A Teoria do Direito em Kelsen

AutorAlfredo Copetti Neto - Luciano Fernandes Motta
CargoAdvogado/RS. Doutor em Teoria do Direito pela Università degli Studi Romatre - Advogado/PR. Doutor e mestre em Direito Público pela Unisinos
Páginas6-13

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Notas preliminares

Interessa-nos desvendar alguns amálgamas referentes à discussão jurídica contemporânea acerca da teoria do direito de Hans Kelsen. Cabe, primeiramente, considerar que o pensamento de Kelsen se encontra caracterizado, nos dias atuais, como um pensamento clássico no sentido mais amplo do termo, que é aquele: a) que propõe uma interpretação autêntica de seu momento histórico; b) que mantém, embora com o passar do tempo, sua atualidade; c) que elabora teorias paradigmáticas aptas a proporcionar a compreensão de realidades diferentes1.

Diante desse aspecto, nossa abordagem subsiste, especificamente, em relação à obra Teoria Pura do Direito2 tendo em vista o rigor científico empregado por Kelsen para a construção de um sistema de direitos. Aliás, importa ressaltar que esta construção vem ao encontro da posição revolucionária do autor no que permeia todo o percurso pelo qual passou o conhecimento desde o renascimento. Kelsen deixou de lado o direito canônico, o jusnatu-ralismo, o historicismo, até encontrar as tendências atuais neokantia-nas e neopositivistas à lapidação do pano de fundo de seu pensamento: a juridificação do estado, ou seja, a legitimação do poder legal-racional determinada por Max Weber para o estabelecimento da sua teoria jurídica da democracia3.

Dito de outro modo, é pela compreensão, mas sobretudo pela tentativa de tornar eficaz a premissa filosófico-política moderna da primazia do direito sobre o poder4, que o autor da Teoria Pura do Direito elege a norma fundamental como marca do ideal clássico do governo das leis, cuja substância, por um lado, se encontra numa visão neokantiana, que estabelece epistemologicamente a centralida-de do objeto da ciência jurídica ao definir a significação das normas positivas; por outro, pela característica neopositivista, quando adota a aversão à metafísica e à ideologia, reconhecendo a cientificidade somente do conhecimento objetivo calcado na razão e na verdade, cuja síntese vem demonstrada pela (...) correspondência entre o conteúdo das normas positivas e o conteúdo das proposições normativas elaboradas pela ciência do direito5.

Assim, pensar a respeito da purificação do direito almejada por Kelsen, cujo ponto central passa pela neutralidade do objeto em estudo, ou melhor, pela elevação científica da esfera jurídica a partir do abandono de quaisquer elementos contaminadores extrameta-jurídicos, além da rígida separação entre linguagem-objeto e metalin-guagem6, não deixando de serem contrapostas, contudo, visões críticas a respeito da sua elaboração teórica, é o que propomos no presente estudo.

2. No enlace da Teoria Pura do Direito
2.1. Aspectos gerais

Apesar dos caminhos resvaladi-ços e divergentes das neoleituras e

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neointerpretações da proposta kel-seniana, pode-se dizer que a grande motivação da Teoria Pura é a de definir condições para a construção de um conhecimento consistente-mente científico do direito. Portanto, mostra-se, sobremaneira, como um trabalho de epistemologia jurídica, cujo ponto de partida é a filosofia do direito, voltado exatamen-te ao estudo do conhecimento das normas jurídicas.

Hans Kelsen, enquanto cientista jurídico, se preocupou com o conhecimento do direito e com os meios, cautelas e métodos a serem utilizados para assegurar-lhe o estatuto científico.

Daí a dizer que o grande obje-tivo do autor foi discutir as confusões metodológicas e propor novos princípios e artifícios à teoria jurídica7, ou seja, seu pensamento foi marcado pela tentativa de conferir à ciência jurídica autonomia suficiente para desempenhar um papel legitimador do poder político, na medida e nos limites da norma fundamental - e em contrapartida ao poder soberano -, cujo intuito era aquele de fechar o sistema por meio do direito, limitando o poder.

Para tanto, o denominado princípio da pureza8 advinha de um duplo aspecto: enraizava-se na premissa de que a ciência do direito decorria da estrita definição de um objeto e da sua neutralidade; determinava-se pela concepção de que tanto o método quanto o objeto da ciência jurídica deveriam ter como pressuposto, face o caráter intrinsecamente deôntico do direito, um enfoque normativo.

Quanto ao primeiro aspecto, uma das distinções mais importantes da teoria kelseniana se estabeleceu pela diferença entre norma jurídica e proposição jurídica9.

Quanto ao segundo, o direito vinha descrito pela ciência jurídica como ordem coativa, e, desse modo, as normas que não estatuíssem atos de coerção somente poderiam ser vistas como dependentes das normas de índole sancionadora. Ou seja, todas as normas jurídicas se descreviam como prescrições de imposições de penalidades contra condutas determinadas.

Em outras palavras, o poder jurídico10, que no sistema kelseniano criava e tornava legítimas as normas jurídicas, definia aquelas estritas funções - de determinar ou de proibir, de permitir, de autorizar e de derrogar -, cujo intuito era, em última análise, dar validade, pela obrigatoriedade, à Constituição.

Em síntese, a norma jurídica prescrevia a sanção a ser aplicada aos agentes de condutas ilícitas. A proposição jurídica, juízo hipotético, por sua vez, afirmava: dada a conduta descrita na lei, deve ser aplicada a sanção também estipulada na lei.

A forma de exteriorização do enunciado, entretanto, não era essencial, o que importava realmente era o seu sentido. A norma jurídica, editada pela autoridade, tinha caráter prescritivo, enquanto a proposição jurídica, emanada da doutrina, tinha natureza descritiva. Aquela resultava de ato de vontade - a autoridade determinava as coisas de um certo modo -, esta decorria de ato de conhecimento - é verdadeiro, segundo a ciência do direito, aquilo que a autoridade quer.

Assente-se que a distinção mais relevante entre normas e proposições se encontrava vinculada à organização lógica do sistema jurídico11. Para Kelsen, o conjunto de normas jurídicas, a ordem em vigor, não tinha lógica interna. As autoridades simplesmente baixam atos de vontade no exercício de suas competências jurídicas, cuja lógica, ou melhor, os princípios lógicos vinham postos, indireta-mente, pelas proposições jurídicas.

Neste contexto, o aspecto da validade da norma jurídica dependeria do silogismo lógico existente nas proposições jurídicas responsáveis pela descrição das normas jurídicas.

Kelsen enfrentou a discussão sobre o fundamento de validade do direito procurando abstrair os aspectos políticos, morais, econômicos e históricos envolvidos no tema. Afirmou, apenas, que o direito deveria ser obedecido porque determinado por autoridade competente. Contudo, quanto à relação entre o ser e o dever-ser jurídicos, defendeu que afirmações científicas têm forma de juízos hipotéticos, quer dizer, sustentam que determinada consequência está ligada a certo pressuposto. Em outros termos: se verificada a hipótese, então o consequente também se verifica ou deve verificar-se.

Enquanto as ciências causais apresentam seus enunciados sob forma correspondente ao princípio da causalidade, Kelsen apoia sua teoria no princípio da imputação12. Ambos os princípios se distinguem, basicamente, pela natureza da consequência. O efeito na relação casual não é a descrição do estabelecido por ato de vontade dos titulares de competência jurídica, tal como se verifica com a sanção na relação normativa. Desse modo, como independe da vontade humana, o consequente na relação causal necessariamente segue o antecedente na órbita do ser. Se isso não ocorre, o enunciado é falso e deve ser substituído. Por outro lado, o consequente na relação de imputação se refere a uma manifestação de vontade: o fato de a prescrição não se verificar efetivamente não torna falsa a proposição de que ela deveria ocorrer.

Ou melhor, o princípio da imputação impõe a ligação do pressuposto à consequência na medi-

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da em que esta vem expressa na proposição jurídica com a palavra dever-ser, impondo, de modo contingente, a conexão entre o ilícito e a consequência do ilícito13

Por conta disso, o conhecimento jurídico pôde considerar as normas integrantes de seu objeto a partir de duas perspectivas diferentes. Por um lado, as normas jurídicas enquanto reguladoras da conduta humana. Neste caso, estamos diante da teoria estática do direito, que tem por objeto o direito como um sistema de normas em vigor14, cuja renovação se mostra prejudicada face ao seu caráter substancialmente dedutivo. Por outro lado, a teoria dinâmica, que diz respeito ao processo de produção e de aplicação das normas jurídicas, ou seja, do direito no seu movimento15, vem caracterizada pela concepção de validade formal, pois, como sustentou Bobbio, (...) o critério com base no qual é possível distinguir o que é direito daquilo que não é caracteriza-se, pura e simplesmente, pelo modo de sua produção16.

Enquanto os temas abordados pela teoria estática do direito são, neste contexto, a sanção, o ilícito, o dever, a responsabilidade, os direitos subjetivos, a capacidade, a pessoa jurídica, os direitos políticos; os compreendidos na teoria dinâmica do direito são a validade, a unidade lógica da ordem jurídica, o fundamento último do direito, as lacunas etc.17

O autor ressalta que o direito só pode ser entendido como uma ordem social coativa, impositiva de sanções. Difere-se, desse modo, da moral não pelo conteúdo das respectivas normas, mas pela natureza da reação provocada pela sua desobediência. Enquanto o direito determina consequências que podem ser imputadas às pessoas com o uso da força física, se necessário; a moral apenas recomenda a apro-vação ou desaprovação de condu-tas18.

Segundo Kelsen, portanto, as sanções19 aparecem sob duas formas diferentes: como pena - no sentido...

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