Teoria dos princípios em dworkin

AutorRosangela Rodrigues Dias de Lacerda
CargoProcuradora do Trabalho da 5ª Região/BA, Mestranda em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia
Páginas340-365

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1. Introdução

A teoria dos princípios de Dworkin tem alicerçado a doutrina dos direitos fundamentais da atualidade, sendo instrumento precípuo para ponderação de valores e estabelecimento de distinções conceituais e funcionais entre princípios e regras. A sua importância, por conseguinte, é fulcral para a interpretação do Direito, na medida em que norteia a sua aplicação ao caso concreto e estabelece premissas axiológicas

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para a solução que melhor se coadune com os paradigmas vigentes em determinada sociedade, considerando ademais o seu contexto histórico.

O objetivo do presente trabalho, desta sorte, foi o de estabelecer os pilares da teoria de Dworkin sobre a distinção entre princípios e regras, para em seguida elaborar uma pequena digressão quanto às críticas que lhe são dirigidas pela doutrina nacional, encerrando o trabalho com a defesa de suas teses, com algumas ressalvas quanto à questão da única resposta correta para os casos difíceis, mas ratificando as assertivas de que: a) existe uma diferença qualitativa entre princípios e regras; b) os princípios, quando em conflito, são ponderados, enquanto as regras são aplicadas segundo o critério de validade, e c) desobedecer a um princípio é mais grave do que desobedecer a uma regra, porquanto esta última é a densificação daquele.

Inicialmente foi elaborada uma explanação acerca do positivismo norte-americano, indispensável à compreensão da teoria de Dworkin, que expressamente afirma ser contrária aos seus postulados. Em seguida, plasma-se a teoria dos princípios em seus mais relevantes aspectos, para logo depois destacar a crítica de Humberto Ávila e de parte da doutrina nacional. A crítica é então rechaçada, sendo defendida a tese de Dworkin, que ilumina todo o entendimento contemporâneo acerca da normatividade dos princípios, sendo escólio precipuamente do neoconstitucionalismo. Por derradeiro, são tecidas importantes considerações acerca da única resposta correta e os dois fundamentos apresentados por Dworkin para sua ratificação, e em seguida são apreciadas as críticas quanto a este entendimento.

2. A teoria positivista norte-americana sobre o sistema jurídico

Ronald Dworkin expressamente define a sua teoria como uma crítica ao positivismo prevalecente nos Estados Unidos, capitaneado por Herbert Lionel Adolphus Hart. Entrementes, antes de adentrarmos o ponto fulcral da teoria de Hart, é imperiosa uma digressão acerca do início do positivismo americano.

No século XIX, John Austin elaborou a teoria de que o direito é um conjunto de regras de caráter geral e impessoal ditadas pelo

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soberano, que tem o poder de aplicar uma sanção a todos aqueles que não a obedeçam. Considerando que o soberano não é capaz, por ser humanamente impossível, de regulamentar todas as condutas, então delega parte do seu poder a agentes públicos — os juízes — para criar novas regras sempre que casos inéditos ou problemáticos se apresentem. Este poder de criar novas ordens, portanto, é denominado poder discricionário. O juiz, então, cria novas regras ao julgar os casos difíceis, e o soberano pode anular as suas sentenças ou, ao não fazê-lo, concordar tacitamente com o que foi decidido. Esta era, portanto, a teoria prevalecente no direito americano, que sofreu críticas por parte dos doutrinadores em pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, o fundamento da teoria de Austin era a autoridade da força, vez que o soberano poderia infligir penas e castigos para aqueles que o desobedecessem. Sob esta ótica, não haveria qualquer distinção, portanto, na ordem emanada por uma autoridade e na ordem ditada por um bandido, por exemplo, um chefe do narcotráfico. E, em segundo lugar, é mister asseverar que, em sociedades complexas, é muito difícil estabelecer qual a vontade do “soberano”, pois o poder é fragmentado em diversos setores, órgãos e entidades cuja “vontade” muitas vezes não pode ser identificada com facilidade.

No escopo de responder a estas críticas, portanto, surge a teoria de H. L. A. Hart. Em seu entendimento, o direito também é um conjunto de regras jurídicas, mas de duas espécies: regras primárias e regras secundárias. Regras primárias são aquelas que concedem direitos ou impõem obrigações aos membros da comunidade. Regras secundárias são aquelas que estipulam como e por quem tais regras primárias devem ser estabelecidas, modificadas ou extintas1. Em sua teoria, a autoridade de uma regra não depende da força ou do poder político do grupo ou segmento social que as edita, ao contrário da teoria de Austin. Haveria, nesta ordem de ideias, duas fontes possíveis para a autoridade de uma regra: a aceitação social da regra como padrão de conduta e a promulgação de uma regra de conformidade com a regra secundária que assim determina.

Em outras palavras, uma regra primária que estabelece, por exemplo, o pagamento de determinado imposto, seria obrigatória

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porque uma regra secundária que estipula o seu surgimento foi obedecida — no caso do direito brasileiro, porque o Congresso Nacional fixou os seus parâmetros de pagamento, obedecendo aos critérios de iniciativa legislativa, quorum de votação, prazos para emendas e sanção ou veto do Presidente da República. Significa afirmar que todo o processo legislativo, que nada mais é do que um conjunto de normas secundárias por excelência, foi observado para edição da norma que cria uma obrigação jurídica. Prosseguindo no seu raciocínio, afirma que a regra secundária fundamental, da qual se originariam todas as outras, é denominada regra de reconhecimento, uma espécie de pedigree das normas, ou seja, um critério normativo a partir do qual seria possível afirmar a validade ou não das normas dela derivadas.

Em sociedades primitivas, prevalecem as normas que têm sua autoridade derivada da simples aceitação social; nas complexas, contudo, a regra de reconhecimento pode ser simples (como em Austin, é norma o que o rei decreta) ou pode ser mais elaborada, como por exemplo uma Constituição Federal.

Seguindo o mesmo pensamento de Austin, Hart afirma que, quando o juiz se depara com um caso difícil, para o qual não existe uma norma de regulamentação, há o exercício do poder discricionário, ou seja, o juiz cria uma nova regra a ser obedecida pelas partes, que antes não existia no ordenamento jurídico. Neste sentido, o juiz não apenas adapta a regra existente às contingências sociais, econômicas, culturais e políticas, utilizando-se de uma certo senso criativo com o material existente; a palavra criar, neste contexto, significa que há um verdadeiro “parto” de uma nova regra.

Dworkin afirma que ordinariamente a locução “poder discricionário” é utilizada em sentido forte e em sentido fraco. Em sentido fraco, significa justamente o poder que detêm as autoridades de adaptar as regras existentes, tornando-as mais razoáveis, mais condignas com a realidade social, com o momento histórico, com as circunstâncias fáticas, etc. Este poder, segundo Dworkin, é inerente à própria aplicação do direito, e seu âmbito abrange não apenas as autoridades judiciárias, mas principalmente as que exercem atribuições na Administração Pública, porquanto o conjunto de regras de que se compõe o direito não é estático, rígido e engessado. Este, todavia, não é o sentido de poder discricionário utilizado pelos positivistas, quando afirmam o seu

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exercício pelo Judiciário nos casos difíceis. O sentido forte, portanto, é de que há efetivamente a criação de uma nova regra, ou seja, uma nova ordem nasce para o mundo jurídico a partir da decisão judicial — é o sentido empregado por Hart e pelos demais positivistas ao fundamentarem suas teses.

Encerrando sua teoria, Herbert Hart assevera que, em todas as sociedades, primitivas ou mais desenvolvidas, a regra de reconhecimento em última análise está fundamentada na aceitação social, tendo sido editada, por exemplo, pelo grupo que alcançou o poder ou por uma maioria de eleitores, o que se traduz por fim no mesmo critério: aceitação social.

O positivismo jurídico traduziu-se na redução do Direito à norma, negando a existência de qualquer direito que não fosse conferido pelo ordenamento jurídico de cada Estado. Segundo Luís Roberto Barroso2,

[...] correndo o risco das simplificações redutoras, é possível apontar algumas características essenciais do positivismo jurídico:

(i) a aproximação quase plena entre Direito e norma;

(ii) a afirmação da estatalidade do Direito: a ordem jurídica é una e emana do Estado;

(iii) a completude do ordenamento jurídico, que contém conceitos e instrumentos suficientes e adequados para a solução de qualquer caso, inexistindo lacunas;

(iv) o formalismo: a validade da norma decorre do procedimento seguido para a sua criação, independendo do conteúdo. Também aqui se insere o dogma da subsunção, herdado do formalismo alemão.

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O que há de comum em todas as correntes positivistas é a assepsia valorativa do Direito. Conforme ensinamento de Hans Kelsen, seu maior expoente de todos os tempos, os valores existem no Direito, não há como negar a sua importância. Todavia, no momento em que o juiz prolata a sua decisão, ou seja, no momento em que deve densificar a carga valorativa da norma, pratica ato de vontade, não ato de razão. Desta sorte, a sentença é um ato que escapa ao âmbito da ciência do direito, sendo considerado um simples ato de vontade. A sua grande contribuição consistiu em separar do Direito todo o conhecimento que anteriormente se encontrava a ele amalgamado, como a sociologia, a moral, a ética, etc. Neste sentido3:

A atitude da Teoria Pura do Direito é, inversamente, uma atitude inteiramente objetivista-universalista. Ela...

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