necessarios ao desenvolvimento das relacoes sociais nos moldes como estao postas na sociedade de classes, reforcando seus valores centrais. Chico, a 5 proposito, compreendeu bem a...

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