A terceirização como consequência de um complexo processo de dilapidação de garantias sociais: uma abordagem com base no contexto histórico do fenômeno

AutorJuliana Teixeira Esteves e André Torquato
Páginas43-50

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1. Introdução

Desde o final dos anos 1960 e especialmente do início da década de 1970, o cenário socioeconômico global vem sofrendo profundas transformações. Inicia-se uma nova fase do capitalismo, no qual o modelo fordista perde espaço para o modelo de acumulação flexível, enfraquecendo as políticas estatais de cunho keynesiano, características do Estado Social.

Trata-se de um processo de transição entre Moderni-dade e Pós-modernidade, marcado pela crescente inter-dependência entre os Estados, pela desindustrialização, e pela supremacia do capital financeiro sobre o capital produtivo.3 Esses fenômenos têm como consequências a desertificação dos postos de trabalho tradicionais, o crescimento do desemprego estrutural e a dificuldade de resolução dos novos conflitos trabalhistas através das clássicas instâncias estatais.4

Além disso, o fenômeno da globalização acirra a concorrência comercial em dimensão planetária. Dessa forma, as grandes empresas, visando reduzir custos operacionais para manter a competitividade, reduzem seu quadro de trabalhadores permanentes com contratos individuais de trabalho por tempo indeterminado nos moldes clássicos do Direito do Trabalho.5 Assim, além de se utilizarem das novas tecnologias em substituição ao trabalho humano, as empresas lançam mão de novas formas de contratação, tais como os pactos de curta duração e a terceirização da prestação dos serviços.6

Desenvolvida em meio a esse cenário global, a terceirização consiste basicamente na contratação de terceiros para executar os serviços relacionados às atividades desempenhadas pelo tomador. Há registros de que o termo em questão tenha começado a ser empregado na linguagem empresarial em meados da década de 80,7 época em que a prática começou a ganhar cada vez mais espaço, especialmente diante dos avanços das políticas neoliberais.

No presente artigo, faz-se inicialmente uma breve aná-lise da história recente do capitalismo, sobretudo a partir do final da década de 1960, destacando a ascensão da ideologia neoliberal e as profundas alterações no cenário geopolítico e socioeconômico mundial.

Em seguida, será demonstrado que tais mudanças significaram o abandono das políticas econômicas estatais típicas do Estado de Bem-estar Social, permitindo-se uma verdadeira ofensiva às conquistas sociais do pós-guerra, cujos efeitos mais nítidos se verificam no âmbito da seguridade social e das relações de trabalho.

Por fim, far-se-á a identificação do instituto da terceirização de mão de obra como sendo mais um artifício político-ideológico característico dessa fase neoliberal, cujo objetivo é possibilitar a flexibilização das relações laborais e ampliar assim a subordinação da força de trabalho ao capital.

Dessa forma, a terceirização será analisada não como a causa, mas sim como mais uma consequência nefasta de um paulatino processo de dilapidação dos sistemas de proteção social, cujo fundamento teórico é a ideologia neoliberal.

2. As transformações no mundo capitalista: globalização e neoliberalismo

Durante a segunda metade do século XX, sobretudo a partir do final da década de 1960, a economia política da sociedade capitalista passou por inúmeras transformações, as quais se refletem nas novas configurações geopolíticas, em novas práticas de Estado, bem como em mudanças nos hábitos de consumo.

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As inovações tecnológicas oriundas desse momento histórico, especialmente a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte redundaram, conforme ressalta o professor Everaldo Gaspar Lopes de Andrade, numa verdadeira “compressão do tempo-espaço”.8

Analisando esse cenário, David Harvey destaca a substituição do fordismo pelo modelo de acumulação flexível.9

O autor aponta a rigidez do modelo fordista como a principal razão de seu fracasso e se refere à crise do petróleo de 1973 como marco paradigmático dessa passagem.10

A produção de bens imateriais, como serviços, símbolos, informações e valores, gradativamente substitui a produção em larga escala de bens materiais, característica essencial do capitalismo fordista da sociedade industrial.

Nesse contexto, conforme expõe de Masi,11 o trabalho manual no interior das indústrias, desvalorizado diante das novas tecnologias, paulatinamente dá lugar ao trabalho intelectual e criativo; além disso, as novas relações de trabalho, com os avanços na tecnologia da informação, passam a se desenvolver em dimensão transnacional.

Por seu turno, a substituição da força de trabalho pela reprodução automatizada gera superprodução em escala global, reduzindo o valor das mercadorias finais e, consequentemente, a taxa média de lucros. Significa dizer que a mais-valia total produzida não trouxe a rentabilidade esperada.12

Ocorre, assim, uma fuga dos investimentos do setor produtivo para o setor especulativo, de modo que o mercado financeiro se torna o principal palco de circulação do capital. Trata-se da forma mais abstrata de acumulação de riqueza, totalmente desvinculada da produção material.

Conforme explica Chesnais,13 por meio do capital portador de juros, busca-se o lucro sem que seja necessário sair da esfera financeira, sob a forma de juros de empréstimos, de dividendos ou de quaisquer pagamentos recebidos apenas em razão da posse de ações.

Nesse cenário, os avanços na tecnologia da informação desempenham um papel fundamental, agilizando as transações de ativos no sistema financeiro e assim contribuindo para o fortalecimento desse setor.

O deslocamento de recursos para aplicações especulativas, de acordo com Aglietta,14 desfavorece o crescimento econômico. Na medida em que as empresas se sentem desencorajadas a investir em inovação e produtividade, não há geração de emprego.

Concentrando as rendas que não foram reinvestidas em produção e nem consumidas, as instituições financeiras, em especial as não bancárias,15 se tornam poderosas credoras internacionais e passam a impor aos Estados a desregulamentação cada vez maior dos mercados.

De acordo com Dominique Plihon:

Com o peso crescente da dívida, os tesouros públicos nacionais não podiam mais contar exclusivamente com os investidores nacionais. Era necessário apelar aos investidores internacionais, em particular aos investidores institucionais, para que adquirissem títulos públicos nacionais. É desse modo que, no início, as autoridades públicas liberalizaram e modernizaram os sistemas financeiros para satisfazer suas próprias necessidades de financiamento.16

Aos poucos, o neoliberalismo passou a ser implantado nos países capitalistas centrais como política de Estado. É o que se verificou na Inglaterra na década de 80. Sob o governo de Margareth Thatcher, o parque produtivo inglês passou por profundas modificações, com redução das empresas estatais, retração do setor industrial e expansão do setor de serviços privados.17

Nos EUA, as políticas neoliberais foram capitaneadas por Ronald Reagan, em cujo governo o macartismo da guerra fria foi reintroduzido. Com base no discurso de combate aos “inimigos” da liberdade, Reagan retomou a

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corrida armamentista, investindo pesadamente no setor bélico sob o pretexto de gerar empregos e manter a liderança militar norte-americana.18

Com o declínio da União Soviética e a queda do muro de Berlim em 1989, o neoliberalismo encontrou terreno ainda mais fértil para legitimar-se. Sem o contraponto representado pelo modelo soviético, o capitalismo podia avançar sem a necessidade de manutenção do estado de bem-estar social.19

No Brasil, conforme observado pela professora Juliana Esteves, a Constituição Federal de 1988, contrariando a guinada liberal ocorrida nos países capitalistas centrais, ainda buscou consagrar um sistema de proteção social nos moldes do Welfare state, especialmente no capítulo destinado à seguridade social, no qual se prevê uma vasta rede para financiamento dos benefícios.20

Entretanto, conforme destaca a autora, o cenário internacional, já amplamente dominado pelo capitalismo financeiro, acabou impondo também ao Brasil a adoção de políticas liberalizantes, como a privatização de empresas estatais, a elevação das taxas de juros para estimular a entrada de capital estrangeiro e o redirecionamento de receitas da seguridade social para custear o pagamento de juros e amortizações da dívida pública.21

É, portanto, inegável que as últimas décadas do século XX e as primeiras do século XXI vêm sendo marcadas por profundas alterações no modo de produção capitalista, sobretudo com a globalização, a supremacia do capital financeiro e a brutal redução do papel do Estado na economia.

3. O declínio do Welfare State e o fim das garantias sociais

Diante da mundialização financeira,22 as políticas keynesianas se mostraram insuficientes para conter as injustiças sociais. Em sua expansão global, o capitalismo já não é capaz de conviver com as medidas do Estado Social do pós-guerra. Para que as margens de lucro se mantenham crescentes, as políticas de flexibilização e desregulamentação se tornam imperativas.

É interessante registrar que a necessidade capitalista de constante expansão no globo terrestre já fora prevista por Marx e Engels. Conforme os autores alertaram, a burguesia precisa de um mercado em constante expansão, dando forma cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países.23

Segundo Evilasio Salvador:

O quadro revela as limitações das políticas keynesianas diante da internacionalização do capital, com sinais de esgotamento do padrão de financiamento das políticas sociais e a reação do capital à queda das taxas de lucro, na sua sanha pela acumulação e, portanto, por superlucros. Os capitalistas se armam para revogar as conquistas sociais do pacto...

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