Teoria geral do direito e o axioma da intertextualidade no processo interpretativo em matéria tributária

AutorRodrigo G. N. Massud
CargoMestrando em Direito Tributário pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil e em Direito Tributário pela PUC/SP-COGEAE. Professor do Curso de Extensão em Processo Tributário Analítico do IBET. Advogado
Páginas181-198

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Introdução

O direito é fenômeno comunicacional que se manifesta por meio da linguagem das normas e, por essa razão, pressupõe constante interpretação durante o seu ciclo de positivação, processo esse que, na linha de Paulo de Barros Carvalho, representa a gradual concretização dos antecedentes normativos abstratos e individualização de seus consequentes gerais,1mediante ato humano de enunciação.

Nessa ordem de ideias, o direito tributário, ramo didaticamente2autônomo do

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sistema de direito positivo, ou das ciências jurídicas,3atua por meio da atividade estatal expropriatória exercida de forma vinculada pela criação de normas. Ou seja, trata-se da linguagem das normas projetando-se sobre o campo material das condutas sociais.

Desse modo, mostra-se imprescindível analisar e compreender o processo gerador de sentido dos textos e conceitos jurídicos veiculados pela linguagem prescritiva do direito e que compreendem, conformam e norteiam as espécies tributárias, a fim de delimitar e circunscrever o alcance das exigências fiscais.

Trata-se, portanto, de analisar problemas ou irritações na fenomenologia da incidência tributária, com impacto na formação da obrigação tributária e, consequentemente, no desenvolvimento das relações intersubjetivas, procurando conferir soluções teóricas para dilemas práticos, a partir de categorias da Teoria Geral do Direito, com foco na interpretação.

Esse trabalho de geração e atribuição de sentidos exerce um constante dialogismo (intertextualidade) entre as diferentes camadas de linguagens, exigindo rigor científico e metodológico, especialmente porque o direito tributário está em constante comunicação com diversos outros ramos do conhecimento jurídico4e não jurídico (interdisciplinariedade).

Por essa razão, objetivamos com o presente estudo analisar o axioma da intertextualidade, seus fenômenos nos textos de direito positivo tributário e interação no processo interpretativo de construção de sentido das normas jurídicas, pretendendo contribuir, assim, no debate do tema que, a nosso ver, permite controlar o exercício material da competência tributária e também a aplicação do direito pelo chamado intérprete autêntico.

Considerando a limitação do espaço, iniciaremos fixando alguns conceitos da teoria geral do direito e método, os quais delimitarão nossas premissas e permitirão manter a coerência e unicidade do trabalho, suportando as conclusões alcançadas.

Em seguida, discorreremos sobre o chamado ciclo de positivação do direito tributário, passando, após, pelos conceitos que se relacionam com a norma jurídica e pelo conceito da própria norma jurídica, partindo, a partir de então, para o processo de atribuição de sentido aos textos jurídicos: interpretação e aplicação do direito.

Por fim, dentro desse contexto norma-tivo, enfrentaremos o tema da intertextualidade no direito tributário e a questão da legitimação de sentidos, trazendo exemplos práticos de forma a delimitar os limites da intertextualidade na atividade impositiva.

I - Considerações sobre teoria geral e método

Com a filosofia da linguagem, pós-giro-linguístico,5em grande parte influenciada

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pelas colaborações de Wittgenstein,6segundo o qual "os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo", o conhecimento passou a ser compreendido como a relação que se estabelece entre as linguagens do sujeito que conhece ou deseja conhecer e do objeto conhecido ou que se dá a conhecer, e, a partir de então, a linguagem passou a construir o sentido das coisas e não os extrair dos textos ou dados que lhe servem de suporte físico.

Desse modo, estabelecer conhecimento, sob tal concepção, exige ato de absolvição de enunciados, ou expressões linguísticas, e construção de significações, a partir da abstração do objeto, ou dado bruto. Podemos dizer que conhecer é teorizar, recortar metodologicamente o objeto de estudo, enunciando seus conteúdos significativos.

Talvez por conta da tradicional definição da palavra teoria, o termo acabou adquirindo um sentido negativo de especulação ou mera contemplação que se contrapõe à prática, o que não se mostra correto, pois o conhecimento teórico e o conhecimento prático, ainda que detentores de características diferentes, não se tratam de esferas opostas.

O pragmatismo parte de uma teoria, ou seja, as escolhas racionais, consciente ou inconscientemente, apoiam-se em teorias, assim como as teorias, para serem aceitas como verdadeiras, necessitam do teste empírico.

Assim sendo, seria inconcebível dizer que algo é verdadeiro na teoria e falso na prática, podendo haver, nesse caso, um problema social que exige mais teoria, ajustando-se o saber ao fazer. É por essa razão que Lourival Vilanova já advertia ser o jurista o ponto de intersecção entre teoria e prática, ciência e experiência. Do contrário, precisamos ou mudar a prática para ajustá-la à teoria correta, ou questionar as premissas da teoria adotada. Por outro lado, toda teoria pressupõe método, ou seja, instrumento que possibilite a aproximação do exegeta ao objeto de estudo, oferecendo o modelo de referência que permitirá controlar o seu conteúdo, a veracidade e coerência das suas conclusões.

A teoria geral do direito, por sua vez, objetiva o estudo das normas7válidas no sistema jurídico positivo, e o seu meio exclusivo de manifestação é a linguagem: só tomamos contato com o direito pela linguagem. O direito apresenta-se, assim, como fato comunicacional, daí porque se falar em princípio da autorreferencialidade da linguagem.8Por essas razões, segundo pensamos, o método mais adequado para a análise do direito positivo é o chamado analítico e hermenêutico, ou seja, a interpretação analítica dos textos de direito positivo, com recursos da filosofia, da lógica e da semiótica regendo os âmbitos de examinação da língua (sintaxe, semântica e pragmática).

Analítico porque o comportamento científico na aproximação do objeto exige a redução da linguagem ordinária que o constitui, numa linguagem mais elaborada conceitualmente, mais purificada, livre de imprecisões, de modo que, quanto mais decomposta, mais precisa a linguagem se torna. Hermenêutico, outrossim, de forma justaposta e não contraposta, porque, toda

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nova linguagem é uma construção (cria uma nova realidade), pressupondo, portanto, um processo interpretativo e, portanto, valorativo.

Daí porque, repita-se, o método analítico e hermenêutico, ou seja, a interpretação e depuração analítica dos textos de direito positivo, com recursos da filosofia, da lógica, da teoria dos valores e da semiótica regendo os âmbitos de examinação da língua.9Explicitamos, com isso, nossas premissas, na linha de Vilém Flusser,10de que a linguagem das normas "forma, cria e propaga a realidade" e, nesse sentido, nosso sistema de referência (enquanto modelo e também referencial cultural) é o chamado constructivismo lógico-semântico, tão difundido por Paulo de Barros Carvalho.

II - O ciclo de positivação do Direito Tributário

Ao nos referir ao ciclo de positivação do direito tributário, como já adiantamos, remetemo-nos à ideia de transição da norma geral e abstrata para a individual e concreta, perspectiva sobre a qual se desenvolve e caminha a relação jurídica de direito tributário, da sua máxima abstração à sua concretude final (extinção da obrigação que lhe é objeto).

Nesses termos, a positivação do direito tributário inicia-se com a outorga de competências pela Constituição Federal (exemplo dos arts. 153 a 156), passa pela instituição do tributo pelo ente competente (regra-matriz de incidência: norma geral e abstrata11), observa os eventos tributários (materialização das hipóteses de incidência dos tributos) e, por meio da autoridade fiscal, os converte em fatos jurídicos tributários, com a constituição do crédito tributário pelo lançamento (norma individual e concreta). Segue, após, com o controle administrativo da exigência (processo administrativo, quando cabível), passa para a inscrição em dívida ativa e, ao final, para a expropriação forçada. Veja-se:

Competência tributária; - Instituição do tributo pela lei (relação jurídica em potencial abstrato); - Ocorrência do fato gerador (materialização da hipótese de incidência); - Constituição do crédito pelo lançamento (relação jurídica em concreto); - Processo administrativo para controle da legalidade (quando cabível); - Inscrição em dívida ativa (confere presunção de liquidez e certeza ao crédito tributário); e - Execução Fiscal (exigência coercitiva da exação).

Vislumbra-se, portanto, a concretização e individualização da linguagem prescritiva do direito tributário, que avança gradualmente sobre as condutas intersubjetivas e exige, para tanto, ato humano de enunciação que exerce constante dialogismo entre textos,

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enunciados e normas, seja pelas relações lógico-sintáticas das normas cronologicamente produzidas nesse processo, seja pelas suas relações semânticas e pragmáticas.

Veja-se, por exemplo, que a norma individual e concreta do lançamento fiscal colhe, em seu antecedente, um fato conotado e demarcado pela regra-matriz de incidência, construída a partir da lei instituidora do tributo (relação lógico-sintática), na extensão da materialidade outorgada pela norma de competência (relação semântica) e com o objetivo de implementar alterações comportamentais nas condutas que visa atingir (relação pragmática).

A linguagem do direito positivo, ainda, encontra-se em relação com a linguagem social sobre a qual incide e também com a linguagem da ciência do direito, as quais igualmente interagem no ciclo de...

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