A Tese de Montesquieu e a praxis dos pais fundadores da República Norte-Americana

AutorMaren Guimarães Taborda
CargoMestre e Doutora em Teoria do Direito e do Estado pela UFRGS
Páginas61-88
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
A TESE DE MONTESQUIEU E A PRÁXIS DOS PAIS FUNDADORES
DA REPÚBLICA NORTE-AMERICANA
Maren Guimarães Taborda*
Resumo: O presente ensaio trata da tese de Montesquieu e da sua inf‌l uência no pensamento e na
prática dos protagonistas da Revolução Norte-Americana, que criou a primeira república moderna
(sob a forma federal e com governo presidencialista) e instituiu o judicial review of legislation. O
estudo inventaria o pensamento jurídico subjacente às escolhas políticas dos fundadores do novo
Estado, tal como exposto em sua obra coletiva, O federalista, bem como destaca os principais ele-
mentos da construção que se tornou paradigmática para outros países, em particular, o Brasil.
Palavras-chave: Montesquieu. Separação de poderes. República Federal. Presidencialismo. Con-
trole formal de constitucionalidade.
Abstract: This paper deals with Montesquieu’s thesis and its inf‌l uence on the thinking and
practice of the protagonists of The American Revolution, which originated the f‌i rst modern republic
(following the federal form, under presidential government), and which established the judicial
review of legislation.The study, then, looks at the legal thought underlying the political choices of the
founders of the new State, as set out in their collective work, The federalist, as well as highlights
the main points of the work which became paradigmatic for other countries, particularly for Brazil.
A ciência do direito se converterá em mera técnica jurídica
se não se ocupa de seus fundamentos. Por isso, qualif‌i camos
a um trabalho jurídico como jurídico-científ‌i co somente se,
de alguma maneira, se refere aos fundamentos.
(Theodor Viehweg, Tópica y f‌i losof‌i a del derecho)
Introdução
Da Antiguidade clássica até a Idade Moderna, o problema do Estado1 foi es-
tudado pelas doutrinas políticas segundo o ponto de vista dos governantes – dos
* Mestre e Doutora em Teoria do Direito e do Estado pela UFRGS. Professora de História do Di-
reito e de Direito Constitucional na FMP. Professora de Direito Constitucional na PUCRS e na
ESDM. Procuradora do Município de Porto Alegre.
1 “Estado” será sempre usado neste trabalho como sinônimo de organização política da socieda-
de, embora se tenha em mente os argumentos contra e a favor do uso contínuo desta palavra,
amplamente difundida e aceita no início da Idade Moderna, em consequência do prestígio de
que gozou a obra de Maquiavel, como pormenorizadamente discutido por Norberto Bobbio (Es-
tado, governo e sociedade: para uma teoria geral da politica. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
p. 65 e segs.).
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 61-88
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que detêm o poder e a responsabilidade de conservá-lo: ex parte principis –,2
com seus temas essenciais: a arte de bem governar, os poderes necessários ao
cumprimento das diversas funções estatais, os vários ramos da administração
etc. Somente a partir da Idade Moderna, com a doutrina dos direitos naturais e
seus temas – liberdade dos cidadãos, bem-estar social e felicidade dos indivíduos
– é que o mérito de um governo passou “a ser procurado mais na quantidade de
direitos de que goza o singular do que na medida dos poderes dos governantes’’,3
isto é, o Estado passou a ser pensado ex parte populi, em que o problema de
fundo é a liberdade.4
No desenvolvimento histórico da doutrina juspublicista moderna, o conceito
de soberania aparece estreitamente condicionado à evolução do princípio político-
constitucional da separação dos poderes que, de um cânone político-organiza-
tório de um ordenamento estatal passa a ser um critério científ‌i co (jurídico) de
caracterização essencial das funções (atividades formalizadas) atribuídas aos
diversos complexos orgânicos estatais.5
Como cânone de organização política, o princípio da separação dos po-
deres foi codif‌i cado, pela primeira vez, no Instrument of Government de 1653,
em seguida à primeira revolução inglesa de 1640, no qual aparecem distingui-
dos os poderes legislativos e executivos: “a suprema autoridade legislativa na
Commonwealth da Inglaterra [...] será e residirá em uma pessoa e no povo reu-
nido no Parlamento” e “o exercício da mais alta magistratura e a administração
2 BOBBIO, 1992, p. 63-64. Pensar o Estado do ponto de vista dos governantes ou do ponto de
vista dos governados decorre da relação política fundamental (mando-obediência) e a tradição de
pensar o problema do Estado ex parte principis “vai do Político de Platão ao Príncipe de Maquia-
vel, da Ciropeia de Xenofonte ao Princeps christianus de Erasmo”.
3 BOBBIO, 1992, p. 64.
4 BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na f‌i losof‌i a política moderna.
São Paulo: Brasiliense, 1996. Tradução do original italiano Società e Stato nella f‌i losof‌i a política
moderna, p. 36. O jusnaturalismo moderno apresentou uma inovação em relação à tradição jurí-
dica anterior, na medida em que compreendeu, além da sistematização geral do direito privado,
a sistematização do direito público. Ainda que o direito romano tivesse construído algumas solu-
ções para os problemas capitais do direito público, como a noção de lex de imperio, pode-se
af‌i rmar que este nasceu, de fato, de conf‌l itos de poder desconhecidos na Antiguidade, como o
conf‌l ito entre poder espiritual e poder temporal. Por outro lado, mesmo que os juristas medievais
se tenham aproveitado grandemente das principais categorias de direito privado (equiparação en-
tre imperium e dominium, permitindo identif‌i car o poder do soberano com o poder dos proprie-
tários, ou de recurso à teoria do pactum ou dos diversos pacta para explicar as relações entre
soberano e súditos), foi a escola do direito natural que teve o mérito de racionalizar o direito
público, em uma sistemática geral do direito que “compreendesse ao mesmo tempo e com
igual dignidade tanto o direito privado quanto o direito público” (p. 35).
5 BASSI, Franco. Il principio della separazione dei poteri (evoluzione problematica). Rivista
Trimestrale di Diritto Pubblico, Milano, Giuffrè, ano 15, n. 1, p. 17-18, 1965. De acordo com o
autor, o estudo da separação dos poderes pode ser feito com base em critérios jurídicos, em
critérios técnico-organizativos, de modo a saber qual o modo de repartição das funções estatais
mais idôneo para assegurar o melhor rendimento das instituições e, f‌i nalmente, em um critério
político, com o f‌i m de garantir a liberdade.

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