Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional: o lugar do testemunho na transição pósditadura civil-militar brasileira

AutorRoberta Cunha de Oliveira, José Carlos Moreira da Silva Filho
Páginas301-349
In: MEYER, Emílio Peluso Neder; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Justiça
de transição nos 25 anos da Constituição de 1988. 2ª ed. Belo Horizonte: Initia Via, 2014. ISBN
978-85-64912-50-2.
Os testemunhos das vítimas
e o diálogo transgeracional
O lugar do testemunho na transição
pós-ditadura civil-militar brasileira!
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! Este artigo é resultado de pesquisas apoiadas pelo CNPq e pela
CAPES. O artigo está também publicado em: Renata Conde e Costa
Vescovi. (Org.). Psica nálise e Direito: uma abordagem interdisciplinar
sobre ética, direito e respon sabilidade. 1ed.Rio de Janeiro;Vitória-ES:
Companhia de Freud;ELPV, 2013, v. , p. 131-162.
Mestra em Ciências Criminais pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS); Professora de Direito da Universidade Federal de Rio
Grande (FURG); Membro do Grupo de Estudos CNPq Direito à Ver-
dade e à Memória e Justiça de Transição; Membro do Grupo de Estu-
dos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição
IDEJUST.
# Doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do
Paraná - UFPR; Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Bacharel em Direito
pela Universidade de Brasília - UnB; Professor da Faculdade de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
(Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais Mestrado e
Doutorado - e Graduação em Direito); Bolsista Produtiv idade Nível 2
do CNPq; Conselheiro e Vice-Presidente da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça; Coordenador do Grupo de Estudos CNPq
Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição; Membro-
Fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e
Justiça de Transição IDEJUST.
Roberta Cunha de Oliveira & José Carlos Moreira da Silva Filho
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Introdução
A nossa capacidade para narrar histórias, foi o
que permitiu que tivéssemos uma memória dos acon-
tecimentos passados. Neste sentido, os efeitos das nar-
rativas, por sua oralidade e transmissão da experiência
tendem a perpetuarem-se no tempo, atravessando ge-
rações. Ou seja, já em sua visão mais ampla, a narrati-
va contribui originária e significativamente para a
construção de memórias em uma coletividade.
Entretanto, há situações limites, que dificultam a
transmissão da experiência apenas pela fala, necessi-
tando que se abra mão da linguagem em toda sua ri-
queza de manifestações para que ocorra a conexão en-
tre quem envia e quem recebe a mensagem. São tem-
Em seu texto "O narrador - considerações sobre a obra de N ikolai
Leskov", Walter Benjamin associa a memória à narração e enaltece esta
última, lamentando que no mundo da informação instantânea há cada
vez menos espaço para os verdadeiros narradores. "A reminiscência
funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de
geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais
amplo. Ela inclui todas as variedades da forma épica. Entre elas,
encontra-se em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ela tece a
rede que em última instância todas as histórias constituem entre si.
Uma se articula na outra, como demonstraram todos os outros
narradores(...). Tal é a memória épica e a mu sa da narração. (...)
Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e sua
matéria - a vida humana - não seria ela própria uma relação artesanal.
Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência - a sua e
a dos outros - trasnformando-a num produto só lido, útil e único? (...)
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe
dar conselhos: não para alguns casos, como o provérbio, mas para
muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao acervo de toda uma
vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em
grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância
mais íntima aquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar
sua vida; sua dignidade é contá-la inteira" (grifos do autor)
(BENJAMIN, Walter. O narrador considerações sobre a obra de Ni-
kolai Leskov. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política
ensaios sobre literatura e história da cultura Obras escolhidas I. 7.ed.
Tradução de Sérgio Paulo Rouanet . São Paulo: Brasiliense, 1994.
[Obras Escolhidas; v.1]. p.211 e 221).
Os testemunhos das vítimas e o diálogo transgeracional
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pos históricos de catástrofes sociais que atravessam o
indivíduo por retirarem-lhe sua condição plena de su-
jeito, submetendo-o à condição de objeto; são rupturas
no ser que geram rupturas nos grupos, estendem o
trauma, para além da esfera psíquica particular e com
isso, afetam não apenas as vítimas das violações, mas
também o entorno e as gerações seguintes%. Portanto,
na tentativa de trazer algumas inter relações entre o
direito e a psicanálise, nossa opção foi a de tratar dos
efeitos traumáticos em uma coletividade após períodos
de violações massivas de direitos humanos, pelo viés
de construção social das subjetividades, com base na
dificuldade de se fornecer espaços de escuta amplos para
as narrativas do trauma.
Para tal fim, analisaremos o momento brasileiro
de políticas públicas de memória e verdade, com a re-
cente abertura de escuta oficial das vítimas da ditadura
civil militar (que assolou o país entre os anos de 1964-
1985), cujos efeitos perversos da falta de simbolização
da violência estatal instaurada, ainda persistem crian-
do abismos na democracia. Importa ressaltar que as
políticas de memória e verdade, situam-se dentro de
um conceito de justiça de transição, a qual busca criar
mecanismos democráticos eficazes para reparação de
abusos autoritários e também para a consolidação de
uma cultura de respeito e educação em direitos huma-
nos, com o objetivo de neutralizar a produção cíclica de
violência.
5 Em tal aspecto nos embasaremos na construção psicanalítica acerca
do trauma como um acontecimento imprevisto que coloca em perigo a
“real” estrutura psíquica do sujeito, pela “pulsão de morte” diante da
morte súbita (como nos casos de guerra) ou então pela falta de elabo-
ração do duelo em relação a perda inesperada de um ser querido e
próximo. Um dos trabalhos que utilizamos como referência é o do
trauma como elemento transobjetivo fraturado pela quebra do “pacto
denegativo”, desenvolvido por René Kaes. KAES, René; PUGET,
Janine (org.). Violencia de Estado y psicoanálisis. Buenos Aires: Lu-
men,2006, p.161.

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