Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo)

AutorProf.Luis Roberto Barroso
CargoProf.Luis Roberto Barroso Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ. Mestre em Direito pela Yale Law School. Advogado no Rio de Janeiro.
Páginas1-32

Sou grato à acadêmica Débora Cagy por seu valioso auxílio na pesquisa e na organização dos materiais. E aos colegas Ana Paula de Barcellos, Nelson Nascimento Diz e Luís Eduardo Barbosa Moreira pelas críticas e sugestões apresentadas.

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Capítulo I Pré-compreensão do tema
I A pós-modernidade e o direito

Planeta Terra. Início do sécul1 o XXI. Ainda sem contato com outros mundos habitados. Entre luz e sombra, descortina-se a pós-modernidade. 1O rótulo genérico abriga a mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo. O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, póskelseniana, pós-freudiana2.

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Brasil. 2001. Ano 13 da Constituição de 1988. Sem superstições. O constitucionalismo vive um momento sem precedentes, de vertiginosa ascensão científica e política. O estudo que se vai desenvolver procura investigar os antecedentes teóricos e filosóficos desse novo direito constitucional, identificar seus principais adversários e acenar com algumas idéias para o presente e para o futuro. Antes de avançar, traçam-se algumas notas introdutórias para situar o leitor. A interpretação dos fenômenos políticos e jurídicos não é um exercício abstrato de busca de verdades universais e atemporais. Toda interpretação é produto de uma época, de um momento histórico, e envolve os fatos a serem enquadrados, o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e o imaginário de cada um. A identificação do cenário, dos atores, das forças materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina de pré-compreensão3.

A paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, vive-se a decadência do conceito tradicional de soberania. As fronteiras rígidas cederam à formação de grandes blocos políticos e econômicos, à intensificação do movimento de pessoas e mercadorias e, mais recentemente, ao fetiche da Page 3 circulação de capitais. A globalização, como conceito e como símbolo, é a manchete que anuncia a chegada do novo século. A desigualdade ofusca as conquistas da civilização e é potencializada por uma ordem mundial fundada no desequilíbrio das relações de poder político e econômico e no controle absoluto, pelo países ricos, dos órgãos multilaterais de finanças e comércio.

No campo econômico e social, tem-se assistido ao avanço vertiginoso da ciência e da tecnologia, com a expansão dos domínios da informática e da rede mundial de computadores e com as promessas e questionamentos éticos da engenharia genética4. A obsessão da eficiência tem elevado a exigência de escolaridade, especialização e produtividade, acirrando a competição no mercado de trabalho e ampliando a exclusão social dos que não são competitivos porque não podem ser. O Estado já não cuida de miudezas como pessoas, seus projetos e sonhos, e abandonou o discurso igualitário ou emancipatório. O desemprego, o sub-emprego e a informalidade tornam as ruas lugares tristes e inseguros.

Na política, consuma-se a desconstrução do Estado tradicional, duramente questionado na sua capacidade de agente do progresso e da justiça social. As causas se acumularam impressentidas, uma conspiração: a onda conservadora nos Estados Unidos (Reagan, Bush) e na Europa (Thatcher) na década de 80; o colapso da experiência socialista, um sonho desfeito em autoritarismo, burocracia e pobreza; e o fiasco das ditaduras sul-americanas, com seu modelo estatizante e violento, devastado pelo insucesso e pela crise social. Quando a noite baixou, o espaço privado invadira o espaço público, o público dissociara-se do estatal e a desestatização virara um dogma. O Estado passou a ser o guardião do lucro e da competitividade.

No direito, a temática já não é a liberdade individual e seus limites, como no Estado liberal; ou a intervenção estatal e seus limites, como no welfare state. Liberdade e igualdade já não são os ícones da temporada. A própria lei caiu no desprestígio. No direito público, a nova onda é a governabilidade. Falase em desconstitucionalização, delegificação, desregulamentação. No direito privado, o código civil perde sua centralidade, superado por múltiplos microssistemas. Nas relações comerciais revive-se a lex mercatoria5. A segurança jurídica - e seus conceitos essenciais, como o direito adquirido - Page 4 sofre o sobressalto da velocidade, do imediatismo e das interpretações pragmáticas, embaladas pela ameaça do horror econômico. As fórmulas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as respostas. O paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para a melhor solução, singular ao problema a ser resolvido.

Seria possível seguir adiante, indefinidamente, identificando outras singularidades dos tempos atuais. Mas o objeto específico do presente estudo, assim como circunstâncias de tempo e de espaço, recomendam não prosseguir com a apresentação analítica das complexidades e perplexidades desse início de era. Cumpre dar desfecho a este tópico6.

O discurso acerca do Estado atravessou, ao longo do século XX, três fases distintas: a pré-modernidade (ou Estado liberal), a modernidade (ou Estado social) e a pós-modernidade (ou Estado neo-liberal). A constatação invevitável, desconcertante, é que o Brasil chega à pós-modernidade sem ter conseguido ser liberal nem moderno. Herdeiros de uma tradição autoritária e populista, elitizada e excludente, seletiva entre amigos e inimigos - e não entre certo e errado, justo ou injusto - , mansa com os ricos e dura com os pobres, chegamos ao terceiro milênio atrasados e com pressa.

II A Busca da razão possível

Os gregos inventaram a idéia ocidental de razão como um pensamento que segue princípios e regras de valor universal. 7Ela é o traço distintivo da condição humana, juntamente com a capacidade de acumular conhecimento e transmiti-lo pela linguagem. Traz em si a superação dos mitos, dos preconceitos, das aparências, das opiniões sem fundamento. Representa, também, a percepção do outro, do próximo, em sua humanidade e direitos. Idealmente, a razão é o caminho da justiça, o domínio da inteligência sobre os instintos, interesses e paixões. Page 5

Sem enveredar por um debate filosófico feito de sutilezas e complexidades, a verdade é que a crença iluminista no poder quase absoluto da razão tem sido intensamente revisitada e terá sofrido pelo menos dois grandes abalos. O primeiro, ainda no século XIX, provocado por Marx, e o segundo, já no século XX, causado por Freud. Marx, no desenvolvimento do conceito essencial à sua teoria - o materialismo histórico - assentou que as crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais dependiam da posição social do indivíduo, das relações de produção e de trabalho, na forma como estas se constituem em cada fase da história econômica. Vale dizer: a razão não é fruto de um exercício da liberdade de ser, pensar e criar, mas prisioneira da ideologia, um conjunto de valores introjetados e imperceptíveis que condicionam o pensamento, independentemente da vontade.

O segundo abalo veio com Freud. Em passagem clássica, ele identifica três momentos nos quais o homem teria sofrido duros golpes na percepção de si mesmo e do mundo à sua volta, todos desferidos pela mão da ciência. Inicialmente com Copérnico e a revelação de que a Terra não era o centro do universo, mas um minúsculo fragmento de um sistema cósmico de vastidão inimaginável. O segundo com Darwin, que através da pesquisa biológica destruiu o suposto lugar privilegiado que o homem ocuparia no âmbito da criação e provou sua incontestável natureza animal. O último desses golpes - que é o que aqui se deseja enfatizar - veio com o próprio Freud: a descoberta de que o homem não é senhor absoluto sequer da própria vontade, de seus desejos, de seus instintos. O que ele fala e cala, o que pensa, sente e deseja é fruto de um poder invisível que controla o seu psiquismo: o inconsciente.8 9

É possível, aqui, enunciar uma conclusão parcial: os processos políticos, sociais e psíquicos movem-se por caminhos muitas vezes ocultos e imperceptíveis racionalmente. Os estudos de ambos os pensadores acima - sem embargo de amplamente questionados ao longo e, especialmente, ao final do século XX - operararam uma mudança profunda na compreensão do mundo. Admita-se, assim, que a razão divida o palco da existência humana Page 6 pelo menos com esses dois outros (f)atores: a ideologia e o inconsciente. O esforço para superar cada um deles, pela auto-crítica e pelo auto- conhecimento, não é vão, mas é limitado. Nem por isso a razão se torna menos importante. A despeito de seus eventuais limites, ela conserva dois conteúdos de especial valia para o espírito humano: (i) o ideal de conhecimento, a busca do sentido para a realidade, para o mundo natural e cultural e para as pessoas, suas ações e obras; (ii) o potencial da transformação, o instrumento crítico para compreender as condições em que vivem os seres humanos e a energia para interferir na realidade, alterando-a quando necessário10.

As reflexões acima incidem diretamente sobre dois conceitos que integram o...

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