Terceirização da atividade-fim: reflexões acerca do conceito de empresa e de empresário à luz da normativa constitucional

AutorGabriela Varella de Oliveira e Phelippe Henrique Cordeiro Garcia
Páginas108-115

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1. Introdução

A temática da terceirização de mão de obra e suas implicações é velha conhecida no bojo das discussões políticas e jurídicas. Há muito este tema é colocado como objeto de debates.

Geralmente, a discussão envolve, de um lado, aqueles que apoiam a terceirização sob o argumento de que aumenta a eficiência produtiva, a geração de lucro e os empregos e, de outro, aqueles que são contrários e costumam ressaltar que há evidente precarização do trabalho, além de diversos outros malefícios para a classe trabalhadora.

No entanto, a par de toda essa discussão – que, inegavelmente, preserva sua importância -, o presente estudo tem por escopo dar um ponto de partida para reflexão acerca da própria noção de algo elementar quando se trata de terceirização do trabalho: o conceito de empresa e de empresário.

Nesta toada, a posição da doutrina tradicional, grosso modo, tem definido empresa3 como organização de capital e trabalho, teleologicamente orientada a uma finalidade, a uma atividade (fim). Diante da apresentação desse conceito, torna-se impossível deixar de se questionar se a empresa que terceiriza a atividade-fim ou que não tenha empregados conserva a qualidade de empresa, e, ainda, caso não conserve, qual seria sua natureza jurídica.

Assim, o que se pretende neste trabalho é repensar a noção de empresa e empresário a partir de uma leitura constitucional e, em especial, a partir da noção de função social da propriedade, da qual deriva a função social da empresa.

Para tanto, é necessário um breve resgate histórico, objetivando-se compreender o momento histórico – e econômico – e as causas que levam à discussão jurídica acerca da terceirização.

2. Breve resgate histórico da terceirização de mão de obra no Brasil

A crise capitalista ocorrida na década de 1970, na Europa Ocidental, ocasionou transformações no que diz respeito às relações de trabalho. Dentre elas, destaca-se o surgimento de um novo modelo de produção, a partir do paradigma do Estado neoliberal, qual seja,o modelo toyotista.

Esse modelo de organização da produção se caracteriza pela especialização flexível, capaz de atender às múltiplas demandas de um mercado segmentado, no qual a hierarquização fordista/taylorista se mostrava ineficaz. Adotando-se o

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toyotismo, a empresa hierarquizada passa a ser organizada de forma horizontal, e as atividades são centralizadas no objetivo principal da empresa, ou seja, sua atividade-fim, aglomerando-se à sua volta prestadoras de serviço que se ocupam das atividades-meio.Nesse sentido, ensina Mauricio Godinho Delgado:

(...) o toyotismo propõe a subcontratação de empresas a fim de delegar a estas tarefas instrumentais ao produto final da empresa polo. Passa-se a defender, então, a ideia de empresa enxuta, disposta a concentrar em si apenas as atividades essenciais a seu objetivo principal, repassando para as empresas menores, suas subcontratadas, o cumprimento das demais atividades necessárias à obtenção do produto final almejado.4

Nesse contexto, nasce a terceirização de mão de obra.

Voltando-se ao cenário nacional, em uma perspectiva de flexibilização da legislação trabalhista, vinculada à política neoliberal de redução de custos relativos à mão de obra com a finalidade de aumento dos lucros, o Brasil incorporou, paula-tinamente, a terceirização em seu aparato normativo.

Os primeiros delineamentos da legislação brasileira sobre a terceirização em âmbito privado nascem na década de 1960, tratando da possibilidade de contratação para a prestação de serviços em relação à segurança bancária5.

Em seguida, com a criação do contrato temporário de trabalho– disciplinado pela Lei n. 6.019 de 1974 – passam a existir possibilidades mais amplas de permissão de terceirização, pois esse tipo de contratação deve ocorrer por meio de empresa prestadora de serviços que tenha como finalidade disponibilizar mão de obra temporária6, assim, regulamentar trabalho temporário também pode ser enten-dido como regulamentar terceirização de mão de obra.

Posteriormente, em 1983, foi promulgada a Lei n.
7.102, a fim de regular a segurança para estabelecimentos financeiros, instituindo normas para constituição e funcionamento das empresas particulares terceirizadas que exploram serviços de vigilância e de transporte de valores. Essa lei possibilitou, ainda, a terceirização permanente dos serviços de vigilância.7 Em 1994, com as modificações trazidas pela Lei n. 8.863/1994, criou-se a possibilidade de prestação de serviços de segurança privada a pessoas, estabelecimentos comerciais, industriais, entidades sem fins lucrativos, além de residências e empresas públicas.

No âmbito público as possibilidades de terceirização também são, aos poucos, adotadas. Em 1967 é promulgado o Decreto-lei n. 200, a fim de regular a terceirização. No § 7º do artigo 10 do referido decreto, é disciplinado que “o próprio Estado adotou o sistema terceirizado, enfatizando a prática da descentralização administrativa no tocante à operacionalização de tarefas meramente executivas”.8 Houve, ainda, a edição do Decreto n. 2.271 de 1997, que disciplinou a contratação de serviços pela Administração Pública.

Diante do exposto, tem-se que o fenômeno da terceirização não surge como uma novidade desafiadora para o nosso ordenamento jurídico, como um fato social ao qual legisladores e demais operadores do direito precisaram adaptar-se às pressas para garantir a funcionalidade das relações de trabalho. Buscou-se a legitimação da intermediação da mão de obra por meio de sucessivas brechas na legislação – primeiro pelo Estado, buscando economizar seus recursos na prestação de serviços, e depois pelas instituições financeiras, dotadas de enorme força política –, e pela via jurisprudencial.9

Em 31 de março de 2017 foi sancionada a Lei n. 13.429, que dispõe acerca da nova regulamentação do trabalho temporário e do trabalho urbano terceirizado.

Até então, havia escassa legislação específica quanto à terceirização propriamente, sendo tida como base da regulamentação jurisprudencial a Súmula n. 331 do Tribunal Superior do Trabalho10. A nova lei acarretará diversos retrocessos para os trabalhadores, tendo em vista que

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amplia as possibilidades de terceirização, uma das faces da precarização do trabalho.

A principal modificação advinda da nova regulamentação, no que diz respeito à terceirização, é a possibilidade de terceirizar atividades-fim executadas pela empresa toma-dora de serviços (Art.9º, §3), até então só permitida para a execução de atividades-meio, ou seja, funções secundárias, não ligadas ao objetivo principal da empresa, tais como serviços de limpeza e manutenção. Ademais, a nova lei não impõe restrições à disposição de mão de obra terceirizada pela Administração Pública para execução de atividades-fim e permite a quarteirização e a cadeia de subcontratação (Art. 4º-A, §1), de forma que a subcontratação de outras prestadoras de serviço pela empresa prestadora de serviço, o que dificulta a fiscalização do cumprimento de obrigações fiscais e previdenciárias, somando-se ao agravante de que, quanto mais se distancia o empregado do tomador de serviços, maior a precarização do trabalho.

Ainda, o texto da Lei n. 13.429/2017 permite a ampliação do uso do trabalho temporário, eliminando seu caráter de contratação para situações extraordinárias, além de modificar o tempo máximo de contratação de trabalhadores temporários, que passa de 90 dias para 180 dias, prorrogáveis por mais 90 (Art.10, §1 e §2).Por fim, cabe ressaltar que a nova lei substitui a responsabilidade solidária da empresa tomadora de serviços pela responsabilidade subsidiária, retirando garantias do trabalhador.

Nesta perspectiva de retrocessos, a Reforma Trabalhista de 2017 – Lei n. 13.467 de 13 de julho de 2017 – alterou a Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, reafirmando a possibilidade de terceirização de qualquer atividade – inclusive atividades-fim. Entre outros retrocessos, a Reforma de 2017 deixa a cargo da prestadora e da tomadora de serviços a possibilidade de igualar os salários dos empregados de ambas, desconsiderando que há desigualdade na relação de emprego, negando o conflito entre capital e trabalho, e, sobretudo, desconsiderando os princípios do ordenamento jurídico trabalhista.

É notável, portanto, que a regulamentação jurídica, no que diz respeito à terceirização, tem seguido os anseios do mercado, chancelando os retrocessos no que diz respeito à precarização do trabalho.

Observe-se, no entanto, que a terceirização da atividade-fim foi permitida sem questionar se o modelo de empresa que terceiriza toda a mão de obra utilizada se encaixa nos moldes do conceito de empresa.

3. O conceito de empresa e de empresário no Brasil

No capítulo inaugural, ligeiramente se conceituou empresa como organização de capital e trabalho orientada a uma finalidade, a uma atividade-fim.

A partir daqui, o escopo é se debruçar mais detidamente sobre os conceitos tradicionais de empresa, bem como sobre o conceito apresentado pelo Código Civil Brasileiro e sobre as noções mais modernas desse instituto.

Dando-se início pela noção do Código Civil, tem-se o artigo 966, que estatui o seguinte:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Em contraposição ao modelo francês, a opção do Código Civil Brasileiro utiliza o mesmo critério do Codice Civile italiano, de modo que apenas definiu o empresário11, sendo empresa a atividade desenvolvida por ele12.

Se é verdade que o Direito Empresarial se preocupa com a organização...

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