A teoria do Estado do "marxismo ocidental". Gramsci, Althusser, Poulantzas e a chamada derivacao do Estado.

AutorHirsch, Joachim
CargoEnsayo

A compreensao ampliada de Antonio Gramsci acerca do Estado

Foi Antonio Gramsci quem comecou a refletir sistematicamente sobre a independencia da politica e do Estado. O passo decisivo consistiu na superacao de um modelo simples de base-superestrutura, no qual Estado e politica sao compreendidos apenas como reflexo da base economica. Essa concepcao, que tinha menos a ver com Marx do que com a corrente do marxismo dominante no inicio do seculo XX, ligava-se a uma nocao teleologica dos processos historicos, pela qual a politica nao tinha lugar enquanto categoria independente.

Gramsci, em suas analises das relacoes de forca e de hegemonia, vincula-se a Lenin, mas ultrapassa uma concepcao de Estado puramente instrumentalista-voluntarista (BUCI-GLUCKSMANN, 1981, p. 87). Com esse novo passo, que coloca em relacao a analise do Estado com a analise de relacoes de forca (6) que nao se reduzem a relacoes economicas, Gramsci abriu o debate de orientacao marxista tanto para uma teorizacao independente do Estado, quanto para uma compreensao de contingencia historica.

A compreensao de Gramsci do Estado enquanto unificacao de "sociedade politica" (isto e, o aparato estatal em sentido estrito) e "sociedade civil", no entanto, de forma alguma recai no outro extremo, o de uma concepcao politicista do Estado. Ao reves, Gramsci supera uma nocao reificada dos espacos sociais, pois ele nunca os entende como areas fechadas em si mesmas, mas sempre como campos nos quais praticas sociais especificas sao colocadas em relacao umas com as outras. A economia nunca e, assim, tratada como puramente economica, assim como a politica nunca e somente politica, ou a cultura apenas cultural.

Gramsci chega a essa observacao por meio da reflexao acerca da nao irrupcao da revolucao no ocidente depois da Primeira Guerra Mundial. Sua resposta repousa na natureza do Estado burgues desenvolvido, que, devido a sua estrutura ampliada, nao deveria ser tomado de assalto, como havia sido o caso na Russia. Pelo contrario, o Estado burgues havia formado um sistema cruzado de "trincheiras e casamatas", que, no confronto com tal Estado, induzem a uma morosa guerra de posicao. A referencia e a luta pela hegemonia, que e travada preponderantemente na sociedade civil. Esta e, enquanto parte integrante do "Estado ampliado", privilegiada em relacao as instituicoes imediatamente estatais. Gramsci, entao, chega a sua conhecida definicao do dominio burgues como "hegemonia encouracada de coercao" (GRAMSCI, 1999, p. 783).

E certo que a hegemonia e desenvolvida na sociedade civil, mas nao pode ser entendida somente como uma pura construcao ideologica, ja que possui sempre tambem um componente material-economico que se vincula a interface entre relacoes de producao e forcas produtivas. Os "grupamentos sociais" manifestam-se, como afirma Gramsci, sobre a "base do grau de desenvolvimento das forcas produtivas materiais, das quais cada uma representa uma funcao na producao e nesta ocupa uma determinada posicao" (GRAMSCI, 1991ff, p. 1560). A sociedade civil localiza-se, enquanto parte do estado ampliado, entre "a estrutura economica e o Estado, com sua legislacao e sua coercao (...)" (ibid., p. 1267). Em seu ambito estao presentes instituicoes e organizacoes que sao formalmente separadas do Estado, ou seja, associacoes, sociedades cientificas, igrejas, clubes, redes intelectuais, meios midiaticos, mas tambem associacoes musicais, nomes de ruas, bares, etc. (cf. DEMIROVIC, 2001, p. 150). Gramsci torna, portanto, possivel ampliar a visualizacao do Estado, para descrever uma nova forma de direcao e governo. Nao se tratou, de maneira alguma, somente de transferir o foco da analise para momentos ideologicos, mas muito mais de uma nova praxis no campo do estado ampliado. O Estado burgues nao ha, por conseguinte, de ser reduzido a seus elementos coercivos:

o estado integral pressupoe a adocao da generalidade dos modos de direcao intelectuais e morais de uma classe sobre a sociedade, a maneira pela qual ela pode materializar sua 'hegemonia', e asseguraria por meio de 'equilibrios de compromisso' seu proprio poder politico (...) (BUCI-GLUCKSMANN, 1980, p. 88).

A teoria do Estado de Gramsci, na qual foram teoricamente assimiladas a derrota dos partidos comunistas ocidentais e a nao irrupcao da esperada revolucao, caiu amplamente em esquecimento apos a 2a Guerra Mundial. Somente quando se despertou, com o movimento estudantil, o interesse em Marx, ganharam novamente importancia questoes que para Gramsci ja eram determinantes. O fracasso do movimento de 68 foi relacionado tambem com a ausencia de uma teorizacao acerca do Estado burgues (cf. DEMIROVIC, 1987, p. 9). Portanto, nao foi por acaso que Gramsci tenha sido redescoberto nos anos 70. Foi o filosofo frances Louis Althusser quem inicialmente acolheu formulacoes centrais de Gramsci em sua teoria.

A concepcao de Louis Althusser dos aparelhos ideologicos de Estado

Mesmo que Althusser, em parte, ataque contundentemente a interpretacao do marxismo por parte de Gramsci devido a seu "historicismo"--isto e, devido a seu atrelamento imanente a filosofia italiana de inspiracao hegeliana, nos moldes de Benedetto Croce, e da interpretacao "teleologica" do marxismo associada a ela--(ALTHUSSER, 1972, p. 157 e ss.), ele nao deixa de referir-se intensamente a Gramsci em seu mais significativo ensaio sobre o Estado, datado de 1970--"Aparelhos ideologicos de Estado", que em 2010, depois de permanecer esgotado por muito tempo, teve nova edicao publicada na Alemanha. Isso e colocado no texto, que e subintitulado "notas para uma investigacao", especialmente numa nota de rodape. La se afirma:

ao que saibamos, Gramsci e o unico que avancou no caminho que retomamos. Ele teve a ideia 'singular' de que o Estado nao se reduzia ao aparelho (repressivo) de Estado, mas compreendia, como dizia, um certo numero de instituicoes da 'sociedade civil': a Igreja, as Escolas, os sindicatos, etc. Infelizmente Gramsci nao sistematizou suas intuicoes, que permaneceram no estado de anotacoes argutas, mas parciais (ALTHUSSER, 2010, nota de rodape 53).

O que Althusser assume a partir do pano de fundo dessa afirmacao de Gramsci e, primeiramente, a constatacao de que o Estado e o dominio estatal nao se limitam somente ao aparato estatal em sentido estrito. Essas instituicoes que Althusser coloca como inscritas no aparelho estatal, como a policia, os tribunais, as prisoes, o exercito, etc., acima das quais "entronizamse" o chefe de Estado, o governo e a administracao, devem ser analiticamente ampliadas, para que se logre atingir uma pura "teoria descritiva" do Estado burgues (2010, p. 46 e ss.). Partindo do questionamento sobre quais condicoes devem ser preenchidas para a reproducao das condicoes de producao capitalista, Althusser amplia a compreensao marxista ate entao corrente acerca do Estado, na medida em que, ao lado da indispensavel reproducao dos meios de producao, sobretudo a forca de trabalho deve ser reproduzida. E isso compreende, alem da necessidade da imediata reproducao do trabalhador atraves de moradia ou meios de subsistencia, "em suma, tudo que ele necessita para na manha seguinte--todas as manhas, se Deus o permitir--apresentar-se novamente a porta da fabrica" (2010, p. 41), fundamentalmente as habilidades de se inserir no processo de trabalho. Isso por nao ser de modo algum autocompreensivel que trabalhadores e trabalhadoras todas as manhas levantem-se, aparecam pontualmente em seu posto de trabalho e submetamse entao por oito horas ao processo de trabalho (cf. MEW 23, p. 741 e ss.; THOMPSON, 1980). Para tanto, eles precisam antes ser levados a isto. A instituicao na qual as pessoas aprendem isso e, segundo Althusser, sobretudo a Escola. Ao lado do aprendizado de tecnicas culturais fundamentais, como ler, escrever e calcular, recebem as pessoas la as virtudes secundarias indispensaveis. Em outras palavras, a Escola (mas tambem outras instituicoes estatais [...]) ensinam [...] determinados tipos de know how, mas naquelas formas pelas quais se assegura a submissao a ideologia dominante ou [sob o aspecto dos dominantes, segundo o autor] a pericia em seu exercicio pratico (2010, p. 43).

O dominio estatal nao se esgota, portanto, nos aparelhos repressivos, mas tambem esta presente o poder estatal nos assim denominados por Althusser Aparelhos Ideologicos de Estado (AIE). Aqueles aparelhos ideologicos de Estado, cuja concepcao se coloca reconhecivel na tradicao gramsciana do Estado ampliado, compreende por exemplo o AIE religioso (as diferentes Igrejas), o AIE escolar, o AIE familiar, o AIE politico (partidos, associacoes), o AIE da informacao (midia), e dai por diante.

A ampliacao da compreensao marxista do Estado por parte de Althusser pressupoe, como ja havia sido feito em Gramsci, uma interpretacao propria do conceito de "base-superestrutura". As assim chamadas "superestruturas", nas quais se alocam tambem a ideologia e o Estado, nao sao, segundo esta compreensao, "epifenomenos" secundarios. Pelo contrario, do ponto de vista da reproducao, constata-se que elas sao constitutivas para a existencia do todo social (2010, p. 46-47.). O todo social, que Althusser compreende como estrutura com dominante, nao se deixa reduzir a um traco essencial como "a economia". Esse todo e a dominancia, verificavel no capitalismo, da instancia economica, pode ser compreendida em sua existencia apenas atraves da remissao as instancias ideologicas e politicas (ALTHUSSER, 1968).

Por tras dessa reformulacao do esquema base-superestrutura nos anos 1970, coloca-se tambem a experiencia da fracassada revolta de maio de 1968 na Franca. A esse fracasso liga-se a questao, tematizada por Althusser, sobre a reproducao e, consequentemente, a estabilidade do modo de producao capitalista. Nao sao somente, portanto, os aparelhos repressivos de Estado que garantem a estabilidade, mas aqui exercem, antes, tambem um papel preponderante os aparelhos ideologicos de Estado.

Nicos Poulantzas: o...

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