Terceirização em tempos de crise econômica: a questão da especialização do trabalhador como critério de (i)licitude

AutorFlávio Carvalho Monteiro de Andrade
Páginas281-291

Page 281

1. Terceirização na atualidade

Em 27.4.2015, foi remetido para o Senado Federal o Projeto de Lei n. 4.330/2004 aprovado na Câmara dos Deputados, que dispõe sobre o contrato de prestação de serviço a terceiros e as relações de trabalho dele decorrentes e, com isso, o fenômeno da terceirização passou a ser tema recorrente em debates acalorados no meio acadêmico e na sociedade de um modo geral.

O Projeto de Lei, que agora no Senado Federal tramita como Projeto de Lei Complementar n. 30/2015, trouxe muitas questões consideradas como polêmicas, tais como (mas não somente): a inclusão expressa da possibilidade de terceirização ampla na Administração Pública Direta e Indireta; a permissão de subcontratações gerando-se quarteirização; a possibilidade de terceirização permanente na qual o trabalhador terceirizado pode continuar prestando serviços ao mesmo tomador por intermédio de empresas diversas e sucessivas; a permissão da terceirização tanto em atividades-meio como em atividades-fim do tomador de serviços.

Com a celeuma instaurada com a aprovação do Projeto de Lei no Congresso Nacional, a terceirização e outros pontos de discussão e análise a ela inerentes foram colocados em foco.

Em geral, entendeu-se que o Projeto de Lei não foi avaliado pelo Congresso e pela sociedade civil com a cautela que o tema exige, tendo sido aprovado de forma apressada e atabalhoada.

Segundo Pochmann1, entre 1995 e 2005, no setor privado, "a terceirização terminou assumindo o principal posto de geração de novas ocupações no Brasil". Ele também regis-tra que as diferenças mais acentuadas entre terceirizados e contratados diretamente são relativas à remuneração. No ano de 2005, os trabalhadores terceirizados, em geral, recebiam apenas cerca de 2/3 da remuneração média dos empregados clássicos formais2.

Dados recentes revelam que a terceirização tem aumentado consideravelmente nos últimos anos no segmento privado.

Na esfera pública, as coisas não foram/são muito diferentes. Especificamente com relação ao fenômeno terceirizante no segmento público atualmente, Amorim3 descreve:

Nos últimos anos, esta prática espraiou-se por, praticamente, todos os órgãos e entes públicos brasileiros, em todas as esferas da federação, de suas atividades instrumentais mais elementares, como limpeza e conservação, para o centro de suas competências essenciais, como atividades administrativas próprias do fluxo de operações burocráticas, especialmente aquelas que dependem da tecnologia da informação (inserção e processamento de dados em sistemas informatizados), ao lado das outras diversas formas de contratações flexíveis, desvirtuadas dos seus objetivos legais

O fenômeno avança nas esferas pública e privada, como registra Gabriela Delgado4:

Não obstante o entendimento jurisprudencial que auto-riza terceirizações via atividade-meio, existem empresas, em número significativo, que terceirizam todo ou quase todo o processo produtivo, inclusive no que concerne às atividades-fim. A prática também demonstra que o setor público da economia vem executando terceirizações de

Page 282

atividade-fim, em real afronta ao Enunciado do TST, algumas vezes, ainda, com a peculiaridade do nepotismo.

Teixeira e Pelatieri5 também atestam a mesma realidade na seguinte passagem:

As ocupações à margem da modalidade padrão, que incluem trabalhadores assalariados sem carteira de trabalho no setor privado e público, assalariados terceirizados e autônomos que prestam serviço para uma só empresa, representaram, em 2007, cerca de 20% do total de contratados, sendo quem em São Paulo e Recife atingiram os maiores resultados 22,7% e Belo Horizonte o menor (16,8%). Ao somar os trabalhadores independentes (conta própria, pequenos empregadores e profissionais universitários autônomos) e os empregados domésticos (cerca de 8%) tem-se a outra metade dos ocupados.

Em síntese, o fenômeno da terceirização vem expandindo-se cada vez mais no País e ficou ainda mais em evidência desde a aprovação, em 2015, de Projeto de Lei sobre o tema perante a Câmara dos Deputados do Brasil. Muito tem-se discutido a respeito do assunto, em especial, chama a atenção polêmica levantada no referido Projeto de Lei com a permissão de terceirização inclusive das chamadas atividades-fim. Por isso, este artigo, com o uso de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, do tipo jurídico filosófico, busca contribuir com a temática, sob o viés constitucional do princípio da proteção do trabalhador, norma cardeal do Direito do Trabalho que se impõe cada vez mais relevante no contexto corrente de aumento da influência das teorias neoliberais que buscam flexibilizar direitos trabalhistas e sociais em prol da garantia da "estabilização (macro)econômica", avaliando alguns pontos sobre o fenômeno da terceirização na atualidade do Direito do Trabalho, destacando, em especial, uma questão que não tem sido contemplada nos debates mais frequentes sobre a matéria, qual seja, a questão da especialização do trabalhador nas relações de trabalho terceirizadas e como isso pode influenciar inclusive na discussão sobre os limites da licitude e da ilicitude dos procedimentos de terceirização de mão de obra.

2. Terceirização em retrospectiva

Com base nas lições de Delgado6, é possível afirmar-se que entre as principais medidas implementadas pelos ultraliberais para dar conta da famigerada crise econômica de 1970 esteve a construção de um Estado Mínimo, encarregado de induzir e garantir a "liberdade" do capital privado. Um Estado que permita e estimule a "livre"-iniciativa privada, garantida pela desregulamentação de atividades com algum cunho econômico.

Nesse ambiente da década de 1970, brotaram e difundiram-se, concomitantemente, os axiomas do toyotismo.

Iniciou-se o processo de horizontalização ou downsizing do empreendimento. A Ciência da Administração definiu que o foco das empresas deveria passar a ser exclusivamente aquilo que seria sua atividade-fim, ou finalística, criando-se uma divisão entre atividades-meio e atividades fim no âmbito empresarial. Os esforços devem concentrar-se em um único "objetivo principal" e todo o resto de atividades dever ser delegado a terceiros. Tudo isso torna a empresa enxuta, mais flexível, menos onerosa e, assim, mais lucrativa e mais competitiva em cenários diversos, inclusive de crise.

A combinação das políticas do neoliberalismo com os preceitos do toyotismo significou mais flexibilidade nas relações econômicas privadas, aí incluídas as trabalhistas. O processo produtivo torna-se cada vez mais maleável, cada vez mais adaptado às demandas incertas do mercado.

Os direitos trabalhistas também foram (e são) afetados por essa busca por flexibilidade. Para os ultraliberais/toyotistas, o Direito do Trabalho clássico aumenta em demasia os custos da produção. A respeito do tema, doutrina Delgado7:

Em meio a esse quadro, ganha prestígio a reestruturação das estratégias e modelos clássicos de gestão empresarial, em torno dos quais se construíram as normas justrabalhistas. Advoga-se em favor da descentralização administrativa e da radical repartição de competências interempresariais, cindindo-se matrizes tradicionais de atuação do Direito do Trabalho. É o que se passa, por exemplo, com a terceirização, cuja dificuldade de enfrentamento pelo ramo justrabalhista sempre foi marcante.

O "novo" mercado consumidor globalizado, mais abrangente que os protecionismos estatais, mostra-se altamente exigente, causando o aparecimento de uma produção deter-minada pelos níveis de demanda, na qual o labor humano, por corolário, fica restrito ao necessário. São exigidas maneiras cada vez mais flexíveis de contratação, gerando-se grande flutuação de mão de obra8.

No Estado de Bem-estar social a "empresa" adequava seus mecanismos de funcionamento e sua busca por lucro ao padrão então vigente de "emprego formal bilateral clássico". Depois da indigitada crise de tal modelo, o padrão de contratação é que passou a ser alterado, de modo a compatibilizar-se com as demandas do empreendimento. O propósito passou a se adaptar aos estoques e, com isso, à produção, de maneira geral, à necessidade do mercado, rompendo-se com o paradigma do Welfare State de produção uniforme em escala de bens de longa durabilidade, emprego formal bilateral (com contratos de longa duração) e consumo em escala.

Segundo expõe Viana9, a "empresa joga para as suas ‘parceiras’ algumas das - ou mesmo ‘todas as’ - etapas de seu ciclo produtivo, ‘enxugando-se’".

Page 283

Para reduzirem-se gastos com mão de obra (trabalhistas), a relação econômica de trabalho foi dissociada da relação justrabalhista, que lhe seria correspondente10.

Assim, Pondera Delgado11:

Essa dissociação entre relação econômica de trabalho (firmada com a empresa tomadora) e relação jurídica empregatícia (firmada com a empresa terceirizante) traz graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o Direito do Trabalho ao longo de sua história.

Nesse norte, aponta Silva12:

Assim, a tendência histórica de incorporação dos trabalhadores ao mercado assalariado formal se reverteu e, a partir da reestruturação produtiva das empresas, houve um incremento na utilização de mão-de-obra sem a cobertura dos direitos trabalhistas. [...] Ao externalizar etapas da produção, as empresas passam a ter uma relação de prestação de serviços e não mais uma relação de prestação de serviços e não mais uma relação de trabalho com quem executa estas demandas. O trabalho terceirizado escapa à tipificação jurídica que identifica uma relação de subordinação, descaracterizando a relação de trabalho e o vínculo empregatício.

Enfim, a partir da crise de 1970 (ou a crise da relação de...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT