Territorios Indigenas: Repercussoes do SIDH no Direito Brasileiro/Indigenous Territory: IACHR Repercussions in the Brazilian's Right.

AutorGuedes, Iris Pereira

Introducao

O debate sobre os direitos territoriais e significativo para os Povos Indigenas uma vez que as terras tradicionais representam condicao primordial para a efetivacao de demais direitos fundamentais para uma concepcao de vida digna, tais como: direito a saude, a vida, a educacao, a integridade fisica e psicologica, a preservacao cultural (bens materiais e imateriais), ao livre desenvolvimento, ao uso da lingua, dentre outros. Portanto, torna-se relevante a reflexao acerca das garantias de tais direitos, bem como a analise a partir do dialogo entre os parametros de protecao estabelecidos pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), especialmente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), e sua relacao com o ambito juridico interno brasileiro, em especial no Supremo Tribunal Federal (STF). Este estudo se justifica na medida em que embora esses Povos gozem de protecao constitucional e internacional, continuam tendo seus direitos negligenciados e enfrentando dificuldades de implementacao.

Para tanto, serao abordadas as alteracoes paradigmaticas operadas pelo texto constitucional de 1988, particularmente no que se refere ao abandono da perspectiva de aculturacao presente nas legislacoes patrias anteriores, reconhecendo, assim, a multiculturalidade e plurietnicidade do Estado brasileiro e o pertencimento imemorial dos Territorios Indigenas, de acordo com seus usos e costumes. Em momento posterior, serao analisados os casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo estes: o do Povo Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua (Corte IDH, 2001); o do Povo Indigena Yakye Axa Vs. Paraguai (Corte IDH, 2005); o caso do Povo Saramaka Vs. Suriname (Corte IDH, 2007); o caso do Povo Indigena Xakmok Kasek Vs. Paraguai (Corte IDH, 2010); o caso envolvendo o Povo Indigena Kichwa de Sarayaku Vs. Equador (Corte IDH, 2012); o caso dos Povos Indigenas Kuna de Madungandi e Embera de Bayano e seus membros Vs. Panama (2014); o caso dos Povos Kalina e Lokono Vs. Suriname (Corte IDH, 2015); e, o caso de 2018 envolvendo o Povo Indigena Xucuru e seus membros Vs. Brasil (Corte IDH). Os casos brasileiros julgados pelo STF sao referentes a Terra Indigena Raposa Serra do Sol (STF, 2009) e a Terra Indigena Limao Verde (STF, em andamento).

O objetivo do referido recorte sera o de analisar tanto a aplicacao do arcabouco normativo internacional de protecao aos direitos indigenas por parte da Corte IDH, quanto os possiveis avancos, desafios e divergencias do entendimento do orgao jurisdicional de controle brasileiro sobre os aspectos relativos aos Territorios Indigenas (TIs). Consequentemente, a partir do delineamento da nocao das duas Cortes, IDH e STF, sera possivel estabelecer uma relacao entre ambas, evidenciando possiveis conflitos.

A partir das analises propostas, foi possivel concluir que, em que pese o reconhecimento constitucional da multiculturalidade e do direito ao territorio tradicional no Brasil, a garantia e implementacao desses direitos ainda encontram graves obstaculos em todo o territorio nacional, ocasionando no aumento da violencia e da violacao dos Direitos Humanos coletivos desses Povos, assim como, na estagnacao das demarcacoes de terras originarias.

  1. 30 anos da promulgacao da Constituicao Federal brasileira de 1988: internacionalizacao dos direitos humanos, rompimentos paradigmaticos, reconhecimentos e desafios dos direitos territoriais imemoriais

    A Constituicao Federal de 1988 representa um marco juridico e politico no processo da transicao democratica e institucionalizacao dos Direitos Humanos no Brasil. No plano externo, este compromisso juridico e politico e evidenciado pelo principio da prevalencia dos Direitos Humanos nas relacoes internacionais, nos termos do artigo 4, inciso II, da Constituicao Federal de 1988 (CF/88), o qual e materializado pela assinatura, ratificacao e internalizacao de tais Tratados e Convencoes. Este primado da prevalencia dos Direitos Humanos, conforme aponta Paulo Thadeu, "[...] mostra forte orientacao politica do Brasil com vistas a defesa dos direitos fundamentais, submetendo-se, inclusive, a jurisdicao internacional [...]" (1), reconhecendo a aplicabilidade imediata dos tratados e instrumentos de protecao dos Direitos Humanos no pais, com forca normativa constitucional (2).

    Ademais, o texto constitucional operou importantes alteracoes na promocao dos direitos dos Povos Indigenas, dentre as quais, substituiu o termo "silvicola" (3), adotando o termo "indio" e abandonou a logica assimilacionista e integracionista, concebidas dentro de um processo de aculturacao (4), presentes nas Constituicoes e legislacoes anteriores (5). Tais avancos podem ser observados no Capitulo III, Da Educacao, da Cultura e do Desporto, Secao I, no artigo 210 e Secao II, no artigo 215 e no Capitulo VIII nos artigos 231 e 232 (6).

    Ainda, em relacao ao vies de aculturacao, o legislador reconhece no caput do artigo 231 o direito a diferenca e a multiculturalidade e plurietnicidade do Estado brasileiro e, segundo Deborah Duprat, "nao se coloca mais em duvida que o Estado nacional e plurietnico e multicultural, e que todo o direito, em sua elaboracao e aplicacao, tem esse marco como referencia inafastavel" (7). O caput do referido artigo tambem reconhece "os direitos originarios sobre as terras que tradicionalmente ocupam", estipulando a competencia da Uniao para demarcar, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Em seu [section] 1, o constituinte conceituou as terras tradicionais como aquelas:

    [...] ocupadas pelos indios as por eles habitadas em carater permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindiveis a preservacao dos recursos ambientais necessarios a seu bem-estar e as necessarias a sua reproducao fisica e cultural, segundo seus usos, costumes e tradicoes. (8) Conforme Frederico Mares, a expressao "direito originario" remete ao instituto do indigenato, o qual existe desde o periodo colonial com o advento do Alvara de 1 de Abril de 1680, "ao considerar as 'terras possuidas por hordas selvagens collectivamente organisadas', cujas posses nao estao sujeitas a legitimacao, visto que o seu titulo nao e a 'occupacao', mas o 'indigenato'" (9). Para o autor, o referido Alvara expressa que "os indigenas foram os primeiros ocupantes e donos naturais destas terras e que o [...] fundamento do direito deles as terras esta baseado no 'indigenato', que nao e direito adquirido, e sim congenito" (10).

    O artigo 231, em seus paragrafos seguintes, tambem assegura a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas, solo, dos rios e dos lagos existentes ([section] 2.), bem como que tais terras sao inalienaveis e indisponiveis, e os direitos sobre elas imprescritiveis ([section] 4.). O paragrafo 5. veda a remocao dos Povos Indigenas de suas terras, salvo em situacoes de epidemias ou catastrofes que ponham o grupo em risco, garantindo em qualquer hipotese o retorno imediato tao logo o risco seja cessado. Por fim, o [section] 6. dispoe sobre a nulidade e extincao, sem producao de qualquer efeito juridico, de atos "que tenham por objeto a ocupacao, o dominio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploracao das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (11), ressalvados casos em que haja relevante interesse publico da Uniao.

    O artigo 232, por sua vez, assegura a capacidade plena processual e o ingresso em toda e qualquer demanda que envolva os indigenas e suas comunidades (direito de acao, contraditorio e ampla defesa), restando nula e discriminatoria decisoes que venham a impedir, excluir ou dificultar propositalmente tal exercicio de direitos. Essa mudanca de paradigma dialoga com o direito a autodeterminacao dos Povos, presente, por exemplo, na Declaracao das Nacoes Unidas sobre os Direitos dos Povos Indigenas, reforcando o entendimento de que os mesmos sao direitos fundamentais ius cogens, sem os quais diversas outras garantias inerentes a uma concepcao de vida digna nao poderiam se efetivar, especialmente a garantia ao territorio tradicional.

    Em relacao as demarcacoes de terras indigenas, o artigo 67 do Ato das Disposicoes Constitucionais Transitorias (ADCT), estipula que a Uniao deve conclui-las no prazo de cinco (05) anos a partir da data de promulgacao da Constituicao Federal, tendo esgotado, portanto, em 5 de outubro de 1993. Nos termos da Lei numero 6.001 de 1973 (Estatuto do Indio) e do Decreto n. 1775 de 1996 (12), artigo 2., as demarcacao sao, entao, de responsabilidade administrativa da Fundacao Nacional do Indio (FUNAI). De acordo com registros atuais do referido orgao federal, existem 736 (13) terras indigenas no Brasil, dividas entre as seguintes modalidades: reservas indigenas, terras indigenas tradicionalmente ocupadas, terras interditadas e terras dominiais (14).

    Entretanto, conforme o quadro abaixo e possivel verificar que diversas TIs consideradas de ocupacao tradicional nao estao devidamente regulamentadas, muitas das quais ainda nao avancaram significativamente em seu processo demarcatorio:

    Em referencia aos dados territoriais apresentados, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), afirma que a soma das referidas TIs, nas quais vivem 305 Povos, ocupariam aproximadamente 991.498 km2 de extensao no territorio nacional, que por sua vez e estimado em 851 milhoes de hectares (8.547.403,5 km2) (16). Tais dados revelam que alem de apenas 12,5% a 13% do territorio nacional ser destinado para os indigenas e suas comunidades, muitos desses territorios ainda se encontram em estagios iniciais de estudos. O IBGE tambem diagnosticou como um problema relevante e limitador ao tradicional uso do territorio, o fato de que grande parte dessas TIs sao afetadas pela presenca de invasores nao indigenas:

    Essas invasoes estao relacionadas a atividade agropecuaria, a exploracao mineral, a extracao madeireira e a construcao de rodovias e hidreletricas. O resultado disso e o afastamento...

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