Terceirização e sindicalismo: reflexões sobre o papel dos sindicatos e suas possibilidades de reação à transição pós-fordista

AutorFlávio Roberto Batista e Gustavo Seferian Scheffer Machado
Páginas67-74

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1. Introdução

O objetivo do presente ensaio é apresentar uma crítica do instituto da terceirização que ultrapasse a perspectiva meramente dogmática jurídica, avançando para reflexões acerca da interação entre o direito e a organização produtiva. Esse tratamento será feito à luz da repercussão da terceirização sobre o movimento sindical.

As consequências nefastas da terceirização têm sido apontadas por vários estudos quantitativos. Ganharam ampla circulação recentemente os números que indicam que os terceirizados trabalham, em média, 7,5% a mais em número de horas, em troca de uma remuneração 24,7% menor, apresentando ainda quase o dobro da rotatividade no emprego3. Os estudos quantitativos, entretanto, não revelam imediatamente as causas dessa maior precariedade das condições do trabalho terceirizado, embora apresentem bastante utilidade para excluir fatores irrelevantes para caracterizá-la, comparando as condições do trabalho terceirizado ao não terceirizado. O próprio estudo mencionado acima demonstra a falsidade de duas ideias bastante presentes no senso comum, indicando, a partir dos números coletados, que o desnível salarial entre terceirizados e contratados diretos não decorre do tamanho das empresas empregadoras e do nível de escolaridade4, mas não vai além disso. A discussão mais profunda dessas causas, evidentemente, passa por uma interpretação teórica sobre a realidade retratada nos números, e é nesse espaço que as ideias deste escrito se movimentarão.

Pretende-se colocar aqui duas hipóteses em discussão. A primeira hipótese, de índole mais ligada à dogmática jurídica, é a de que a estrutura do direito sindical brasileiro estabelece um modelo em que a terceirização da força de trabalho possibilita um esfacelamento da representação sindical no grupo de trabalhadores que se inserem no seio da cadeia produtiva e dos serviços públicos, separando os contratados diretos dos terceirizados, o que tem consequências imediatas nas condições de trabalho e no nível de remuneração, motivadas pela fragmentação política de suas organizações. Assim, o primeiro objetivo do ensaio é evidenciar as razões jurídicas pelas quais a diferente representação sindical pode explicar o desnível salarial e a deterioração de condições de trabalho do trabalhador terceirizado.

A segunda hipótese busca realizar uma interface entre direito e economia política à luz do estudo das transformações na organização produtiva. Nela, parte-se do fato de que a realidade da produção capitalista contemporânea passa, nos últimos quarenta anos, pelo processo conhecido como transição pós-fordista. A partir desse processo, a produção capitalista modifica sua relação com o sindicalismo em razão da ressignificação do papel do Estado na regulação das relações de trabalho. Nesse cenário, pretende-se demonstrar que a fragmentação das organizações sindicais é, em verdade, um objetivo primordial da terceirização, e não uma consequência secundária, como poderia parecer num primeiro e mais corriqueiro olhar, focado nas relações individuais de trabalho.

Pretende-se, com a demonstração dessas hipóteses, sustentar que é tarefa do movimento sindical organizado não apenas resistir às iniciativas empresariais, legislativas e judiciais no sentido da implementação irrestrita da terceirização, mas atuar, diante dos rearranjos na organização produtiva, junto aos trabalhadores terceirizados no sentido de ampliar sua representação para abarcar este grupo, buscando com isso minorar seus efeitos perversos na organização produtiva.

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2. A estrutura sindical brasileira e a representação dos trabalhadores terceirizados

A literatura especializada brasileira aponta a existência de duas formas diversas de organização do movimento sindical, chamadas, numa metáfora geométrica, de horizontal e vertical5. A modalidade de organização horizontal é aquela que agrupa os trabalhadores segundo sua atividade profissional, enquanto a modalidade de organização vertical congrega os trabalhadores de acordo com o ramo de atividade econômica praticada pelo empregador da força de trabalho, independentemente da atividade efetivamente desempenhada por cada trabalhador na empresa.

Assim, num modelo de organização horizontal, todos os prensistas, por exemplo, seriam representados pela mesma organização sindical, independentemente de exercerem seu mister numa indústria metalúrgica, química ou têxtil. De outro lado, num modelo de organização vertical, todos os empregados de uma indústria metalúrgica seriam representados pela mesma organização sindical, independentemente de operarem prensas, tornos ou aparelhos de solda, ou mesmo de serem trabalhadores de manutenção e limpeza.

No caso brasileiro, a leitura do artigo 511 da CLT e seus parágrafos não deixa dúvidas sobre o modelo adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro:

Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.

§ 1º. A solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem atividades idênticas, similares ou conexas, constitui o vínculo social básico que se denomina categoria econômica.

§ 2º. A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional.

§ 3º. Categoria profissional diferenciada é a que se forma dos empregados que exerçam profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares.

Fica evidente, portanto, que o critério de organização vertical é colocado prioritariamente em relação ao horizontal, que fica confinado à hipótese excepcional da categoria profissional diferenciada. Portanto, no modelo brasileiro de relações coletivas de trabalho, é o ramo de atividade econômica do empregador que definirá o âmbito de representação sindical dos trabalhadores, independentemente de sua atividade profissional.

Adverte-se que não se trata aqui de escrutinar as vantagens e desvantagens de cada um dos modelos. Esta advertência é relevante para esclarecer que o intuito, aqui, não é o de lançar uma crítica geral ao modelo vertical de organização sindical, que, inclusive, pode até se mostrar superior em termos organizativos do ponto de vista da negociação coletiva de trabalho no atual arranjo do modelo de produção capitalista, ainda que as perspectivas de unidade de classe – independentemente das balizas de um modelo vertical ou horizontal – se coloquem como o cenário mais desejado. Entretanto, constatado que o modelo brasileiro adota o sistema vertical como prioritário, cumpre observar as consequências dessa adoção perante o fenômeno da terceirização.

Mauricio Godinho Delgado define juridicamente a terceirização, muito acertadamente, como “fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente”6. Em outros termos, do ponto de vista estritamente jurídico, o empregador na relação jurídica de trabalho passa a ser empresa diversa do ente que efetivamente se beneficia do trabalho do empregado, o qual, evidentemente, é aquele que opera a cadeia produtiva ou a prestação de serviço público em que esta atividade profissional se insere. E terceirização pode assim ocorrer, dirá Márcio Tulio Vianna, em duas ocasiões: quando “a empresa leva para fora etapas de seu ciclo produtivo; ao passo que na outra traz para dentro trabalhadores alheios”7, ocasião última que se dá mormente na prestação de serviços.

Nesse cenário, a partir de um ponto de vista estritamente econômico, embora o trabalhador terceirizado e o trabalhador contratado diretamente concorram para o sucesso da mesma atividade econômica, se vista a cena pela lente jurídica, os empregadores desses dois grupos de trabalhadores praticam atividades econômicas distintas: o tomador de serviços desempenha a atividade econômica ligada

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à sua própria cadeia produtiva ou à prestação de serviço público, enquanto o empregador dos trabalhadores terceirizados ostentará como atividade econômica apenas a atividade de cessão da força de trabalho, genericamente designada como “prestação de serviços”8.

A dissociação entre o econômico e o jurídico, porém, não se instala em nosso ordenamento de forma totalizante desde um primeiro momento. Daí exsurgir do âmbito jurídico a perversa – ao menos sob os olhos dos trabalhadores – elaboração que por décadas motivou a escalada prática da terceirização: a distinção entre “atividades-fim” e “atividades-meio”, a justificar a possibilidade de terceirização das últimas. Esta cisão, elaborada por penas empresariais e consagrada na redação original da Súmula 331, III, do TST – que veio a fazer letra morta do então Enunciado 256, da mesma Corte, entendimento que se portava contrariamente à terceirização – intentou dar conteúdo material à distinção que se firmara apenas no âmbito jurídico-formal.

E bem dizer, pretende-se separar o que, na organicidade empresarial ou do serviço público, jamais poderia caminhar separado. Pressupor a existência de “atividade-fim” e “atividade-meio” em dado ramo de atividade econômica, levando à constatação de que certas atividades seriam indispensáveis e outras não à empresa, ou ao menos que as primeiras teriam maior importância para a consecução de sua finalidade social, é de todo falacioso9. Tal é a...

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