Tessituras com, contra e alem do direito a cidade: por uma justica dissensual nos enredamentos da despossessao/Weaving with, against and beyond the right to the city: dissensual justice through the entanglements of dispossession.

AutorBonadio, Mariana Galacini
  1. Introducao

    Cada ato de leitura e de escrita e uma encenacao inventiva que envolve uma experiencia de problematizacao; e no encontro dessa reflexao que este ensaio se inscreve. Encenarei encontros textuais improvaveis, ao preco de passar por cima de impasses inconciliaveis entre diferentes corpus de pensamento. Ao entretecer argumentos atraves de proposicoes teoricas colidentes coloco este texto, e a mim certamente, em dificuldades serias. Mas acredito nao haver outra forma de entregar-me a urgencia de refletir, ainda que parcialmente e sob as limitacoes de um ensaio, sobre a multiplicidade conflitante de sentidos etico-politicos que nos conformam na contemporaneidade; ao risco de invocar um pensamento dissensual no limiar do (im)possivel da justica, apenas tateado e muito preliminar a altura de um desafio que e por natureza inconclusivo; e lancar-me especulativamente a defender nossa abertura ao evento imprevisivel que somos enquanto sujeitos-corpos como forma de habitar o estranhamento do devir - torcendo a utopia, portanto - como o possivel-impossivel do direito a cidade.

    E se me proponho a invocar os espectros da dialetica - solo do pensamento lefebvriano -, mesmo que por vezes colidindo com ela, e condizente que eu leve a relacao dialetica entre signcacao e texto razoavelmente a serio. Por convocacao criativa, considerarei o movimento de negatividade da dialetica para pensar com a linguagem (na dimensao discursiva) a reduplicacao e deslocamento de sentidos que nos possibilitam trabalhar nossas proprias contradicoes constitutivas - nossa "dialetica do eu" (Safatle, 2019). Movimento dos sentidos nos discursos, entao, que desconfia da possibilidade de coincidencia entre qualquer enunciado e o 'real' - entre 'conceitos' e 'objetos' -, desassossegado pelos multiplos processos de significacao da realidade, irredutiveis ao plano

    do visivel mas nao menos enraizados nas dinamicas das relacoes sociais. Aproximacao dita-nao-dita com a desconstrucao derridiana, na percepcao da assimilacao do texto (do discurso) como algo sempre inacabado e de incessante criacao de significados.

    As motivacoes deste ensaio em posicionar uma perspectiva discursiva como ponto de partida de discussao sobre o direito a cidade, remete primeiramente ao debate, ao meu ver infrutifero, sobre a apropriacao desta nocao pela diversidade de coletivos, movimentos sociais ou por organizacoes institucionais como mais ou menos desviantes da concepcao 'originaria' lefebvriana. Ainda que nenhuma forma de apropriacao esteja isenta de criticas e tampouco conforme visoes inocentes e sem interesses localizados, seria uma reducao academicista debater o 'real' significado do direito a cidade e de uma arrogancia faze-lo por objecao ao que eu (nos) poderia(mos) considerar como lacunas e/ou banalizacoes de seu uso pela pluralidade social que desta se apropriou. Se considerarmos a nocao de 'direito a cidade' como um signo (ver Bakhtin, 2006), seu significado nao estara cristalizado no texto lefebvriano; ali encontraremos apenas um primeiro disparo de significacoes. Na dinamica socio-historica de producao e circulacao dos sentidos cada interlocutora e interlocutor, em seus contextos sociais e corporificados - produtora/es de conhecimento situado nos termos de Donna Haraway (1988) -, provocara significacoes nao coincidentes, no todo ou parcialmente, com as do autor. Logo, como interlocutora farei, necessariamente, uma interpelacao parcial a obra lefebvriana assim como uma proposta tambem parcial de defesa, de dilatacao e de ruptura do direito a cidade.

    Paradoxalmente, a critica de partida que faco ao direito a cidade lefebvriano provem do que eu interpreto como rastro paternalista em sua versao 'originaria', se considerada apenas em sua concepcao no livro homonimo - e em interpretacoes atuais como a de David Harvey, que ouso dizer ser mais influente no debate brasileiro do que o proprio Lefebvre. Ainda que assentada no solo de uma dialetica marxista renovada pelo engajamento com a vida cotidiana, como veremos a frente, um paternalismo que se traduz no acionamento de um desejo implicito de sintese tanto filosofica quanto macro(etico)politica, inscrita na "proclamacao e a realizacao da vida urbana como reino do uso (...) [pelas] perspectivas da revolucao sob a hegemonia da classe operaria" (Lefebvre, 2001: 139). Paternalismo tambem em se colocar como teoria detentora de uma visao da totalidade nao alienada que escapa as massas - como se algum sentido de totalidade pudesse, afinal, corresponder a realidade -, capaz de pressupor a verdadeira sensibilidade emancipatoria e de definir a tradicao teorico-discursiva e pratico-politica mais propicia para tal.

    Nao tenciono sugerir, com isso, que nosso papel na academia nao seja refletir sobre as praxis nem ser um terreno fertil para dialogos teorico-praticos propositivos, dada a indissociabilidade entre producao do conhecimento e intervencao transformadora do mundo. Mas o que ja de inicio estou defendendo e que a polifonia do direito a cidade e tao mais mobilizadora das forcas sociais de contraposicao a cafetinagem da vida pelo sistema falo-racista-heteronormativo-colonial-capitalistico (Rolnik, 2018) quanto menos coincidente for, quanto mais micro(etico)politico for, pluralizando agenciamentos distintos da dialetica justica/injustica. As criticas que dirijo ao direito a cidade lefebvriano (ou harveyano?) e motivada precisamente por maneiras concretas e dissonantes de significacao deste signo; usos direcionados a acao politica em experimentacoes situadas no que denomino de movimentos de conflitualidade ontologica da constituicao dos sujeitos - terreno repleto de licoes a serem aprendidas nas lutas feministas, lgbtqi+ e negras anti-racistas. Movimentos nao redutiveis, ainda que relacionados, aos conflitos que referenciam categorias tradicionais do urbano (habitacao, saneamento, infraestruturas coletivas, espaco publico, mobilidade etc.), mas que acredito enquadrarem o direito a cidade com imaginarios emancipatorios mais amplos ao encontrarem as significacoes da luta social na corporeidade.

    Ao demonstrarem a natureza situada e o carater paradoxal da dialetica justica/injustica, os movimentos de conflitualidade ontologica nos convidam a reflexao sobre os antagonismos constitutivos da contemporaneidade - em suas (des)continuidades com a modernidade colonial - para pensar a potencia politica da ambiguidade enunciativa do direito a cidade como um compromisso de contestacao incessante sobre a justica no passado-presente-futuro. Neste caminho, a ideia de justica certamente nao admitira fechamento semantico e precisamente ai reside sua potencia (im)possivel e nao totalizavel em uma esfera normativa nem em uma grande teoria universal capaz de transcender a conflitualidade etico-politica de nossa inter-relacionalidade constitutiva.

    Seguirei, entao, numa interpretacao do direito a cidade como uma nocao constituinte de um pensamento mediador entre a tarefa sociologica e o desafio filosofico enquanto processualidades constitutivas da realidade que se voltam a transformacao revolucionaria plural no devir da sociedade urbana. Transformacao que nao se limita as estruturas do constituido do sensivel (a materialidade historica) mas se direciona igualmente aos constituintes das condicoes ontologicas da experiencia humana. Nocao de direito a cidade que, se viva e em movimento, deve estar igualmente submetida a transformacao se objetivar uma mediacao (im)possivel da justica. Se regredido a apenas 'um' discurso conceitual ou a categoria de analise de pretensa efetividade, o direito a cidade perderia sua potencia em permanecer inconcluso e nao-identico, reduzido a uma abstracao coincidente entre forma e conteudo sob a lente de uma "terminologia filosofica viva desde o ponto de vista de um lexico morto" (Adorno, 1983: 39).

    E se o desafio se encontra na mediacao filosofica com a sociologica nao poderiamos desprezar disparos de significacoes do direito a cidade na propria obra lefebvriana que oportunizam interpretacoes de encerramento no pensamento social e juridico. Proponho, assim, uma leitura parcial mas constelar da obra de Henri Lefebvre, por vezes contra ele a partir dele mesmo, tencionando a nocao de direito a cidade a possivel alienacao do proprio 'direito a cidade'. Com, contra e para alem da matriz lefebvriana, parto da distincao levada a cabo pelo proprio autor entre categoria e conceito. Se para Lefebvre (1975) a categoria emerge do proprio vivido, que e o que significa a cotidianidade, e o vivido que a meu ver esta em jogo em sua proposicao, em que os sujeitos parecem chegar a cena do urbano com subjetividades essencializadas e pre-determinadas: com corpos (biologizaveis) mas sem corporeidades, como se apenas alienados pelo movimento do capital. Se o conceito e concebido pelo entendimento tardio do real, proponho um engajamento com a nocao de despossessao em processualidade retroativa dos distintos conteudos em contradicao que parece sintetizar nas gramaticas de desigualdade que acionamos da dialetica justica/injustica, oferecendo a contradicao, paradoxalmente, um carater ontologico (em situacao) radicalmente revisto.

    Como terreno contestavel do pensamento critico, defendo que a nocao de despossessao tem uma potencia de especulacao fabulativa (Haraway, 2016) sobre o sensivel que constitui a contemporaneidade, politicamente sugestiva para conjurarmos um futuro mais vivivel, tecendo a hipotese de que se e a operacao continua da despossessao que configura a qualidade violenta da acumulacao capitalista em estados induzidos de privacao e expropriacao, ao alcarmos a sua exposicao extrema na corporeidade poderemos compreende-la como a possibilidade radical de dissolvermos a falsa totalidade do capital e pensarmos um direito a cidade atraves de sensibilidades revolucionarias costuradas por ressonancias politicas de uma justica dissensual. E especulacao fabulativa pois exercicio de derivacoes multiplas com dificeis passagens: do...

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