As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis

AutorLenio Luiz Streck
CargoMestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas2-37

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1 Considerações preliminares: as inovações introduzidas pelo constitucionalismo contemporâneo

Cada vez mais se torna necessário discutir as condições de possibilidade da validade do direito em um contexto em que os discursos predatórios dessa validade, advindos do campo da política, da economia e da moral, buscam fragilizá-la. Trata-se, enfim, de discutir o papel do direito na democracia, seus limites e sua força normativa.

Em outras palavras, nesta quadra da história, não pode ser considerado válido um direito que não seja legitimado pelo selo indelével da democracia. Nesse sentido, penso que o direito deve ser preservado

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naquilo que é a sua principal conquista a partir do segundo pós-guerra: o seu elevado grau de autonomia. Há, pois, um novo lugar ocupado pelas Constituições do segundo Pós-guerra, assim como um novo papel a ser exercido pelos Tribunais Constitucionais, mormente no campo da Europa Continental.

Assim, é importante lembrar que é nesse contexto de afirmação das Constituições e do papel da jurisdição constitucional que teóricos dos mais variados campos das ciências sociais - principalmente dos setores ligados à sociologia, à ciência política e ao direito - começaram a tratar de fenômenos como a judicialização da política e o ativismo judicial. Ambos os temas passam pelo enfrentamento do problema da interpretação do direito e do tipo de argumento que pode, legitimamente, compor uma decisão judicial.

Em outras palavras: quais são as condições de possibilidade do argumento jurídico-decisório? Sob quais circunstâncias é possível afirmar que o tribunal, no momento de interpretação da Constituição, não está se substituindo ao legislador e proferindo argumentos de política ou de moral? Neste ponto, é importante mencionar estudos como The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics, de Chester Neal Tate e Torbj rn Vallinder (1995) e On law, politics & judicialization, de Martin Shapiro e Alec Stone Sweet (2002). Em outra perspectiva, mas apontando também para a incisividade do Poder Judiciário na condução da vida política, tem-se o artigo Tomada de Decisões em uma democracia: a Suprema Corte como uma entidade formuladora de políticas nacionais, de Robert A. Dahl (2009).

Nas últimas décadas, essa discussão tem sido feita a partir de dois eixos temáticos: substancialismo e procedimentalismo (STRECK, 2004). No fundo, a (já hoje antiga) discussão entre posturas substancia-listas e procedimentalistas tem como pano de fundo a questão de se saber qual o papel do Judiciário na concretização de direitos. Este ponto é tão problemático que, em face de uma tendência de judicialização (ou, se quisermos, em face da chamada judicialização da política), há hoje países que, buscando evitar uma centralização no Judiciário - e, assim,

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por vezes, ativismos judiciais ou juristocracias - apresentam soluções alternativas, isto é, criam medidas que não fazem da jurisdição o centro da tomada de decisões políticas. Nessa linha, vale referir Ran Hirschl, um dos autores que aborda os modelos adotados em Israel, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul, asseverando que as experiências destes países merecem atenção, pois, no intuito de preservar a soberania parlamentar e a representação democrática, criaram uma variedade de mecanismos inovadores, que compensavam o papel contramajoritário assumido pelas Cortes em face da existência de uma onda de constitu-cionalização, engendrada pelo segundo pós-guerra (HIRSCHL, 2007, p. 9-11). No Brasil, essa temática é adequadamente desenvolvida na obra Diálogos Institucionais e Ativismo, onde os autores trazem estes exemplos presentes na obra de Hirschl e outros (Reino Unido e Austrália), todos apresentados como modelos que permitem uma convivência harmônica entre constitucionalismo e democracia, e um melhor diálogo entre os Poderes, em especial, Legislativo e Judiciário. Apenas para mencionar algumas das experiências relatadas pelos autores, veja-se o caso do Canadá, que, na Seção 33 da Carta de Direitos Canadense de 1982, criou um mecanismo - até agora pouco utilizado - que ficou conhecido como "cláusula não obstante" (notwishstanding clause), pelo meio do qual o Legislativo pode aplicar determinado dispositivo, mesmo que contrário ao texto constitucional, do que resulta a preponderância da interpretação do Legislativo; de Israel, país cujo Parlamento (conhecido como Knesset), seguindo o exemplo do Canadá, preocupado com o ativismo judicial de sua Suprema Corte, acabou reformando uma de suas declarações de direitos (porque lá ainda não há constituição, apenas normas de organização, conhecidas como basic laws), incluindo a possibilidade de o Parlamento criar, desde que por maioria absoluta, lei que contraria ao conteúdo da basic law; e da Nova Zelândia, onde a primeira proposta de declaração de direitos foi rejeitada, porque previa a possibilidade do exercício do judicial review, o que foi considerado incompatível com a supremacia parlamentar, tendo sido aprovado, então, o New Zealand BUI of Rights Act (NZBORA), que excluiu a possibilidade de uma análise do Judiciário, isto é, não autorizou aos juízes que invali-

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dassem uma lei invocando os dispositivos desta declaração, especialmente porque foi concebida com um caráter de legislação ordinária. Todos estes são, para os autores, modelos de weak judicial review, que, de certo modo, compatibilizam as prerrogativas do Judiciário com a re-presentatividade democrática do Legislativo (SILVA et al., 2010, p. 53-60).

Esse é um dos grandes dilemas contemporâneo. Superadas as formas de positivismo exegético-racionalista (formas exegéticas), os juristas ainda não conseguiram construir as condições para o controle das posturas voluntaristas (que, registremos, por apostarem na discricio-nariedade dos juízes, não deixam de ser também positivistas1). Se antes o intérprete estava assujeitado a uma estrutura pré-estabelecida, já a partir do século XX o dilema passou a ser o de como estabelecer controles à interpretação do direito e evitar que os juízes se assenhorem da legislação democraticamente construída.

Um dos sintomas desse problema reside no crescimento -mormente em países como o Brasil - do fenómeno do "ativismo judicial", fator de fragilização do grau de autonomia alcançado pelo direito neste novo paradigma. Ou seja, em terrae brasilis, longe estamos de discutir alternativas ao debate. Na verdade, mergulhamos, dia a dia, mais e mais, nas profundezas de uma jurisdição eivada de posturas discriciona-ristas, no interior das quais o ativismo vem se transformando na vulgata dajudicialização.

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2 A constituição e a exigência de novos paradigmas interpretativos As recepções teóricas equivocadas

Uma Constituição nova exige novos modos de análise: no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma, uma nova teoria interpretativa e, fundamentalmente, uma teoria da decisão (teoria da validade). A pergunta que se coloca(va) era: de que modo po-de(ría)mos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição jurídica esta(va) assentada em um modelo liberal-individualista (que sempre operou com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado francês e alemão), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões. Do mesmo modo, não há(via) uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico.

Essas carências jogaram os juristas brasileiros nos braços de teorias alienígenas. Consequentemente, as recepções dessas teorias foram realizadas, no mais das vezes, de modo acrítico, sendo a aposta no protagonismo dos juízes o ponto comum da maior parte das posturas. Com efeito, houve um efetivo "incentivo" doutrinário a partir de três principais posturas ou teorias: a jurisprudência dos valores, o realismo norte-americano (com ênfase no ativismo judicial) e a teoria da argumentação de Robert Alexy, com o agravante de que esta - embora as críticas que seu criador, Alexy, faz à primeira (a Wertungsjurisprudenz) - acaba ingressando em solo brasileiro como um (simplório) "derivativo" daquela.

Vejamos cada uma dessas recepções equivocadas, sendo que, pelo modo como são trabalhadas no Brasil, a jurisprudência dos valores e a teoria da argumentação de Robert Alexy serão analisadas em conjunto.

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2. 1 Jurisprudência dos valores e teoria da argumentação jurídica: os equívocos de uma recepção

Como se sabe, no caso alemão, a jurisprudência dos valores (Wertungsjurisprudenz) serviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga da Grundgesetz pelos aliados, em 1949. Com efeito, nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do...

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