A Teoria da Aquisição da Marca Pela Ocupação

AutorGeraldo Honório de Oliveira Neto
Páginas92-128

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A posse é elemento do suporte fático da aquisição originária do direito de propriedade de coisas móveis corpóreas, pela ocupação288 e pelo usucapião. Pela ocupação adquire-se a propriedade mediante posse de uma coisa sem dono, se este assenhoramento não é defeso em lei289. A aquisição derivada da propriedade de coisa móvel se dá pela tradição290, sendo a aqui-

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sição da posse essencial à aquisição do direito. O fato possessório ainda implica direito de possuir (ius possessionis).

A posse também é meio de exercício e defesa do direito de propriedade. Embora o possuidor não seja necessariamente proprietário, o exercício de fato dos poderes inerentes ao direito de propriedade (a posse) implica ius possessionis (direito de possuir porque já possuía), cuja proteção tem o efeito prático de proteger o direito à posse (ius possidendi), prerrogativa do proprietário, se o fato possessório manifesta a titularidade do domínio. Protegendo-se o direito de possuir, pelos interditos possessórios, pode-se proteger uma prerrogativa do direito de propriedade, o direito à posse, sem necessidade de verificar questões relativas à titulari-dade do domínio.

São pertinentes as afirmações se o objeto do direito é uma coisa, no sentido tradicional do termo. O mesmo entendimento não é pacífico em se tratando de compreender os regimes de proteção ao uso exclusivo de bens imateriais, particularmente o das marcas. Predomina no Brasil e no direito comparado o entendimento de que somente podem ser objeto de posse as coisas corpóreas291. Mas alguma doutrina e jurisprudência procura enquadrar o uso de marcas na definição legal de posse292, com base no seguinte argumento: se é possível a propriedade sobre a marca, então é possível também a posse293. Realiza-se uma equiparação entre a propriedade de coisas corpóreas e a de bens imateriais, para admitir a incidência da hipótese da posse sobre o fato do uso desses bens e estender a incidência dos meios processuais de defesa da posse, os interditos possessórios, à defesa do uso de marcas sem registro294.

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Admitindo-se a sinonímia de posse e uso, poder-se-ia concluir que: a) o uso de uma marca sem registro é exercício de ato possessório previsto em hipótese de aquisição originária do direito de propriedade (ocupação da marca); b) o uso é fato constitutivo de um direito de possuir a marca, porque já a possuía (ius possessionis); c) o proprietário da marca tem a prerrogativa de possuir o signo distintivo, tem direito à posse (ius possidendi); d) a posse de uma marca legitima o seu usuário, proprietário ou não, a defender, manter ou restabelecer o uso, por meio dos interditos possessórios; e) no sistema atributivo, é lícita a defesa da posse anterior ao registro, mesmo em face do titular de registro válido, já que posse e proprie-dade não se confundem, sendo o fato possessório hipótese de aquisição do ius possessionis.

Tais interpretações não são válidas para o regime jurídico especial da propriedade das marcas, em razão da imaterialidade do seu objeto. Os termos posse e uso não são sinônimos, sendo possível identificar os elementos que os diferenciam, para que não haja dúvidas a respeito dos fatos constitutivos de direitos no regime jurídico da propriedade das marcas. Trata-se de analisar o conceito legal de posse e a questão da pertinência do fato jurídico possessório ao sistema de proteção ao uso exclusivo das marcas. Neste passo, o tema da possibilidade da posse de bens imateriais é fundamental para compreender o significado do uso em direito marcário e a possibilidade ou não de aquisição da marca pela ocupação.

Apresenta-se um estudo preliminar sobre a conformação da posse no direito brasileiro (seção I), necessário à análise da teoria da posse de marcas (seção II). A ocupação da marca é tema da seção III.

SEÇÃO I A CONFORMAÇÃO DA POSSE NO DIREITO BRASILEIRO

O presente estudo sobre a posse tem como referência a sua conformação legal no Brasil e baseia-se, portanto, na doutrina que se debruçou sobre o conceito legal de posse do Código Civil de 1916, idêntico ao dos artigos 1. 196 e seguintes da Lei 10. 406, de 10 de janeiro de 2002 (novo Código Civil). Não se busca uma conformação ideal da posse, mas trata-se de um breve estudo dogmático, despretensioso, sobre a posse no sistema possessório brasileiro. Não se cuida de aplicar a este sistema algum princípio que vigore em ordenamentos estrangeiros, nem de apresentar controvérsias sobre anomalias que ele apresente295. Objetiva-se

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apenas informar o estudo sobre a questão da posse de marcas, oferecendo um quadro mais claro possível de sua conformação legal no Brasil.

Nesta seção apresenta-se a estrutura da posse, compreendida esta como a implicação entre o fato jurídico possessório e a relação jurídica possessória (§ 1). Busca-se distinguir a matéria da teoria da posse e a matéria do direito de propriedade, para precisar os meios processuais postos para a defesa da posse e da propriedade (§ 2). Segue um estudo sobre a natureza jurídica do direito de possuir (§ 3). Conclui-se sobre o que pode ser objeto da posse (§ 4).

§ 1 - A estrutura da posse

A doutrina diverge sobre a natureza jurídica da posse. Entendem alguns que a posse é um simples fato296 e outros a qualificam como direito297. Para definir a estrutura da posse, como está regulada no Brasil, é necessário responder a questão de saber se a posse é um simples fato, um direito, ou se é também um direito. Com base na sua normatização, qualifica-se a posse de maneira integral, como um fato jurídico que implica relação jurídica possessória. Sendo assim, divide-se em quatro partes este estudo sobre a estrutura da posse, sendo dedicada às três primeiras a matéria relativa ao fato possessório: posse como fato jurídico (A); elementos do fato possessório (B); posse e detenção (C). A relação jurídica possessória é objeto da última parte (D).

A - Posse como fato jurídico

A descrição da posse encontra-se implícita no artigo 1. 196 do Código Civil, embora o dispositivo defina possuidor298. Partindo da hipótese normativa299, conceitua-se posse como o

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fato do exercício, pleno ou não, dos poderes inerentes à relação jurídica de propriedade. Para saber se há ou não posse, verifica-se o comportamento daquele que age em relação à coisa, considerando o conteúdo concreto de sua manifestação. O modo como o proprietário age em relação às coisas de sua propriedade é o modelo de ação que corresponde ao exercício de ato possessório, isto é, ofato da atuação como proprietário (posse como fato). É a posse como fato jurídico.

O exercício da posse pode se dar de diversas maneiras, em várias situações, e todas elas se enquadram no modelo legal do fato: a) posse de não-proprietário, que pode levar à aquisição da propriedade ou do direito real limitado (posse ad usucapionem), se qualificada por características especiais; b) posse de proprietário, exercida pessoalmente, ou, de modo indireto, por exemplo, mediante locação ou empréstimo da coisa; c) posse a título de direito real limitado, exercida pelo titular de um direito real sobre coisa alheia, como a servidão de passagem, o usufruto, o uso etc. ; d) posse direta e temporária, como a do comodatário ou a do locatário. Em todos os casos, a posse será o fato do exercício, pleno ou não, de poderes inerentes à relação de propriedade.

A posse assim definida é a qualificação jurídica de um fato: um exercício como fato, que não corresponde necessariamente à manifestação de poder jurídico. É o fato do exercício que se apresenta como representando, aparentando ser, a manifestação da titularidade de um direito. É possuidor quem se comporta como proprietário, sendo ou não proprietário300.

Quem revela comportamento de usufrutuário é possuidor, sendo ou não titular de direito que contenha a prerrogativa ou o poder jurídico de possuir. O dispositivo legal citado apenas descreve o modelo de conduta de possuidor, cujo paradigma é o fato do exercício do direito de propriedade.

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No dizer de Moreira ALVES301, a previsão legal não quer dizer que a posse deva consistir necessariamente ". . . em atividade que concretize o exercício de um direito, do qual seria a manifestação e no qual acharia a sua justificativa". A definição de posse incide sobre um fato que não é necessariamente o exercício do direito à posse (ius possidendi), que tem o proprietário, o locatário, o usufrutuário etc.

Porque o artigo 1. 196 do Código Civil qualifica a posse como hipótese normativa, nada prescreve, apenas descreve, é dispositivo que não conforma norma primária completa302. O

texto prevê hipoteticamente um fato cuja ocorrência concreta é causa de uma relação jurídica, do direito de possuir, mas esta implicação deôntica não está contida no dispositivo legal. O texto apenas qualifica o fato social denominado posse como fato jurídico, não o qualifica como poder jurídico, nem estabelece efeitos jurídicos, o momento eficacial normativo. A formação da relação jurídica possessória, pelo início da posse, os efeitos jurídicos do fato possessório, a perda da posse e as ações que a protegem são regulados em outros dispositivos legais, como os artigos 1. 204 a 1. 224 do Código Civil.

A posse, assim entendida, pode ser componente de hipótese fática de outros institutos jurídicos, isto...

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