A terceirização da atividade-fim como fraude e inconstitucionalidade no Brasil

AutorLawrence Estivalet de Mello e Maria Vitória Costaldello Ferreira
Páginas82-93

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1. Introdução

O ano de 2017 entra para a história como aquele em que retrocedemos cerca de 60 ou 75 anos em termos de legislação social, a depender da referência utilizada3, não sem fortes turbulências sociais, por parte de movimentos populares e sindicais, nem desacompanhado da ameaça contramajoritária, representada pela Constituição Federal, ou dos danos colaterais da insegurança jurídica, protagonizados pela crítica do direito, na academia e nos Tribunais. É muito cedo, ainda, para decretar o silêncio dos vencidos. A resistência dos movimentos, com maior ênfase, mas também a ameaça da Constituição e a atividade crítica dos juristas demonstram que, também para o campo oposto ao do trabalho, “problemas não se resolvem por decreto”, como dizia Leminski4.Ciente do tamanho do perigo que a ampliação da terceirização significava, Ruy Braga alertava em 2015: “Eu diria que, se esse projeto se tornar lei, será a maior derrota popular desde o golpe de 64 e o maior retrocesso em leis trabalhistas desde que o FGTS foi criado, em 1966. Essa é a grande derrota dos trabalhadores nos últimos anos”5. Eis que se tornou (Lei n. 13.429/2017, que alterou a Lei n. 6.019/1974) e, meses depois, foi promulgada uma significativa contrarreforma trabalhista (Lei n. 13.467/2017) que a aprofundou. Quais os sentidos desses ataques, do ponto de vista da estruturação do mundo do trabalho, à democracia blindada6 ou domesticada7 brasileira?

Viana, em texto de 2012, ao refletir sobre as formas de enfrentamento da terceirização, tratou da possibilidade teórica de liberação de toda e qualquer forma de terceirização, concluindo que essa solução seria a pior possível:

Uma primeira possibilidade teórica seria a de eliminar, pura e simplesmente, o critério adotado pela Súmula, que proíbe as terceirizações nas atividades-fim (salvo o caso do trabalho temporário, previsto em lei). Em consequência, toda e qualquer terceirização se tornaria possível. Os abusos seriam resolvidos caso a caso.

Ora, essa escolha não seria reprovável apenas em termos políticos ou de conveniência, mas no sentido jurídico – pois romperia com princípios elementares do Direito do Trabalho e do Direito em geral, transformando em regra as exceções hoje admitidas8.

A linha de raciocínio adotada apresenta que a extensão da terceirização viola os princípios mais básicos do ordenamento jurídico. Como se sabe, no rol normativo constitucional de proteção ao trabalho, encontram-se os valores sociais do trabalho como fundamentos da República (CR, art. 1º, IV), a valorização do trabalho humano como fundamento da ordem econômica (CR, art. 170, caput), o prima-do do trabalho como base da ordem social (CR, art. 193) e a relação de emprego como matriz jurídico-institucional do Direito do Trabalho (CR, art. 7º, I).

Assim, com o objetivo geral de demonstrar como a Lei n. 13.429/2017 representa fraude e inconstitucionalidade à ordem objetiva de proteção ao trabalho contida na Constituição da República Federativa do

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Brasil, realizam-se três movimentos de aproximação ao objeto de pesquisa. No primeiro, apresentam-se diferentes sentidos da precarização do trabalho no Brasil, relacionando-os à terceirização. No segundo, analisam-se aspectos da história da regulamentação da terceirização do trabalho em nosso país e seus impactos sobre as condições de trabalho e de vida dos assalariados. No terceiro, enfim, apresenta-se análise da lei propriamente dita, para defender sua tendência à fraude das relações de emprego e sua inconstitucionalidade.

2. Interpretações da precarização do trabalho no Brasil

Nossa investigação da primeira seção tem por objetivo oferecer um breve panorama dos sentidos e cenários da precarização do trabalho no Brasil. Compreender as características do Brasil, como país subdesenvolvido e de economia dependente, revela o horizonte de sentidos possíveis para o movimento mais geral que analisaremos, qual seja, o de avanço do capital sobre o trabalho, na ampliação da terceirização do Brasil.

Já na década de 1980, estudos de Paul Singer informavam que 63% da classe trabalhadora brasileira era composta, naquela época, pelo “subproletariado”9. Isso porque, dos 29,5 milhões de trabalhadores existentes no Brasil, 18,6 milhões faziam parte da fração subproletária da classe. Dos outros participantes da população economicamente ativa (PEA), 8 milhões seriam pequeno-burgueses e 1,3 milhão burgueses. Em outras palavras, o subproletariado constituía 48% da PEA10.

Quase a metade da população economicamente ativa e mais da metade dos trabalhadores brasileiros eram precários, portanto, no sentido de pessoas que vendiam sua força de trabalho sem receber contraprestação suficiente à aquisição de seus meios de sobrevivência ou, se preferirmos, meios de reprodução da sua força de trabalho. É justamente nessa época que se caracteriza o momento da acumulação flexível, no entendimento de David Harvey. O autor diferencia dois momentos do capitalismo recente.

Um primeiro, entre 1945 e 1973, correspondeu ao período de amadurecimento do fordismo como regime de acumulação, com taxas fortes e relativamente estáveis de crescimento econômico, elevação dos padrões de vida da população, contenção da tendência a crises, preservação da democracia de massa; nesse período, também, a ameaça de guerras intercapitalistas foi tornada remota. Trata-se de um período de compromissos e reposicionamentos entre classes e Estado, que levou a um equilíbrio de poder, “tenso mas mesmo assim firme”11.

Nos anos 1960, no entanto, houve indícios de problemas sérios para o fordismo, cuja principal causa foi a recuperação da Europa Ocidental e do Japão, pois “seu mercado interno estava saturado e o impulso para criar mercados de exportação para os seus excedentes tinha de começar”12. Esta foi a origem da guerra à pobreza nos EUA, da guerra do Vietnã, da política de substituição de importações em países subdesenvolvidos e, consequentemente, da intensificação da competição internacional. Como afirma Harvey:

De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho. (...) E toda tentativa de superar esses problemas de rigidez encontrava a força aparentemente invencível do poder profundamente entrincheirado da casse trabalhadora – o que explica as ondas de greve e os problemas trabalhistas do período 1968-197213.

É exatamente a necessidade de superação da ”rigidez” que leva ao segundo momento do capitalismo analisado por Harvey, que ele denomina de ”acumulação flexível”14, cujo principal apoio é a “flexibilidade dos processos de

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trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo”15. Exige-se, com ela, uma radical reestruturação do mundo do trabalho. Do lado dos empresários, destacam-se uma forte volatilidade do mercado, o aumento da competição e o estreitamento das margens de lucro; do lado dos trabalhadores, o enfraquecimento do poder sindical e uma grande quantidade de mão de obra excedente (desempregados ou subempregados). O resultado, assim, é a criação de novos regimes de trabalho e de contratos de trabalho mais flexíveis16.

Harvey segue os estudos do Flexible Patterns of Work (1986), segundo os quais a estrutura do mundo do trabalho no regime de acumulação flexível é composta por três camadas: (i) um grupo central (mercado de trabalho primário, caracterizado pela flexibilidade funcional), que se compõe de empregados “em tempo integral, condição permanente e posição essencial para o futuro de longo prazo da organização”17, (ii) dois grupos periféricos, quais sejam, o mercado de trabalho secundário18 (caracterizado pela flexibilidade numérica) e os contratos de curto prazo, recrutamento adiado, partilha de trabalho, trabalho em tempo parcial etc.19, (iii) para por fim destacar os grupos mais “externos”, divididos em quatro categorias: (a) subcontratados, (b) autônomos, (c) agências de temporários e (d) aumento dos deslocamentos.

Ricardo Antunes refere-se a este mesmo período, baseando-se na caracterização de István Mészáros sobre o período histórico de crise estrutural do capital20, para apresentar uma análise da precarização do trabalho. Recupera, então, o conceito de operários hifenizados, do sociólogo inglês Huw Beyon, para se referir a trabalhadores em trabalho-parcial, trabalho-precário, trabalho-por-tempo, por-hora. São esses, para ele com a mesma palavra utilizada por Paul Singer, o subproletariado21. O conceito de subproletariado, no entanto, é sensivelmente diferente, devendo ser compreendido como ”o proletariado precarizado no que diz respeito às suas condições de trabalho e desprovido dos direitos mínimos do trabalho”22. Isto é: nem se analisa se os direitos do trabalho são suficientes à reprodução da força de trabalho; afirma-se que sequer isso é possível ao subproletário. Subproletário poderia ser, então, aquele que tem subtraídos ou expropriados seus direitos individuais e coletivos do trabalhador, por exemplo pela ampliação da terceirização.

Esse cenário é plenamente compatível com os dados da OIT, segundo os quais ”mais de 1 bilhão de homens e mulheres que trabalham estão ou precarizados, subempregados “ os trabalhadores que o capital usa como...

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