Teorias da mudança social: as perspectivas lineares e as cíclicas

AutorMaria José de Rezende
Páginas350-378

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Introdução

A o folhear* os manuais de teoria sociológica, os de introdução à Sociologia e os de Sociologia geral das décadas de 60 e 70, do século XX, o iniciante nos estudos de Ciências Sociais depara-se, quase que impreterivelmente, com capítulos que tratam especificamente da problemática da mudança social. Uma parte significativa destes materiais buscam dar conta das questões atinentes aos embates que a rigor compõem tanto as teorizações acerca deste tema quanto às implicações metodológicas que as várias perspectivas sociológicas enfrentaram ao tentar explicar a dinâmica social.

Somente a título de exemplo é interessante mencionar algumas obras possuidoras de orientações teórico-metodológicas distintas e que trazem em seu bojo capítulos específicos acerca da mudança social. Dentro de uma lista imensa podem-se citar brevemente os seguintes livros: Uma introdução à Sociologia (Anderson e Parker, 1974); Sociologia (Mciver e Page,1963); A Sociologia como crítica social, (Bottomore, 1976); Introdução à Sociologia (Bottomore, 1970); Sociologia sistemática (Mannheim, 1962); Pensamento teórico em Sociologia (Skidmore, 1976); Novas teorias sociológicas (Sorokin,1969); Teoria social moderna (Cohen, 1976); Política e sociedade numa época de transição (Germani, 1973); Mudanças sociais no Brasil (Fernandes, 1979); Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes, 1975) e A Sociologia numa era de revolução social (Fernandes, 1976).

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No âmbito deste artigo, no entanto, não se tem o objetivo de discutir as obras acima mencionadas; algumas delas, porém, servirão como pano de fundo para ilustrar as diversas correntes teóricas que têm buscado construir uma sociologia da mudança social. Não há, todavia, uma única teoria da mudança, mas várias, uma vez que, ao se deterem em aspectos diferentes da vida social, dentro de uma multiplicidade de elementos produtores da mudança, os cientistas sociais acabaram construindo uma gama diversa de reflexões acerca do modo como a dinâmica das inúmeras sociedades se processa.

O objetivo deste artigo é sistematizar tanto as perspectivas direcionais unilineares e multilineares quanto as perspectivas nãodirecionais da mudança social. Constatou-se que, no decorrer do século XX, a principal contestação às teorias assentadas na diretividade do processo histórico foi elaborada por Pitirim Sorokin (1889-1968) que elaborou uma das mais férteis críticas às diversas vertentes do evolucionismo sociológico. Portanto, no final desta exposição, dar-se-á aos seus escritos uma maior relevância.

As análises do evolucionismo clássico e do neo-evolucionismo serão circunscritas, exclusivamente, à temática da mudança social. Extrairse-ão dos escritos de seus principais teóricos (clássicos e contemporâneos) aqueles elementos que têm possibilitado a sedimentação de um amplo leque de explicações acerca das trajetórias fundadas em unicidades ou em multiplicidades diretivas. Os cientistas sociais que formularam e reformularam continuamente, ao longo do século XX, as teses embasadoras da multilinearidade buscaram alcançar evidências de que existem inúmeros processos continuados e constantes de progresso e de inovação. Coube à teoria cíclica da mudança social, principalmente aquela que foi desenvolvida por Pitirim Sorokin, uma crítica veemente aos postulados da direcionalidade progressiva.

Mudança social: as perspectivas direcionais
O evolucionismo clássico e os processos unilineares

As idéias de Comte (1798-1857) e as de Spencer (1820-1903) acerca da dinâmica social congregam, no âmbito da fundação da Sociologia como ciência, as primeiras tentativas de explicação da maneira como a vida social estava em constante modificação.

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As tentativas daquele segundo de precisar o funcionamento e, também, as alterações na sociedade o levou a uma distinção “que está no cerne da linguagem sociológica: estruturas por oposição a funções” (Sztompka, 1998:25).

Os legados do principal teórico do positivismo e os do principal teórico do evolucionismo para a teoria da mudança social foram distintos em vários aspectos, mas somente em um, não o foram: a noção de unilinearidade diretiva. Tanto as leis de coexistência (estática social) e as de sucessão (dinâmica social) em Comte quanto “a noção de mudança evolucionista” (Levine,1997:134) em Spencer, a qual ele retirara da biologia, tinham um mesmo modo de conceber a história, ou seja, esta última era tida por eles como seguidora de uma trajetória unidirecional (Spencer, 1972; 1961; 1904; Comte, 1899; 1934).

Não serão analisadas, neste artigo, as diferenças existentes entre as pressuposições de Comte e as de Spencer. Há evidentes distinções entre eles no modo de conceber a própria vida social. E uma delas é o peso dado por aquele primeiro à vida coletiva e a relevância, atribuída pelo segundo, à vida individual. Durkheim, influenciado por Comte, afirmava: “não devemos, como Spencer, apresentar a vida social como mera resultante de naturezas individuais solitárias, uma vez que, pelo contrário, são as últimas que emergem da primeira” (Durkhiem, 1984: 286).

Atendo-se ao individualismo de Spencer já se têm elementos suficientes para se tecer uma ampla reflexão acerca de suas divergências com Comte. No entanto, demonstrar-se-á um ponto de convergência entre os dois que se tornou chave para a sociologia: a tese da unilinearidade diretiva da mudança social. Ater-se-á somente a este ponto de confluência entre as suas perspectivas. Observe-se que o sociólogo britânco preocupou-se em assinalar que haviam diferenças fundamentais entre ele o principal representante do positivismo (Spencer, 1968).

Em A sociologia da mudança social, Piotr Sztompka demonstra que Comte e Spencer inauguraram uma das visões da história que balizou uma parte expressiva das análises nas ciências sociais: a suposição de que a humanidade tendia a seguir um caminho evolutivo inconteste (Sztompka, 1998:182-6). Enquanto para aquele primeiro a evolução do espírito, do conhecimento, ia sempre no sentido do progresso, aquele segundo ora afirmava que “o progresso da evolução não era”Page 353algo automático ora argumentava que “o homem, por sua natureza, estava predestinado ao progresso” (Timasheff, 1960:59). Esta segunda concepção prevaleceu, no entanto, ao longo da obra de Spencer que, em uma passagem de On social evolution, afirmava: “As sementes de civilização existentes no aborígene e distribuídas pela terra, viriam certamente, com o correr do tempo, a cair aqui e ali em circunstâncias adequadas a seu desenvolvimento” (Spencer, 1972:238).

Augusto Comte construiu uma visão unilinear diretiva da humanidade calcada no pressuposto de que “em princípio, não se deve dis simular qu e nos sa pr ogres são s ocial repousa essencialmente sobre a morte, isto é, que os passos sucessivos da humanidade supõem necessariamente a renovação contínua, suficientemente rápida, dos agentes do movimento geral, que, habitualmente quase imperceptível no curso de cada vida individual, só se torna verdadeiramente pronunciado passando de uma geração à seguinte. O organismo social submete-se a este respeito, e de maneira não menos imperiosa, à mesma condição fundamental do organismo individual”(Comte, 1934: 334).

A lei dos três estágios (teológico, metafísico e positivo) formulada por Comte assentava-se na sua concepção de um curso histórico unidirecional. Em sua concepção, a humanidade teria produzido, de forma ininterrupta, um processo progressivo de domínio - fundado no conhecimento - do mundo. As mudanças sociais ocorridas na história das civilizações teriam sido fruto de uma crescente evolução do espírito, a qual provocou modificações na sociedade como um todo. O estágio mais avançado seria, então, aquele em que “os indivíduos formulam leis baseadas na evidência e na experiência (...). Os avanços rumo ao progresso da ciência tornariam possíveis a elaboração de métodos cada vez mais precisos e capazes de prever e controlar o mundo” (Sztompka, 1998:182).

A evolução social posta nestes termos não dispensava, para Comte, a necessidade da coerção como uma forma de manter a sociedade em crescente processo evolutivo, o que se colocava de modo distinto para Spencer. Ao “ideal de Comte de subordinação dos indivíduos a uma ampla regulamentação moral através de hierarquias políticas e sociais, (...) Spencer se opõe com o ideal de minimizar as coerções externas e maximizar a cooperação espontânea” (Levine, 1997:161).

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Durante décadas, o desenvolvimento da ciência e da indústria foi, para Spencer, uma prova irrefutável de que a humanidade estava caminhando num sentido progressivo. Este último somente se efetivaria, para o sociólogo britânico, se fosse capaz de produzir uma sociedade industrial que se contrapusesse à sociedade militar. Enquanto aquela primeira estaria fundada na cooperação espontânea dos indivíduos, a segunda estaria baseada na coerção e em métodos repressivos.

Segundo Spencer, as ações humanas davam sinais, no final do século XIX, de que “as repressões são abolidas quando os controles morais tornam-se internalizados e o caráter humano passa a ser essencialmente altruísta” (Levine, 1997:134; Spencer, 1972). Spencer manteve essa posição ao longo de várias décadas, mas a reviu pouco antes de sua morte nos artigos Impérialisme et servitude e Retour a la barbarie (Spencer, 1904). Nesses escritos ele se mostrava inteiramente desapontado com os rumos da evolução social.

Herbert Spencer afirmava em seus últimos escritos que o imperialismo e o...

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