A Teoria do Direito, a Era Digital e o Pos-Humano: o novo estatuto do corpo sob um regime tecnologico e a emergencia do Sujeito Pos-Humano de Direito/The Theory of Law, the Digital Age and the Post-Human: the new status of the body under a technological regime and the emergence of the Post-Human Subject of Law.

AutorBittar, Eduardo C.B.

Introducao (*)

A Teoria do Direito se ve francamente desafiada a repensar seus fundamentos e seus capitulos mais sensiveis, (1) quando se trata de pensar o impacto das novas tecnologias e a emergencia da era digital, (2) da era do numerico, (3) ou ainda, da era do cibernetico e do espaco virtual. E decisiva, nesta perspectiva, a atitude de antecipacao reflexiva, como forma de compreender os riscos e os impactos, tendo-se presente o papel social regulatorio do Direito. (4) Entende-se que o Direito na era digital tem o papel de circunscrever fronteiras, regras e parametros, 'freando' o carater 'desenfreado' do desenvolvimento tecno-cientifico, ao mesmo tempo em que a condicao humana e re-significada, e em que as formas de sociabilidade sao re-definidas.

Em dois estudos anteriores, ja se havia procurado demonstrar como a desumanizacao prejudica processos de socializacao fundados na vitoria da tecnica e na reificacao social, no artigo intitulado Technique, Dehumanization and Human Rights, (5) e, tambem, como os avancos da tecnologia criam novos desafios para o campo de reflexoes dos direitos humanos, no livro intitulado Os direitos humanos no espaco virtual. (6) Nao e possivel aqui retomar as categorias, os conceitos e as analises ja empreendidas nos espacos anteriormente definidos, que sao tomados como pressupostos daquilo que se desenvolvera de modo mais especifico no estudo contido neste artigo. Por isso, a tarefa aqui e a de dar continuidade a perspectiva critica desenvolvida nos estudos anteriores, elaborando-se aqui um diagnostico de epoca, concernente aos interesses da Teoria do Direito. Dai, neste presente estudo, a ideia de reforcar a importancia de atentar para o legado reflexivo da Escola de Frankfurt (Frankfurter Schule), partindo-se dos estudos sobre a historia da modernidade e o processo de afirmacao da razao instrumental (Instrumentelle Vernunft), dentro da tradicao deixada por Theodor Adorno, Max Horkheimer, (7) Walter Benjamin (8) e Jurgen Habermas, (9) apontando nesta forma de racionalidade propria do mundo moderno a estrutura que embasa a emergencia da era do numerico, do digital e do ciberespaco. As categorias do pensamento frankfurtiano estarao embasando a analise de fundo ao longo do texto, enquanto se dialoga com a emergencia de uma bibliografia mais atual, reflexiva e critica sobre o estado da arte na area, (10) fazendo-se desta opcao metodologica a forma de enfrentamento do tema, de conducao do presente estudo e de discussao da nocao de sujeito pos-humano e seus impactos para o Direito contemporaneo.

E, de fato, na toada frankfurtiana, como ja vem apontando Hartmut Rosa, a nova dimensao da tecnica moderna e aquela marcada pelo elevado grau de aceleracao. (11) E ela que reforca hoje a importancia da abordagem critico-realista, para a qual a processualidade da condicao humana figura agora premida pelas circunstancias de uma evolucao tecnica sem precedentes. E ai que a Teoria do Direito, enquanto Teoria do Humanismo Realista, a partir da proposta teorica contida no livro Introducao ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justica (2018), (12) deve responder aos desafios epocais, em tempos pos-humanos e trans-humanos. Isso evidencia a importancia da critica aos processos de desumanizacao que poderao surgir do hiper-enaltecimento da maquina, da mitificacao dos processos tecnologicos, das ideologias da cyberculture, da fetichizacao do corpo-maquina reduzido a coisa-mercadoria, da servilizacao do homem a maquina. Ali onde a nova potencia politico-economica promover barbarizacao, gerar exclusao e aprimorar processos de dominacao, consideradas as novas fontes da violencia cibernetica, e a logica eugenica vier a tornar banais as fontes de alimentacao da conexao entre vida, respeito, integridade, dignidade e direitos, a reflexao da Teoria do Direito, enquanto Teoria do Humanismo Realista, devera se retrair em busca de novos fundamentos para o Direito.

A revolucao digital sera aqui compreendida, portanto, como mais uma das etapas internas do mundo moderno, e a glorificacao das novas tecnologias sera interpretada como a ideologia que autoriza a emergencia das novas fronteiras e conquistas da tecnica moderna. Dentro de uma nova fronteira dos processos de modernizacao, sera novamente a razao instrumental (Instrumentelle Vernunft) que fara emergir, no contexto atual, a substituicao do 'governo' pela 'governanca numerica', e o deslocamento da nocao de 'lei' pela 'nocao de calculo', conforme aponta o filosofo frances Alain Supiot, o que se traduz em novos e graves desafios para o Estado Democratico de Direito. (13) As inovacoes atuais sao tao graves que se chega mesmo, nesta 'nova era', a colocar em questao o proprio papel da razao, inclusive, da razao moderna, como o faz filosofo tunisiano Pierre Levy. (14) Por isso, esta reflexao encontra atualidade e deve demarcar um espaco importante de trabalho, de modo que neste breve espaco se procurara tratar dos avancos da instrumentalidade ao nivel da virtualidade, a galope de um processo de hipermodernizacao social, tendo-se presente o vocabulario do sociologo frances Gilles Lipovtesky. (15)

A Teoria do Direito na Era Digital

A era digital corresponde ao periodo historico em que a vida social, as relacoes de trabalho e boa parte das interacoes humanas passam a estar determinadas por 'algoritmos' e 'operacoes digitais'. A emergencia da era digital impoe novos desafios ao Direito. Desta forma, a Teoria do Direito nao pode permanecer estatica diante destes novos desafios. A Teoria do Direito depende de profundas modificacoes sociais, para creditar mudancas aos conceitos juridicos, e, com isso, retorcer o Direito em torno das novas categoriais sociais em mutacao. (16) Diante da tecnologia avancada, da inteligencia artificial e da aceleracao da vida, entra-se de fato numa 'nova era', a era da revolucao digital, num novo estagio de desenvolvimento do capitalismo, e, portanto, do mundo moderno.

A partir daqui, ja se podem apontar os fatores que estarao cada vez mais presentes na dinamica de interferencia das novas tecnologias, (17) e que constituem os novos ingredientes da 'era digital': i.) a tecnologia da informacao; ii.) as nano-bio-tecnologias; iii.) a tecnologia genetica; iv.) a tecnociencia; v.) a neurociencia; vi.) a cloud computing; vii.) a robotizacao; viii.) a digitalizacao; ix.) as microtecnologias; x.) a inteligencia artificial. (18) Todos estes termos evocam um processo de auto-aprimoramento da tecnica moderna. Isso torna possivel enxergar o quanto se esta diante de um hiper-aperfeicoamento da razao tecnica, das tecnologias e das fronteiras das ciencias. Por isso, estes fatores aqui presentes nao sao tomados apenas como aspectos isolados do mundo contemporaneo, mas como conglomerados de fatores que constituem uma nova dinamica, uma nova etapa dos processos de modernizacao, a qual se costuma chamar de 'era digital'.

Diversos diagnosticos de epoca vem sendo apontados, considerando os desafios impostos pela 'era digital', como apontam os estudos de sociologos renomados de diversas tradicoes teoricas, a exemplo de Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky e Alain Supiot. Em verdade, o que se processa e uma dessubstancializacao da materia e das relacoes, num processo social de modernidade liquida - considerando-se a leitura do sociologo Zygmunt Bauman - em direcao a sua transferencia para o virtual, para o digital e para a hipervelocidade. (19) Assim, em nossos tempos, emerge uma civilizacao da leveza - tendo-se presente a leitura do sociologo frances Gilles Lipovetsky - cujas caracteristicas apontam para as dimensoes do impalpavel, do imaterial, do virtual e, portanto, da leveza. (20) Aqui, se pode tambem dizer - nas palavras do filosofo frances Alain Supiot - que se esta diante do imperio do numerico, este que instala a governanca numerica e destrona o imperio da lei. (21) Estes diagnosticos sociologicos contemporaneos sao relevantes para uma apreensao mais profunda dos rumos e desrumos sociais dos processos de modernizacao. Junto com isso, evidentemente, a percepcao de novos destinos ao universo do Direito e de suas praticas.

Neste contexto, e certo que uma nova fronteira da Ciencia do Direito ira emergir. E, de fato, a esta terceira dimensao da realidade - chamada realidade digital pela filosofa Marcia Tiburi (22) - ja corresponde uma nova fronteira da Ciencia do Direito, qual seja, o Direito Digital, (23) tambem chamado de Direito Virtual. Este e apenas um aspecto da relacao entre Direito e Tecnologia. O outro aspecto e propriamente aquele que implica novos desafios, e, com isso, um impacto das novas tecnologias que ira recambiar a Teoria do Direito, em multiplas dimensoes, especialmente em capitulos mais diretamente sensiveis as novas fronteiras das transformacoes sociais. E, em verdade, a Teoria do Direito--enquanto Teoria do Humanismo Realista - ja comeca a constatar este tipo de reconfiguracao em algumas fronteiras, dimensoes e interfaces especificas do Direito contemporaneo, em especial, considerando o abalo profundo no Direito Privado, na esfera dos Direitos da Personalidade, no ambito do Direito Internacional, considerando-se a perda de fronteiras para a regulacao da moeda e das interacoes comerciais virtuais, na esfera do Direito Penal, tendo em vista o surgimento dos crimes ciberneticos e do terrorismo virtual, e, ainda mais, na esfera dos Direitos Humanos, considerando-se as diversas ameacas a dimensoes da dignidade humana. (24) Por isso, mapear este tipo de questao e algo concernente aos dominios da Teoria do Direito, pois o tremor provocado por estas mutacoes havera de se fazer ressoar em diversos ramos do conhecimento do Direito, afetando as Ciencias do Direito em sua totalidade. E e diante desta encruzilhada que se tera que colocar a Teoria do Direito em reavaliacao.

Direito, Ideologia e cyberculture

Toda era produz suas proprias ideologias. A 'era digital', quando emerge em todo o seu frescor nos tempos atuais, nao seria uma...

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