Teoria Feminista e a Leitura sobre a Inserção Desigual da Mulher na Sociedade

AutorCristina Pereira Vieceli, Julia Giles Wünsch e Mariana Willmersdorf Steffen
Páginas23-42

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Introdução

A agenda feminista vem ganhando espaço na mídia e em ambientes informais de discussão, tempos depois de sua consolidação na academia. Grandes teóricas, em suas diferentes correntes, auxiliaram não apenas na compreensão da situação especíica da mulher em diferentes posições - enquanto trabalhadora, enquanto beneiciária de welfare1, enquanto cidadã -, como proporcionaram relexões em prol da transformação destas condições, por vezes precárias e marginalizadas.

A própria deinição de feminismo, segundo Gamba, dá conta de que este consiste a um só tempo em teoria e prática, ação e razão, isto é, um movimento que não apenas pensa a situação da mulher, mas também se preocupa com sua transformação (GAMBA, 2008). Assim, as fronteiras entre a atividade acadêmica e a luta feminista são bastante porosas, o que pode ser observado, por exemplo, na luta pelo voto feminino, na exigência de direitos relacionados ao casamento e ao divórcio e na luta pelo controle de sua capacidade reprodutiva (BIROLI; MIGUEL, 2014). Nestes momentos, e em vários outros ao longo da história, o feminismo foi capaz de atuar sobre a realidade vigente e transformá-la.

São diversas as situações em que a vulnerabilidade da mulher é latente. No Brasil, embora pesquisas recentes demonstrem avanços no mercado de trabalho e no acesso ao ensino superior, este progresso atinge apenas uma parcela restrita do universo feminino. No mundo do trabalho, como apontam Biroli e Miguel (2014, p. 11), "a vigência de estereótipos, as estruturas de autoridade ainda dominadas pelos homens e as múltiplas responsabilidades adicionais", que se reletem na distribuição desigual de remuneração e cargos, tornam a experiência do trabalho assalariado mais penosa para as mulheres do que para os homens.

O trabalho doméstico remunerado relete estas distorções e apresenta muitas outras. Desde os primórdios da civilização, a esfera privada, sobretudo o âmbito das relações familiares,

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afetivas e domésticas, não é considerada política e economicamente relevante. Um provável motivo para a reprodução desta condição está relacionado ao fato de que, ainda hoje, as decisões sobre leis e políticas que se referem diretamente às mulheres são tomadas por homens (BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 13).

O emprego doméstico é uma das formas de oferta de trabalhos reprodutivos, ou seja, daqueles trabalhos voltados para o cuidado e a manutenção dos lares e de seus membros. Este trabalho pode ser exercido de forma não remunerada, pelos próprios membros das famílias, ou de maneira remunerada, ofertado por instituições públicas e privadas, como hospitais e creches, ou por pessoas, que é o caso das empregadas domésticas. Os trabalhos reprodutivos são desempenhados majoritariamente pelas mulheres e, quando não remunerados, são invisíveis ao Sistema de Contas Nacionais (SCN).2

Concretamente, os trabalhos reprodutivos estão associados à reprodução e manutenção de pessoas para servirem ao sistema capitalista. De acordo com Engels (1984), as sociedades são historicamente organizadas pela produção de meios de subsistência, como alimentação e roupas, e pela forma de propagação da espécie. Segundo o autor, a institucionalização da propriedade privada e da organização familiar monogâmica tornou a mulher subordinada ao homem e vinculada ao trabalho reprodutivo. A união monogâmica seria, portanto, a primeira forma de opressão de classe.

Em relatório elaborado em 2015, denominado Classiicação das Atividades de Uso do Tempo para a América Latina e o Caribe (CAUTAL), as atividades humanas são classiicadas em dois grandes grupos: produtivas e não produtivas ou pessoais (CEPAL, 2016). As atividades produtivas se dividem entre aquelas destinadas à produção de bens e serviços, que estão dentro da fronteira do SCN e servem para mensurar o Produto Interno Bruto (PIB), e aquelas destinadas à produção de bens e serviços para o autoconsumo, mas que não são mensuradas pelo SCN, denominados trabalhos não remunerados.

O emprego doméstico remunerado se encontra entre as atividades produtivas mensuradas pelo SCN, enquanto o trabalho doméstico não remunerado é classiicado entre as atividades produtivas não remuneradas e não integra a mensuração do PIB. Nas atividades não produtivas, incluem-se aquelas destinadas aos cuidados pessoais, como aprendizagem, convivência cultural, entretenimento e tempo livre (CEPAL, 2016).

Nas economias capitalistas, as famílias se organizam de maneira que a mulher passou a ser a principal responsável pelos cuidados da casa e o homem permaneceu como provedor. Mesmo com o aumento da inserção da mulher no mercado de trabalho, sobretudo a partir da década de 1960, quando foi impulsionado pelos movimentos feministas e pela universalização da educação, as atividades domésticas continuaram a ser prioritariamente realizadas por

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mulheres, quer seja por empregadas domésticas remuneradas, quer seja mediante dupla jornada de trabalho, ou simplesmente por donas de casa não remuneradas. A expressão "dupla jornada de trabalho" foi popularizada pelo movimento feminista da década de 1970 e designa a condição em que os trabalhos domésticos são exercidos pela população também ocupada em outras atividades remuneradas. A dupla jornada, mesmo não sendo exclusivamente feminina, é exercida majoritariamente por mulheres.

No caso especíico do emprego doméstico, ainda que existam diferenças entre as economias capitalistas, o trabalho é realizado por grupos populacionais marginalizados - mulheres negras, indígenas, imigrantes provenientes de regiões pobres -, sendo uma atividade caracteristicamente precária, com baixos salários e reduzida regulamentação estatal ou coletiva. Esta ocupação, portanto, ilustra relações de segregação de gênero e raça no mercado de trabalho. Dessa forma, examinar o peril das trabalhadoras domésticas brasileiras, considerando objetiva e diretamente os vieses de gênero, raça e classe, permite-nos apurar as complexidades inerentes a esta modalidade especíica de trabalho, o que não seria possível utilizando teorias econômicas ou comportamentais tradicionais. Nesse sentido, Biroli e Miguel (2014, p. 13) ressaltam que:

Teorias da democracia, teorias da justiça, teorias que estariam centradas na problemática da liberdade e da igualdade dos indivíduos passam ao largo [...] quando silenciam sobre o impacto do gênero na posição dos indivíduos e sobre a relação estreita entre hierarquias em diferentes esferas da vida. O silêncio sobre o impacto casado das relações de poder no mundo doméstico, no mundo do trabalho e no mundo da política é particularmente ‘produtivo’, isto é, deine o limite para muitas relexões e as coloca numa posição em que acabam por justiicar as coisas como elas são.

Assim, este livro visa contribuir para preencher esta lacuna. Diversos esforços já foram envidados nesta direção no Brasil - como os notáveis trabalhos de Bernardino-Costa (2007, 2014), Telles (2013) e Brites (2013). Neste primeiro capítulo, nosso objetivo é consolidar uma base teórica feminista que estará presente, de modo explícito ou subjacente, em várias das análises expostas nos demais capítulos do livro. Para tanto, o capítulo se organiza em três momentos: primeiro, contextualiza as origens dos feminismos, apresentando seus conceitos fundamentais; segundo, apresenta as diferentes ondas e os principais aportes teóricos relacionados à teoria feminista; e, por im, identiica suas principais visões sobre os trabalhos reprodutivos, cujas fontes relacionam-se, sobretudo, à teoria econômica feminista.

Por que falar em feminismos?

O feminismo não é homogêneo, isto é, não possui um corpo de ideias consolidado e fechado, com as mesmas diretrizes sendo compartilhadas por todas as vertentes (GAMBA, 2008). A diversidade de autoras e, por vezes, autores feministas, têm em comum a militância pela igualdade de gênero combinada com a investigação cientíica das causas e dos mecanismos de reprodução da dominação masculina (MIGUEL, 2014, p. 17). É por isso que utilizamos a ideia de feminismos, como forma de reconhecer as diversas abordagens existentes.

A literatura relaciona a origem do feminismo à Revolução Francesa e seus ideais, reconhecendo algumas autoras com ideias consideradas feministas já na Idade Média. A partir dessa origem em comum, diferentes correntes surgiram em torno a algumas ideias e

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conceitos centrais, que denotam a dominação masculina na sociedade e dão base para uma relexão mais aprofundada sobre o ser mulher. Em especial, as desigualdades de gênero são consideradas o ponto de partida da luta feminista. Segundo Biroli e Miguel (2014, p. 8),

As relações de gênero atravessam toda a sociedade, e seus sentidos e seus efeitos não estão restritos às mulheres. O gênero é, assim, um dos eixos centrais que organizam nossas experiências no mundo social. Onde há desigualdades que atendem a padrões de gênero, icam deinidas também as posições relativas de mulheres e de homens, ainda que o gênero não o faça isoladamente, mas numa vinculação signiicativa com classe, raça e sexualidade.

O termo gênero, utilizado pelo movimento feminista a partir da década de 1970, designa as construções sociais que deinem homens e mulheres. Segundo Mathieu (2009), a deinição de gênero diz respeito a tudo o que não é biológico, mas social. Assim, os seres humanos, por constituírem uma espécie que se reproduz de maneira sexuada, possuem características anatomoisiológicas que os diferenciam como macho e fêmea. As fronteiras dessa diferenciação binária, todavia, não são totalmente delimitadas, a exemplo das pessoas que nascem...

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