Terceirização nos serviços públicos

AutorPatrícia Pinheiro Silva
CargoBacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia
Páginas85-110

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1. Introdução

As cíclicas mudanças no modelo de produção não poderiam passar despercebidas pelos Estados do mundo inteiro.

De fato, o novo modelo de acumulação de capital, veio como resposta à Revolução Tecnológica e à velocidade das comunicações ensejada pela Globalização. Calcado na ideia de flexibilidade, o Toyotismo não tardaria a requerer modificações no papel exercido pelo Estado na economia.

Assim, embalados pelos ideais neoliberais, o Estado e a Administração Pública passaram por um forte processo de desestatização, que tem como um de seus expoentes a terceirização, instituto que será objeto deste trabalho.

Desta forma, o presente estudo terá por objetivo dirimir a problemática consubstanciada nos seguintes questionamentos: o que se entende por terceirização nos serviços públicos?
Quais os seus limites e consequências? Para tanto, realizaremos uma análise sistemática do ordenamento jurídico administrativo, constitucional e laboral, bem como buscaremos fontes doutrinárias e jurisprudenciais que tratam da matéria.

Cumpre observar que este artigo terá como foco a terceirização levada a cabo, especificamente, pelas pessoas jurídicas de Direito Público, tendo em vista que as empresas estatais exploradoras de atividade econômica encontram-se regida pelo Direito Privado, na forma do art. 173, CF, inclusive no que se refere à contratação de serviços.

2. Considerações sobre os serviços públicos

Inicialmente, mister se faz tecer algumas considerações acerca dos serviços públicos para, a partir daí, delimitar a possibilidade de utilização do instituto de terceirização na prestação desses serviços.

2.1. Delimitações conceituais

O conceito de serviço público foi elaborado e disseminado, inicialmente, na França, onde é utilizado para indicar amplamente todas as atividades estatais (JUSTEN FILHO, 2005,
p. 478).

No Brasil, contudo, tal acepção é utilizada como linguagem leiga. Nesse sentido, é frequente a utilização do termo “serviço” ou mesmo “serviço público” para designar tudo aquilo

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que o Estado faz, ou, pelo menos, toda atividade administrativa por ele desempenhada. Esta concepção ampla abrangeria, assim, serviços que, juridicamente, convencionou-se denominar como obras públicas, atividades típicas de “polícia administrativa” e, até mesmo, a exploração estatal de atividade econômica regida eminentemente pelo Direito Privado (neste último caso, adota-se o rótulo “serviço público industrial, comercial ou econômico”) (MELLO, 2010, p. 682).

Sobre o tema, esclarecedoras são as lições de Odete Medauar (2008. p. 313):

A expressão serviço público às vezes vem empregada em sentido muito amplo, para abranger toda e qualquer atividade realizada pela Administração pública, desde uma carimbada num requerimento, até o transporte coletivo. (...) No sentido amplo da expressão “serviço público” são englobadas também as atividades do Poder Judiciário e do Poder Legislativo (...). Evidente que aí a expressão não se reveste de sentido técnico, nem tais atividades sujeitam-se aos preceitos norteadores da atividade tecnicamente caracterizada como serviço público. (grifos da autora)

Entretanto, a amplitude conceitual está indissocialmente ligada à inutilidade do conceito, que perde, portanto, interesse jurídico. Isto porque um conceito amplo não consegue captar adequadamente as características e o regime jurídico aplicáveis ao instituto sob análise. Assim, inconveniências geradas pela utilização de um conceito excessivamente amplo de serviço público têm conduzido a doutrina a propor outros conceitos, agora mais restritos.

Na verdade, como bem ensina Eros Roberto Grau (2007. p. 111) “serviço público não é um conceito, mas uma noção, plena de historici-dade”. Citando Sartre, o autor elucida que, enquanto o conceito seria algo atemporal (2007, p. 134), a noção representa um “esforço sintético para produzir uma ideia que se desenvolve a si mesma por contradições e superações sucessivas e que é, pois, homogênea ao desenvolvimento das coisas” (2007, p. 135). Assim, a noção de serviço público deve ser resgatada na realidade social, em função das vicissitudes das relações entre as forças sociais, entre os interesses do capital e do trabalho (2007, p. 110).

Corroborando esta assertiva, também Hely Lopes Meirelles (2004, p. 320-321) entende que apenas é possível uma definição genérica de serviço público, não sendo possível a indicação das atividades que o constituem, porque estas variam segundo as exigências de cada povo e de cada época. Por isso, o que prevalece é a vontade soberana do Estado, qualificando o serviço como público ou de utilidade pública, para sua prestação direta ou indireta.

Trata-se, portanto, de noção ligada ao papel que, num determinado tempo, certa sociedade decidiu atribuir ao Estado na economia. Nessa linha, conclui Eros Roberto Grau (p. 136):

Serviço Público, assim, na noção que dele podemos enunciar é a atividade explícita ou supostamente definida pela Constituição como indispensável, em determinado momento histórico, à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social (Duguit) — ou, em outros termos, atividade explícita ou supostamente definida pela Constituição como serviço existencial relativamente à sociedade em um determinado momento histórico (Cirne Lima). Como se pode notar, Eros Grau restringe a noção de serviço público, ao excluir de seu âmbito de incidência as atividades econômicas em sentido estrito, cujo exercício apenas caberá ao Estado em caráter excepcional, nos termos do art. 173 da Constituição.

Contudo, a noção de serviço público é ainda mais limitada por Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p. 671):

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou de comodidade

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material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob regime de Direito Público — portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais —, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.

No mesmo sentido, Odete Medauar (2008,
p. 313) ensina que:
Serviço Público, como um capítulo do direito administrativo, diz respeito à atividade realizada no âmbito das atribuições da Administração, inserida no Executivo. E refere-se a atividade prestacional, em que o poder público propicia algo necessário à via coletiva, como, por exemplo, água, energia elétrica, transporte urbano. As atividades-meio (por exemplo: arrecadação de tributos, serviços de arquivo, limpeza de repartições, vigilância de repartições) não se incluem na acepção técnica de serviço público.

Apesar de a noção restrita de serviços públicos ser predominante na doutrina brasileira, no presente trabalho, valeremo-nos do seu sentido amplo, a fim de tratar da terceirização na Administração Pública como um todo. Isso porque, como bem salientado por Helder Santos Amorim (2009, p. 90-91), a interpretação constitucional sobre os limites da terceirização no interior de um ente ou órgão público independe da natureza de sua atividade principal, tendo em vista que este é sempre responsável na mesma medida pelo exercício de suas atribuições. Mais importante para a determinação dos limites da terceirização é a definição do regime jurídico a que se encontra submetido o ente público tomador de serviços terceirizados.

2.2. Níveis de gestão do serviço público

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005, p. 240-241), a partir das lições de Guglielmi, destaca os modos de gestão ou administração do serviço público, que compreende questões de organização, funcionamento e direção dos mesmos.

Destarte, distingue três funções:
a) Gestão estratégica: função mais elevada, que concerne à direção e estratégia do serviço público. Pertence, obrigatoriamente, a uma pessoa pública titular do serviço, a quem cabe a última palavra quanto à escolha dos objetivos; não se transfere nem mesmo pela concessão de serviço público. Neste ponto, Dora Ramos (2001. p. 119) destaca que a gestão estratégica abrange a competência para “criar e suprimir o serviço público; para escolher seu gestor operacional; para fixar os princípios de organização e de funcionamento expressos no caderno de encargos imposto ao gestionário; para controlar a observância desses princípios e sancionar as violações operadas”.
b) Gestão operacional: refere-se ao modo de funcionamento e a uma parte da organização, vale dizer concerne às tarefas correntes de regulação (assegura a continuidade, a logística, a resolução dos conflitos, as faltas e as urgências) e de otimização (envolve operações pelo melhor custo, bem como...

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