Teoria Geral do Direito e Marxismo de Eugen Pachukanis.

AutorElbe, Ingo

De inicio, de modo relativamente breve e didaticamente, tentarei apresentar algumas posicoes fundamentais da critica do direito de Pachukanis. Apos, trarei dados pontuais sobre a vida de Pachukanis. Entao, mais algumas poucas informacoes sobre a concepcao sobre Estado e direito no marxismo tradicional a epoca de Pachukanis, com a qual ele contrasta. Na parte principal, descreverei a argumentacao fundamental de Pachukanis acerca da relacao existente entre forma mercadoria, forma juridica e forma estatal, e tambem contornos sobre sua ideia de fetichismo juridico. Na terceira parte, apresentarei alguns pontos criticos que foram formulados contra Pachukanis, pois suas posicoes, desde a epoca em que ele viveu e a publicacao de sua principal obra--aqui na Alemanha sua obra mais conhecida -, foram largamente criticadas por importantes teoricos assim chamados "burgueses", e tambem por juristas marxistas. (1)

Primeiro, brevemente sobre o proprio Pachukanis, ele nasceu em 1891 e morreu supostamente em 1937. O "supostamente" deve-se a um contexto relativamente dramatico. Pachukanis estudou direito em varios paises, inclusive na Alemanha (2), e exerceu inicialmente nos anos 1920, na entao formada Uniao Sovietica, juntamente com Piotr Stuchka, papeis de lideranca na teoria juridica. Com isso quero dizer que Pachukanis foi ativo tanto como teorico do direito quanto como funcionario nas mais diversas instituicoes de cupula da URSS no que tange a teoria juridica. Ele nao foi um intelectual de escritorio, mas uma das duas principais liderancas no campo do direito--funcionario e jurista--na Uniao Sovietica.

Em 1929, como talvez saibam alguns de voces, inicia-se na URSS uma brutal estalinizacao da sociedade sovietica e do KPD (3) e, na esteira dessa estalinizacao, Pachukanis devera no mais tardar ate 1931 se retratar de sua teoria juridica. Portanto, de repente ele passou a defender tudo contra o qual ele havia se voltado em seus escritos iniciais, sobretudo na obra Teoria Geral do Direito e Marxismo, publicada em 1924 e disponibilizada em alemao em 1929. Isso foi apenas mais um dos varios absurdos na Uniao Sovietica, mas ainda nao o maior dos absurdos. Em 1931 ele publica uma serie de textos--que tambem sao disponibilizados em alemao, e que foram publicados nos anos 1970 numa edicao comentada por Thomas Blanke--em que ele fala do Estado popular da Uniao Sovietica e basicamente defende a tese estalinista ou estaliniana de que pode haver uma estatalidade popular ou um Estado popular, assim como um direito socialista (4). Isso salvou sua vida e fez com que ele mantivesse suas funcoes de dirigente ate 1936 quando, em 1937, provavelmente foi fuzilado sem processo judicial. Quanto ao fuzilamento, no entanto, trata-se apenas uma suposicao (5).

Sobre a recepcao de Pachukanis, eu talvez ja tenha adiantado que seu pensamento nao foi devidamente acolhido na Uniao Sovietica. Ele foi recebido intensamente tanto pelos circulos marxistas no Ocidente, como veremos na terceira parte dessa palestra, quanto pelos mais importantes juristas, sobretudo na Alemanha, onde seus textos foram traduzidos para o alemao, e onde ele proprio atuou como representante diplomatico da URSS por um curto periodo nos anos 1920. Eu posso citar dois nomes: Gustav Radbruch, um dos maiores juristas social-democratas--todos os juristas que sabem algo a respeito de teoria do direito conhecem a formula de Radbruch --, e outro jurista ainda mais importante que dirigiu a Pachukanis uma critica minudente. Sobre isso falarei na terceira parte da palestra.

Portanto, Pachukanis foi ja em vida bastante famoso, conhecido e influente. Mas de modo geral podemos dizer que, no mais tardar com sua morte, ou com sua retratacao no inicio dos anos 1930, sua abordagem juridica se perdeu, ao menos no ambito da tradicao marxista. Eu nao conheco ninguem do periodo entre os anos 1930 e o final dos anos 1960 que tenha por referencia a argumentacao de Pachukanis. Isso, no entanto, nao se deu por acaso: a 2a Guerra Mundial, a destruicao pelo estalinismo de toda cultura teorica na URSS e tambem a Guerra Fria levaram a que determinadas abordagens heterodoxas do marxismo-leninismo fossem sufocadas.

So a partir dos anos 1960 ele e entao resgatado por juristas criticos na Alemanha Ocidental, e entao, nos anos 1970, sobretudo na Republica Federal da Alemanha, surge uma forte corrente teorica, posteriormente denominada "debate da derivacao do Estado", que deve muito as orientacoes essenciais do pensamento de Pachukanis e segue sua argumentacao muito intensamente. Do mesmo modo, nos EUA ha alguns representantes--Isaac Balbus, por exemplo--, e la ha tambem por assim dizer algumas escolas e outros defensores [das ideias de Pachukanis].

Vistas essas notas biograficas, em seguida pontuarei as teses marxistas tradicionais acerca do Estado e do direito--como ja salientado, apenas duas teses. Ha, simplificando de modo muito grosseiro, nos anos 1910 e 1920, basicamente duas posicoes principais sobre Estado e direito no bojo do movimento socialista ou marxista dos trabalhadores. Por um lado, ha uma tendencia que remete fortemente a Ferdinand Lassalle, e que e representada por exemplo por Gustav Radbruch e por Hans Kelsen--ambos socialdemocratas--e em parte por Karl Kautsky. Trata-se da tendencia que afirma o direito, na verdade, como expressao de uma ideia ou uma norma transcendentais--isto e, uma norma que torna possivel todas as outras normas--ou ate mesmo como expressao de uma justica trans-historica, na linha por exemplo de Gustav Radbruch. Em Lassalle, encontramos tambem a concepcao de que direito e Estado sao, por assim dizer, expressao de um progresso humano geral, no sentido da continua expansao da capacidade cultural da humanidade. O Estado e aqui compreendido como expressao do bem comum, da vontade geral, num sentido muito enfaticamente normativo. Ele e, por assim dizer, algo a que o movimento dos trabalhadores pode se vincular. O Estado protege o proletariado da exploracao, como Kelsen expressa de modo marcante (6). E basicamente algo a que se pode recorrer na luta pelo socialismo. Quanto mais o Estado assume o comando por meio do direito publico, de intervencoes na economia capitalista, quanto mais ele lanca mao da regulacao juridica, mais a sociedade se aproxima do socialismo. Eis a ideia fundamental. Esse e o primeiro ponto, a primeira faceta: a social-democracia, que considera o carater abstrato e geral do direito--porque o direito burgues moderno opera em desconsideracao a pessoa concreta, nao comporta privilegios e trabalha com a ideia de igualdade e liberdade gerais. Essa ideia e tomada isoladamente, e dai se dira basicamente que os socialistas podem se fiar nesse direito. Essa e uma tendencia que, como se ve, focou num sentido estatista do Estado e, em ultima instancia, que tambem leva a um modelo de socialismo reformista ou, como eu diria, gradualista. Gradualista devido a concepcao de que, quanto mais intervencoes estatais na economia, tanto mais se desenvolveria, passo a passo, um setor socialista dentro do capitalismo (7).

A segunda corrente e a tradicao leninista, que se impos ate os anos 1930 na Uniao Sovietica, no bloco do Leste e nos partidos comunistas. E a ideia de Lenin de que o Estado de maneira nenhuma e expressao do bem comum, e as normas gerais do Estado nao exprimem uma vontade geral a qual seja possivel vincular-se. Essa e a critica radical do Estado, pela qual este e instrumento das classes economicamente dominantes para submeter os explorados e impedir a revolucao. O Estado e aqui compreendido como instancia de prevencao da revolucao pelas classes dominantes, que assumem, ao lado do poder economico, o poder politico, a fim de impedir que a classe trabalhadora faca a revolucao. Nao quero agora tematizar em detalhes todos os problemas desse conceito instrumentalista de Estado, mas desejo trazer somente a ideia basica de que o Estado e instrumento da classe dominante, e isso e fundamentado na identidade pessoal entre os que dominam economica e politicamente--por meio, como ja havia dito Friedrich Engels, principal influencia de Lenin, de aliancas entre governo e bolsa de valores. E uma teoria de influencia e manipulacao que soa bastante atual. E tambem a concepcao de que o direito estatal e um mero meio para que os dominantes imponham sua vontade aos dominados. A ideia de igualdade e liberdade que e verificada no direito moderno burgues capitalista e aqui tratada como pura manipulacao, pura fraude e ilusao. Entao, afirma Lenin que a liberdade da classe dominada na sociedade capitalista e sempre mais ou menos a mesma liberdade das sociedades escravistas da Antiguidade--ou seja, liberdade apenas para os senhores de escravos. Assim, a ideia da igualdade juridica, da liberdade e da igualdade, da realidade de uma norma juridica valida em geral, indiferente a pessoa concreta, e fundamentalmente negada, e conceituada como puro veu diante de uma bruta e evidente exploracao e dominio de classe. O direito e, no maximo, um meio tecnico para impor a vontade da classe dominante sobre os dominados. Essa e tambem a concepcao predominante do "teorico do direito"--eu uso a expressao entre aspas--da Uniao Sovietica a partir dos anos 1930. O principal "teorico do direito" mas, de qualquer modo, pratico: Andrey Vyshinsky, o acusador-chefe dos processos de Moscou--por assim dizer, o Freisler (8) dos vermelhos, se assim quiserem. Se olharmos seus textos, la consta apenas que o direito e um meio para impor a vontade da classe dominante, e assim se compreende tambem o direito socialista. O direito socialista nao tem funcao de protecao dos burgueses, mas constitui apenas um meio tecnico para impor a vontade da classe proletaria dominante. Isso a parte, os textos de Vyshinsky sao apenas uma colecao de conceitos como "parasita", "sabotador" e afins.

Portanto, ha, por assim dizer, uma situacao complementar no marxismo tradicional. Por um lado, ha a dos socialdemocratas, que compreendem a...

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